Como parte integrante da sociedade civil organizada, o setor fundacional tem sobre si a responsabilidade de tomar consciência das grandes questões com que se debate a sociedade portuguesa contemporânea, em observância de uma hierarquia de prioridades onde deve avultar a ação em favor dos grupos sociais mais vulneráveis, e que tenha em conta os atavismos e debilidades estruturais da sociedade e da economia portuguesas
POR RUI PEDROTO
A Constituição da República consagra explicitamente a existência de um setor cooperativo e social, a par do setor público e privado, estando por isso o setor da economia social implicitamente inscrito no comando constitucional. Concetualmente, a expressão “economia social” configura pois um espaço socioeconómico que integra, por um lado, um conjunto variegado de organizações e, por outro, um leque de práticas com maior ou menor organicidade, umas e outras caracterizadas por não fazerem parte do Estado nem serem por este controladas e, ainda, por se encontraram todas elas subtraídas à lógica mercantil.
As fundações, em geral, e o setor fundacional empresarial, em particular, de grande relevância no espaço europeu, e com menor expressão em Portugal, inscrevem-se pois no setor da economia social, com peso e influência crescentes na sociedade e na economia nacionais.
De resto, as organizações e práticas de economia social têm fundas raízes na nossa tradição quer através do movimento cooperativo, quer por via do mutualismo e do associativismo, convocando todas estas expressões organizativas a ideia de formas de colaboração entre pessoas ou a elas dirigidas, à margem do puro interesse individual.
As instituições da economia social servem, no seu conjunto, centenas de milhares de cidadãos que beneficiam dos produtos e serviços por si gerados, tendo um papel fundamental na regulação da atividade económica, no acesso pelos cidadãos a bens e serviços que o mercado não é capaz de prover, na geração de igualdade de oportunidades, no amortecimento de ciclos económicos adversos, uma função redistributiva da riqueza, sendo, bem assim, indeclinável fator de coesão e integração sociais. Neste contexto, que papel caberá ao setor fundacional e, em especial, às fundações de empresa?
Aquilo que porventura constituirá o seu mínimo denominador comum é o facto de radicarem a sua origem no mundo empresarial, enquanto expressão organizada e sistematizada de um conceito de cidadania empresarial e enquanto veículo de uma estratégia de responsabilidade social que, não se esgotando na missão fundacional, a encara como instrumento privilegiado, recebendo para o efeito o adequado suporte económico, o qual tenderá a constituir a sua principal fonte de financiamento.
No plano motivacional aquilo que conduz as empresas à criação de fundações tem porventura a ver, como antes referido, com essa ideia moderna de cidadania empresarial, tomada de empréstimo ao conceito de cidadania individual enquanto direito-dever de ser parte ativa na vida em comunidade.
É ainda razoável supor que se filia, também, na generosidade e no espírito filantrópico dos seus instituidores, a que não é quiçá alheio um certo mimetismo perante exemplos mais avançados da forma coeva de encarar a gestão por parte das empresas, em que o seu escopo não se detém na sua função meramente económica – enquanto dispensadoras de bens e serviços socialmente necessários, produtoras de riqueza e geradoras de emprego – mas vai além dela, denotando preocupações com o bem-estar da comunidade, nos planos social, educativo, cultural e ambiental, fiéis à ideia de que não existem negócios bem-sucedidos em sociedades que falham.
Importará contudo precisar que, não se esgotando a estratégia de sustentabilidade das empresas na criação de veículos fundacionais – porquanto os grandes desafios da sustentabilidade do foro interno das organizações empresarias como sejam a geração de valor, a eco-eficiência e a inovação, a proteção do meio ambiente, a gestão das pessoas, o diálogo com as partes interessadas e as questões da ética e dos modelos de governação, devem ter o seu espaço próprio de planeamento e concretização – é contudo indispensável que as fundações empresariais, mau grado a sua dependência económica dos instituidores, respirem com o necessário grau de autonomia no cumprimento da sua missão nos limites impostos pela lei.
Tal desiderato é avesso, por um lado, ao mero seguidismo e subordinação aos interesses comerciais dos instituidores e, por outro, à sua matriz empresarial e setores de atividade económica, sem deles – de um e do outro -, por completo se demarcarem.
Acresce serem as fundações de empresa suporte e elemento favorecedor da imagem de marca e da reputação dos seus instituidores-empresas e de, na esteira da matriz empresarial dos seus instituidores, poderem ter uma maior afinidade e apetência para o desenvolvimento de certo tipo de atividades – nas áreas social, educativa, cultural ou ambiental, para citar os domínios mais impressivos – domínios esses para que disponham de melhores competências ou em que, consabidamente, desfrutem de um melhor conhecimento das realidades sociais em concreto em que se mostrem mais aptas a intervir, tirando justamente partido do próprio perfil de competências das organizações empresariais de que são emanação.
No contexto atual da economia portuguesa e, em geral, das economias europeias, fiéis à ideia de um modelo social justo e inclusivo, resistente às crises e a uma certa deriva reformista de pendor neoliberal, o peso crescente das funções sociais do Estado e seus reflexos no erário público perante os evidentes e persistentes constrangimentos orçamentais, tornam inevitável um crescente envolvimento da sociedade civil.
Da sociedade civil organizada e, em particular, do setor da economia social latamente entendido, na busca de respostas para os problemas sociais mais relevantes, satisfazendo necessidades que o Estado – pela insuficiência de meios -, o mercado – perante a sua lógica tendencialmente excludente – e a rede assistencial solidária – face à proverbial tipicidade das suas valências -, não sejam capazes de acautelar eficazmente, pela ausência ou insuficiência das respostas existentes.
Como parte integrante da sociedade civil organizada, o setor fundacional tem sobre si a responsabilidade de tomar consciência das grandes questões com que se debate a sociedade portuguesa contemporânea, em observância de uma hierarquia de prioridades onde deve avultar a ação em favor dos grupos sociais mais vulneráveis, e que tenha em conta os atavismos e debilidades estruturais da sociedade e da economia portuguesas.
É ainda vital que as fundações privilegiem o trabalho colaborativo e em rede.
Essa abordagem metodológica afigura-se crucial para dar uma resposta mais eficiente aos problemas, através da articulação e concertação de esforços numa lógica de complementaridade, subsidiária e estrategicamente orientada para intervir em áreas onde o estado, o setor privado e outras instituições do terceiro setor, denotem maiores dificuldades de cobertura.
O trabalho colaborativo e em rede deveriam pois ser o santo e senha do código aspiracional do setor fundacional, na demanda de soluções que, perante as insuficiências das políticas públicas e a lógica departamentalizada do Estado, vão ao encontro de zonas intersticiais que escapam à apreensão dessa abordagem departamentalizada, como são hoje grande parte dos problemas sociais pela sua multidimensionalidade, apelando antes para processos de governação integrada e integradora em que os cidadãos e a sociedade civil organizada, são não apenas beneficiários da ação pública, mas agentes e partícipes dos processos de mudança que lhes dizem respeito.
A este propósito, o moderno conceito de inovação social, onde vêm pontificando ideias e projetos de grande fulgor criativo, afigura-se cada vez mais como importante instrumento na conceção e aplicação de novas soluções e modelos de intervenção que atendam a questões sociais prementes, visando a resolução de um problema social concreto, potenciando a criação de valor para a sociedade e a geração de impacto social.
A geração de impacto social e a adoção de metodologias visando a sua avaliação e quantificação, são, por outro lado, uma linha de tendência já fortemente arreigada no espaço europeu e que, em Portugal, vem fazendo o seu caminho, desafiando as empresas, os investidores sociais e as entidades da economia social a integrarem instrumentos de medida nas suas estratégias de intervenção, reforçando a sua capacidade gestionária e ficando assim mais perto de atingirem os resultados esperados da sua ação.
Este processo de “aggiornamento” concetual vem romper com a filantropia de mera inspiração voluntarista, de pendor puramente caritativo ou assistencialista, no que isso significa de, a um tempo, prescindir dos resultados da ação, atendo-se à sua mera realização, e, a outro, de implícita conformação com o “establishment”, falha de qualquer impulso ou intencionalidade transformacionais.
No quadro da agenda 2030 da ONU e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, cabe às fundações de empresa tomarem a palavra e colocarem-se na linha da frente na diuturna, persistente e sempre inacabada tarefa de construção de um mundo melhor.
Membro da Direcção do GRACE em representação da Fundação Manuel António da Mota