Ao invés de se partir do princípio que as denúncias têm sempre na base intenções malévolas, cada vez mais se considera que a construção e a manutenção de ambientes éticos sólidos e que são benéficos para todas as partes interessadas, se obtém pela criação de condições de liberdade de expressão que permitem a indispensável melhoria da organização e um seu caminho mais seguro para a excelência
POR MANUELA SILVA
A imagem das pessoas que denunciam alegados comportamentos não éticos tem sido tradicionalmente controversa, na sociedade em geral e também, naturalmente, nas empresas.
Na sociedade, as apreciações oscilam entre estas pessoas serem “heróis” ou “traidores” – e muitos casos se conhecem a este propósito e com esta dicotomia de valorização – e nas empresas, pelo menos naquelas cuja história tem um peso de práticas anti-democráticas e mesmo persecutórias significativo, o simples termo “denúncia” foi, durante muito tempo, proscrito.
Contudo, os tempos mudaram muito – até pelas crises diversas das últimas décadas, que vieram evidenciar a importância decisiva de comportamentos éticos, nomeadamente para a sustentabilidade das organizações – sendo hoje é mais ou menos consensual – pelo menos do lado de um mundo mais respeitador dos direitos dos seus cidadãos – que um clima organizacional saudável pressupõe que os colaboradores possam falar, no contexto laboral, dos temas que os preocupam e que podem colocar em causa os compromissos éticos das suas empresas.
Assim, ao invés de se partir do princípio que as denúncias têm sempre na base intenções malévolas, cada vez mais se considera que a construção e a manutenção de ambientes éticos sólidos e que são benéficos para todas as partes interessadas, se obtém pela criação de condições de liberdade de expressão que permitem a indispensável melhoria da organização e um seu caminho mais seguro para a excelência.
A Diretiva Europeia de Whistleblowing, aprovada em Outubro de 2019 e a partir daí disseminada pelos diversos países da Europa, processo que se encontra em implementação – em Portugal a Diretiva foi transposta através da Lei nº 93/ 2021, de 20 de Dezembro – veio contribuir de forma decisiva para chamar a atenção das organizações para a importância de se poder falar livremente no seu seio – sempre, e obviamente, num pressuposto de boa fé sobre as situações reportadas – quer pela obrigatoriedade do estabelecimento de canais de reporte de denúncias em todas as empresas com mais de 50 trabalhadores, quer, e muito particularmente, pela obrigação do cumprimento de práticas de não retaliação – “proteção de denunciantes de infrações” – contra quem reporta comportamentos alegadamente não éticos.
O estabelecimento de um robusto mecanismo de “Whistleblowing” impõe, contudo, um plano completo de ações que o tornem efetivo e verdadeiro, e não apenas uma moda ou um rótulo de “bem fazer” em matéria de ética – para além, claro, do cumprimento de uma legislação.
Assim: é necessário assegurar um desenho do processo de gestão de denúncias claro e compreensível para todos, e tal processo tem que ser suportado por procedimentos detalhados sobre as etapas-chave: o registo das denúncias; a sua análise preliminar; a comunicação com o denunciante ao logo de todo o processo; a investigação, quando for caso disso; a apreciação em Comité de Ética; o plano de medidas correctivas; a vigilância sobre a não retaliação; etc.
Todo o suporte deste plano de ações deve ser suportado por sistemas de informação que o tornem eficiente e seguro – a questão da segurança dos dados envolvidos é um aspecto crítico deste processo! O ideal é que os canais de reporte de denúncias que permitem a operacionalização do processo sejam digitais e sejam apoiados por plataformas tecnológicas sólidas, que devem ser auditadas regularmente.
E, como enquadramento deste plano, é essencial que o modelo de governo da ética na organização seja claro e forte, assegurando a independência de quem analisa as denúncias e emite recomendações sobre elas – aqui é essencial o papel dos Comités de Ética! – num contexto de compromisso também da gestão executiva de topo na implementação de eventuais medidas correctivas. Nas empresas em que existe a função de Provedor de Ética, cuja missão essencial é de escuta independente e imparcial das denúncias de que, em total confidencialidade, partilha, o seu papel pode ser muito relevante, entre outros aspectos, na criação da indispensável “humanização” e confiança no processo de reporte de denúncias.
Fundamental é também a comunicação e o desenvolvimento em ética dos colaboradores sobre esta matéria, devendo assegurar: a compreensão dos benefícios deste processo para toda a organização, o hábito de confiar na utilização dos canais de reporte (incluindo no Provedor de Ética, se existir), a consciência sobre o valor decisivo da boa fé intrínseca às denúncias efectuadas e a eliminação dos receios sobre quaisquer atos de retaliação após denúncia.
As estatísticas que vão sendo conhecidas sobre a prática de processos de Whistleblowing, referem (no “The Whistleblowing Report 2021”, fonte EQS Group, Integrity Line, Set 2023), que aproximadamente um terço das empresas que participaram num survey realizado a este propósito, conseguiram descobrir mais de 80% de danos financeiros causados por más condutas devido à implementação de sistemas de Whistleblowing. Isto dá-nos uma perspectiva da importância deste processo. Mas, tão importante – ou quiçá ainda mais! – é o facto de ele permitir (se implementado com profundidade), que através de uma prática de comunicação transparente e responsável os colaboradores se sintam mais felizes nas suas organizações, contribuindo para elas serem mais “elevadas” do ponto de vista ético.
Directora do Gabinete do Provedor de Ética da EDP