POR GABRIELA COSTA
A Colecção Ética Aplicada é constituída por 12 volumes – “Ética: dos Fundamentos às Práticas”, e Ética Aplicada à Comunicação Social, Economia, Ambiente, Protecção Social, Animais, Novas Tecnologias, Educação, Política, Saúde, Relações Internacionais e Investigação Científica -, coordenados por Maria do Céu Patrão Neves e co-coordenados por personalidades com reconhecida experiência em cada um destes domínios e competências em ética.
Lançada pelo Grupo Almedina, com o apoio da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), esta que é a única colecção de Ética Aplicada (aquela que promove uma “heterorregulação das boas práticas”, para “atender às expectativas da sociedade em relação aos procedimentos das profissões e seus profissionais”) em português, visa “o desenvolvimento de um pensamento analítico e crítico”, fundamental em qualquer área de actividade socioprofissional e no exercício de uma cidadania responsável.
Nas palavras da professora catedrática da Universidade dos Açores, “as éticas aplicadas, além de reforçarem o poder do cidadão relativamente a toda e qualquer actividade socioprofissional que o afecte e de contribuírem para a coesão social, pela partilha alargada dos valores e princípios que regulam as práticas, também concorrem para a excelência da profissão que mais cabalmente serve a sociedade a que se dirige”.
Em entrevista, Maria do Céu Patrão Neves diz que “a necessidade de capacidade crítica perante o que se nos apresenta deve ser maximamente ampla e certamente não se restringe ao meio empresarial, nem tão pouco é mais urgente neste meio do que no da política, da educação ou da comunicação social”.
Como surgiu a oportunidade de desenvolver a colecção Ética Aplicada, que identifica, reflecte e problematiza as principais questões éticas que actualmente se colocam nos diferentes planos da actividade humana?
A minha ideia de organizar uma colecção dedicada à Ética Aplicada, entendida como reflexão acerca da racionalidade da acção humana em contextos socioprofissionais particulares, era já bastante antiga.
Com efeito, sendo professora catedrática de Ética e considerando ser esta mesma acção ética que constitui a nossa identidade pessoal (torno-me solidária se tenho o hábito de partilhar e auxiliar quem precisa) e o perfil identitário de uma sociedade (a comunidade torna-se inclusiva se acolhe as minorias), tenho procurado desenvolver a reflexão sobre as melhores formas de agir e assim influenciar as práticas em contextos diversos, como seja nos cuidados de saúde. Trabalho na área da bioética, ou ética aplicada à biomedicina, desde o final da década de 80.
[quote_center]As empresas vêm há muito percebendo que a sua organização e gestão sob padrões éticos aumenta a sua rentabilidade e a satisfação de todos no trabalho (paz social)[/quote_center]
Importava, porém, alargar ética aplicada a outros domínios, até porque, contrariamente ao que se verificava há trinta anos, hoje é consensual o reconhecimento que a sensibilidade ética contribui para uma melhor prestação profissional, servindo também melhor o público a que cada profissão se dedica. Esta ideia foi germinando e conheceu a sua primeira concretização em 2008. Porém, eleita como deputada ao Parlamento Europeu em 2009, tive de interromper o projecto, que só retomei no fim do mandato, em 2014.
Tratava-se inicialmente de uma pequena colecção de quatro volumes dedicados a áreas académicas em que estava envolvida: Comunicação Social, Serviço Social, Relações Internacionais, devendo o primeiro volume centrar-se na Ética como disciplina filosófica, “Ética: dos Fundamentos às Práticas”. Apresentei este projecto ao Grupo Almedina que o acolheu de imediato; a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), na assunção da responsabilidade social das fundações, associou-se ao projecto e, na confluência destes apoios, o plano cresceu até aos 12 volumes, juntando agora também: Ambiente e Animais, Política e Economia, Novas Tecnologias e Investigação Científica, Saúde e Educação.
O projecto foi iniciado em 2016, ano em que se publicou o primeiro volume, e termina em Dezembro deste ano de 2018, em que se publicará o último volume, “Ética Aplicada: Investigação Científica”. O lançamento deste volume e a apresentação da colecção completa realizar-se-á no dia 10 de Dezembro, no Pavilhão do Conhecimento, integrado num colóquio internacional sobre Ética, Ciência e Sociedade, de entrada livre.
Em que medida é premente, no actual contexto nacional e de grandes desafios globais, promover um pensamento crítico por parte do meio empresarial sobre estas questões? Como perspectiva a actuação das empresas em Portugal em matéria de ética?
O desenvolvimento de um pensamento analítico e crítico é fundamental em qualquer área de actividade socioprofissional e no amplo domínio da nossa pertença à sociedade, no exercício de uma cidadania responsável.
A sua importância tornou-se ímpar nos regimes democráticos não só porque as democracias são construídas pelos cidadãos que, através da sua intervenção regular e pertinente, moldam o presente e futuro das comunidades; mas também porque o pluralismo que caracteriza as sociedades democráticas exige uma ponderação racional acerca da panóplia de alternativas que sempre se apresentam em qualquer processo de tomada de decisão social.
[quote_center]O pluralismo das sociedades democráticas exige uma ponderação racional acerca das alternativas que se apresentam em qualquer processo de tomada de decisão social[/quote_center]
Hoje, no nosso actual mundo digital global, dominado pela infinitude de informações e opiniões a circularem livremente nas redes sociais, sem filtros e frequentemente protagonizando desígnios ocultos, esta capacidade analítica e crítica é o único recurso que nos pode preservar da manipulação de ideias e acções que nos cerca. E não me refiro apenas às designadas fake news, mas também ao processo algorítmico que nos coloca em contacto, preferencial e tendencialmente exclusivo, com os que pensam e agem como nós, numa atroz homogeneização das pessoas.
A necessidade de capacidade crítica perante o que se nos apresenta deve ser maximamente ampla e certamente não se restringe ao meio empresarial, nem tão pouco é mais urgente neste meio do que no da política, da educação ou da comunicação social.
Em Portugal, como aliás no resto do mundo, o meio empresarial está claramente a adoptar os requisitos éticos que a sociedade lhes impõe. Isto é, mesmo quando a integração dos princípios éticos na actividade económica não é feita por mote próprio, o público, o consumidor exige-o cada vez mais ampla e veementemente. Por exemplo, na recusa de aquisição de produtos feitos por trabalho-escravo, crianças, pessoas sem qualquer protecção social, ou produções sem preocupação de bem-estar animal ou sustentabilidade ambiental – apenas para dar alguns exemplos. Actualmente são muitas as empresas que procuram as suas novas oportunidades de negócio em domínios que obedecem já às exigências éticas das sociedades: no combate às alterações climáticas ou poluição, com a criação de ‘empregos verdes’…
Como referiu, a colecção arranca com a obra “Ética: Dos fundamentos às Práticas”, sob a sua coordenação. De que modo devem as empresas incorporar na base da sua gestão os fundamentos da ética e as teorias da acção a este nível transversal?
O primeiro volume da colecção é dedicado à Ética como disciplina filosófica que efectivamente é e que a sua corriqueira invocação tem feito esquecer, com a consequente perda de objectividade e rigor. “Ética: dos Fundamentos às Práticas” constitui uma base elementar e essencial da reflexão e das práticas éticas na enunciação e definição dos conceitos fundamentais, na identificação e caracterização das teorias estruturantes, no desenvolvimento de uma argumentação bem fundamentada e coerente. Este primeiro volume confere assim idoneidade ao projecto, garante a solidez da fundamentação e a pertinência da reflexão que se segue sobre os tão diversos domínios socioprofissionais.
[quote_center]No mundo digital global a capacidade analítica e crítica é o único recurso que nos pode preservar da manipulação de ideias e acções que nos cerca[/quote_center]
Urge reconhecer que a ética não se reduz ao ‘achismo’ dominante nem tão pouco resulta de telefonemas em programas de ‘opinião pública’. Se é indubitável que todos têm direito a ter uma opinião, é certo que nem todas valem o mesmo. Se estou doente não peço opinião ao administrativo que me atende, mas aguardo pela do médico. A opinião vale na medida em que é informada, objectivamente formada e racionalmente argumentada. Assim, a ética aplicada exige conhecimentos de Ética, enquanto disciplina filosófica, conhecimento também do domínio de actividade a que se vai aplicar e metodologias adequadas para proceder a essa aplicação de modo eficiente e eficaz.
As empresas, talvez com maior afã do que outros sectores sociais, vêm há muito percebendo que a sua organização e gestão sob padrões éticos aumenta a sua rentabilidade e a satisfação de todos no trabalho (paz social), nomeadamente a organização dos espaços, a flexibilização dos horários, a disponibilização de serviços complementares na própria empresa (cuidados clínicos, creches…), e a distribuição de parte dos lucros.
Trata-se de 12 volumes dedicados a diversos domínios académico-profissionais, como Economia, Ambiente, Protecção Social ou Educação. Como se aplica a ética a estes domínios, e com que benefícios para as organizações do Estado, organizações privadas e cidadãos em geral?
As éticas aplicadas surgem na década 70 do século passado na confluência de três aspectos determinantes. O primeiro é o da queda de universais éticos, isto é, do apagamento de uma autoridade absoluta em moral (Natureza, Deus ou Razão – ao longo da história da humanidade), o que teve por consequência a procura de novos referenciais de acção num contexto tão universal quanto possível, de que é exemplo os direitos humanos. O segundo é o da democratização das sociedades, ou seja, da assunção que todo o indivíduo dotado de consciência e vontade tem direito às suas convicções e valores pessoais e, por consequência, tem uma intervenção efectiva nas opções morais sociais. O terceiro é o da responsabilização das profissões perante a sociedade, isto é, a consciência que todas as profissões têm a sua razão de existir nas necessidades das sociedades às quais lhes compete satisfazer.
[quote_center]Urge reconhecer que a ética não se reduz ao ‘achismo’ dominante nem tão pouco resulta de telefonemas em programas de ‘opinião pública’[/quote_center]
Neste novo contexto, as boas práticas de toda e qualquer actividade socioprofissional deixaram de ser única e exclusivamente determinadas por uma Ordem ou Associação profissional, em regime de autorregulação, e passaram a ter também de atender às expectativas da sociedade em relação aos procedimentos das profissões e seus profissionais, numa complementar heterorregulação das práticas. Eis o domínio específico das éticas aplicadas.
Assim sendo, as éticas aplicadas, além de reforçarem o poder do cidadão relativamente a toda e qualquer actividade socioprofissional que o afecte, e de contribuírem para a coesão social pela partilha alargada dos valores e princípios que regulam as práticas, também concorrem para a excelência da profissão que mais cabalmente serve a sociedade a que se dirige.
O que pode avançar sobre os três volumes que estão por publicar?
Os três últimos volumes de Ética Aplicada serão dedicados à Saúde, Relações Internacionais e Investigação Científica, temáticas muito diversas entre si, mas que alargam o espectro da reflexão ética que esta colecção tem vindo a traçar: as questões relativas à Saúde complementam as já abordadas no volume dedicado à Protecção Social, o de Relações Internacionais completa o percurso iniciado com o de Política, o da Investigação Científica articula-se necessariamente com o das Novas Tecnologias.
Não há nenhum que mereça destaque em detrimento de outro. Cada volume cobre uma área distinta, estabelecendo complementaridades com outros e, no seu conjunto, oferecendo ao leitor conhecimentos básicos fundamentais e práticas estruturantes essenciais em domínios de actividade social que importam ao cidadão comum. Todas as áreas privilegiadas por esta colecção são de interesse quase quotidiano para o cidadão comum, pelo que me atrevo a acrescentar que o cidadão que quer estar informado para poder intervir socialmente de forma mais pertinente terá beneficio em ir adquirindo os sucessivos volumes de Ética Aplicada.
O EA Saúde chegará ao público em Outubro; o EA Relações Internacionais, em Novembro; e o EA Investigação Científica, em Dezembro.
Que mais-valias traz a esta colecção a colaboração de personalidades destacadas em cada um dos domínios contemplados, como Bagão Félix, César das Neves, Viriato Soromenho-Marques ou David Justino, entre outros?
Sendo a autora do projecto e coordenadora dos 12 volumes, considerei que o convite a diferentes co-coordenadores para cada volume traria conhecimento e experiência específicos no respectivo domínio privilegiado. Bagão Félix foi Ministro da Segurança Social e do Trabalho e David Justino, Ministro da Educação; João César das Neves e Viriato Soromenho-Marques são professores catedráticos, com uma longa e diversificada experiência, respectivamente, no domínio económico-financeiro e ambiental e político. Estes e os demais co-coordenadores trouxeram uma mais-valia inestimável em termos de programação temática dos volumes. Com efeito, importava selecionar os temas que, em cada área socioprofissional privilegiada, se perfilavam como estruturantes da reflexão e da prática específicas, tornando-os mais abrangentes e pertinentes não só para o cidadão comum, mas também úteis para os profissionais e estudantes da actividade visada. Além disso, importava também identificar os especialistas de cada uma das vertentes abordadas para garantir a qualidade da publicação. A acção dos co-coordenadores foi, a estes níveis, inestimável.
Neste contexto, vale ainda a pena sublinhar que a ética aplicada apenas se desenvolve a partir do conhecimento objectivo e rigoroso dos domínios sobre os quais incide, uma vez que se reporta às melhores práticas na resposta à finalidade de acção e processos de desenvolvimento de cada uma das actividades socioprofissionais. Assim sendo, o conhecimento e a experiência nestes domínios, conjugada com a competência em ética, foi sempre uma mais-valia para o projecto.
Por fim, a opção de um diferente co-coordenador por volume trouxe uma diversidade acrescida de perspectivas e orientações que enriquece o edifício de ética aplicada que se tem vindo a construir.
Jornalista