Os trabalhadores mais valiosos na era digital não serão os melhores engenheiros ou programadores, mas os polímatas, pessoas que, a exemplo de Leonardo Da Vinci, têm um génio humano capaz de alcançar a excelência em várias áreas de conhecimento, combinando-as com criatividade a fim de criar novos produtos, serviços e processos que resolvam os problemas do mundo. A avaliar por um estudo da Deusto Business School, a polimatia vai voltar a brilhar, com toda a transversalidade da ética
POR GABRIELA COSTA

“Tenho o suficiente de artista para recorrer livremente à minha imaginação, que é mais importante que o conhecimento. O conhecimento é limitado e a imaginação abarca o mundo inteiro” – Albert Einstein

Com estas palavras, o cientista mais brilhante do século XX enfatizou a limitação intelectual do uso exclusivo de um pensamento lógico, valorizando o uso da imaginação e da criatividade dentro do pensamento científico.

Como ele, especialista em Física, Matemáticas, Música, Astronomia e Engenharia, muitos outros vultos da humanidade, desde a Antiguidade e Idade Média até ao Movimento Modernista que evolui para o pós-moderno mundo globalizado, passando pelo Renascimento e pelo Iluminismo, distinguiram-se como grandes génios das suas épocas, não tanto por dominarem uma área, mas por dominarem várias e, a partir da intersecção desses domínios, desenvolverem grandes descobertas e feitos científicos, como a sua Teoria da Relatividade Geral.

Falamos dos conhecimentos de Pitágoras, Aristóteles e Arquimedes, na Antiga Grécia; da metafísica do pensamento cristão de Alberto Magno e do seu discípulo Tomás de Aquino, no século XIII; da influência das artes dos grandes renascentistas que dão início à era moderna, como Leonardo Da Vinci e Michelangelo; das novas ideias de Copérnico, Francis Bacon, Galileo Galilei, Descartes, Newton ou Voltaire, que fazem a revolução científica dos séculos XVI e XVII; da Razão de Benjamim Franklin, Adam Smith, Kant ou Goethe, que marcou o Século das Luzes; e das teorias e invenções de Bell, Edison, Marie Curie e Elon Musk, na época contemporânea da Revolução Industrial e do Capitalismo. Todos eles, a exemplo de Einstein no início do século XX, se fizeram polímatas, isto é, mentes habituadas a questionar constantemente a realidade com facilidade para a aprendizagem e capacidade para encontrar soluções imaginativas.

[quote_center]O êxito empresarial é determinado pela adaptação dos desenvolvimentos à vida das pessoas[/quote_center]

Entre todos eles, Da Vinci, pintor, escultor, arquitecto, anatomista, cientista, matemático, engenheiro, inventor, escritor, músico e poeta, é a expressão máxima da polimatia, esse saber que levou o génio humano aos seus níveis mais elevados durante o Renascimento, e que encontra nas expressões ‘homem renascentista’ ou ‘homo universalis’ – aquele que faz com que as ideias do Humanismo gerem uma nova forma de encarar o mundo, substituindo o teocentrismo medieval pelo antropocentrismo – sinónimos deste termo que é, na sociedade especializada em que vivemos, uma espécie de ave rara.

Não obstante, a polimatia vai voltar a brilhar na era digital, de acordo com os investigadores da Deusto Business School responsáveis por um estudo recente que conclui que dominar várias áreas é a chave para inovar.

Polímata, um alquimista social

Realizado em parceria por esta escola de negócios espanhola (com campus em Bilbao e em San Sebastián) que forma líderes empresariais em estratégia digital, humanismo e competitividade e empreendimento e inovação, e pela empresa de inovação 3M, que aplica a ciência de forma colaborativa, a investigação “Polímatas: Un estudio para entender el fenómeno que llevó el genio humano a sus cotas más altas durante el Renacimiento y por qué va a volver a brillar en la era digital” revela que as pessoas com a capacidade de alcançar a excelência em várias áreas de conhecimento, com uma combinação de estruturas que podem proceder de áreas tão diversas como as artes, as ciências, os negócios, o desporto, a tecnologia ou as humanidades, serão os profissionais mais procurados no futuro.

Ou seja, o encontro entre diferentes expressões do génio humano poderá resultar num novo modelo de gestão que valoriza colaboradores cujas características de personalidade permitem combinar distintos conhecimentos com várias ferramentas intelectuais, criatividade e polivalência. Estranho? Aparentemente, e num mercado empresarial ainda fortemente marcado pela especialização, sim. Mas, acreditam os autores deste estudo que lança uma nova linha de investigação centrada no valor deste saber para a inovação, num cenário acelerado, em que a cada dez anos se duplica a produção científica, a polimatia “parece fazer um novo sentido”.

[quote_center]Os polímatas serão os profissionais mais procurados na nova economia digital[/quote_center]

A mudança tecnológica e a concorrência global geram mais incentivos do que nunca para inovar e o novo cenário da economia digital é um terreno fértil para que o polímata desenvolva todo o seu talento. Como sublinha Francisco González-Bree, professor de inovação da Deusto Business School e co-autor do estudo, a actualidade “requer um aprofundamento do chamado “efeito Medici” [popularizado a partir do livro com o mesmo título, do empreendedor e autor Frans Johansson], que procura inovações nas intersecções de sectores e disciplinas”.

A realidade já não se limita “a fundamentos lógicos”, antes caracteriza-se “por combinações inovadoras entre Arte, Ciência e Tecnologia”, e neste contexto o novo polímata é um ‘alquimista social’ que deve saber procurar inovação nas distintas conexões”, corrobora Alejandra Lopez, dirctora de Recursos Humanos da 3M Ibéria.

Neste contexto, os trabalhadores mais valiosos do futuro não serão os melhores engenheiros ou programadores, serão os polímatas, pessoas com grandes conhecimentos técnicos, mas também capazes de compreender as necessidades da empresa e dos seus clientes. E, de resto, esses colaboradores serão (e são já, em várias empresas) uma ponte de união dentro de uma equipa, melhorando fluxos de comunicação, agilizando a apresentação de objectivos e mostrando caminhos para se chegar da forma mais eficiente à finalização dos processos.

Afinal, hoje em dia o êxito empresarial é determinado não tanto pelo grau de sofisticação tecnológica dos desenvolvimentos, mas sim, pela sua adaptação à vida das pessoas. E a verdade é que, como afirma Estrella Cabrero, responsável de inovação da 3M Ibéria, muitas empresas já “estão a gerar um valor incrível através da união de diferentes ramos da tecnologia para criar novos produtos, serviços e processos complexos destinados a resolver os grandes e pequenos problemas do mundo”. E, consequentemente, a enveredar por modelos de gestão mais éticos.

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Os serial entrepreneurs da cross fertilization

Durante os últimos dois séculos a sociedade ocidental sustentou-se sobre o paradigma da hiperespecialização. De tal forma, que é difícil imaginar que uma combinação de realizações como as que empreendeu Da Vinci possa ser alcançada por uma só pessoa no século XXI. Génios como o seu, para além de serem raros, parecem não enquadrar-se num mundo desumanizado pela competitividade individualista, onde a demarcação entre conhecimentos desde os primeiros anos de escola torna impossível que mentes assim tão privilegiadas sejam reconhecidas não em uma área concreta, mas por serem universais e aspirarem à excelência em cada manifestação do espírito humano. O espartilho académico e profissional que domina o modelo vigente desde a revolução industrial vem condicionando o êxito da mestria de polímatas como ele, até mesmo para desenvolverem interdisciplinaridade dentro de uma mesma família de saberes humanísticos, científicos ou artísticos.

Face à tendência para enveredar por ramos de especialidade, a polimatia é encarada com uma certa conotação negativa, por parecer significar uma distracção relativamente à área de trabalho exclusiva em que deve estar concentrado cada profissional, numa popularização da expressão “aprendiz de muitos ofícios, mestre de nenhum”.

[quote_center]Numa sociedade hiperespecializada, a polimatia revela-se um elemento chave de inovação[/quote_center]

Esta dicotomia, que anula qualquer ideal de universalidade e de rompimento com a clivagem forçada do intelecto pelo menos desde o final do período do Iluminismo, em prol dos níveis de produtividade e riqueza, pode e deve hoje ser questionada: perante as imensas possibilidades de desenvolvimento da polimatia graças às novas tecnologias, que valor traz o ressurgimento dos homens universais? Poderão eles fazer avançar com a ética que se impõe a ciência e a tecnologia? Poderão contribuir para que as empresas alinhem melhor a inovação com a satisfação das necessidades concretas dos cidadãos actuais? E contribuir para a criatividade da engenharia e a vanguarda da cultura? As respostas são todas afirmativas. “Estamos perante uma oportunidade única de assistir ao contributo deste fenómeno para o progresso técnico, económico e humano”, garantem os investigadores da Deusto Business School.

Numa sociedade ainda hiperespecializada, a polimatia revela-se como um elemento chave de inovação, que muitas empresas já estão a aproveitar. E, na sociedade da informação, “tal como a globalização esbateu fronteiras entre países, o frenético desenvolvimento da era digital está a diluir as do conhecimento”, reduzindo os esforços para adquiri-lo, nomeadamente económicos e de tempo, defendem.

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Fará, então, algum sentido exigirmos aos jovens de 18 anos que saibam o que querem fazer para o resto da sua vida? Devemos continuar a conduzi-los para carreiras fortemente especializadas? A geração Z (a dos jovens que nasceram na era da internet, entre 2000-2010) substitui tendencialmente a autoridade pela pertinência, quando quer informar-se. A sua noção de conhecimento representa mais uma cloud indexada que uma árvore com os vários níveis dos ramos do saber. A sua aprendizagem é cada vez mais feita just-in-time, de tal modo que não procuram um curso sobre determinada matéria, mas antes informação sobre a mesma no youtube, em fóruns e blogs, em TEDx talks.

Neste contexto, os Massive Online Open Courses (MOOC), cujas maiores plataformas são, respectivamente, a Coursera (da Universidade de Stanford), a edX (do MIT e da Universidade de Harvard) e a Udacity (também lançada através de uma experiência de Stanford), assumem-se como a solução ideal para uma formação pluridisciplinar dos nativos digitais.

[quote_center]A noção de conhecimento da Geração Z representa mais uma cloud indexada que uma árvore com ramos do saber[/quote_center]

Mas, mesmo perante estas novas tendências, poderá a polimatia chegar a ser aceite como algo natural e benéfico, ou sucumbirá esta geração (a próxima, no mercado de trabalho) às dinâmicas que ainda imperam no meio académico e nas empresas? “Inovar é gerar novas combinações de recursos e ideias existentes”, disse, já em 1934, o economista e cientista político austríaco Joseph Schumpeter. E, portanto, ter à distância de um click todo o conhecimento acumulado em qualquer área de saber facilitará a que, no futuro, as comunidades de especialistas cedam perante as vantagens que os novos polímatas podem trazer à sociedade.

De resto, há muito que estas vantagens emergiram, graças a feitos conseguidos através da chamada cross fertilization (fertilização cruzada), em áreas como a biologia, onde a invenção do velcro e do sonar são, porventura, os melhores exemplos da sinergia entre esta disciplina, química e engenharia. Por outro lado, a revolução tecnológica está a impulsionar as start-ups em competência, colaboração ou convergência com as grandes corporações, consolidando a tendência para voltar a valorizar a transversalidade no conhecimento.

De Silicon Valley vêm os exemplos mais notórios (entre tantos outros que são referidos no estudo da Universidade de Deusto). Desde logo o de Steve Jobs, que revolucionou seis indústrias e cuja mensagem transmitida no seu célebre discurso aos recém-chegados estudantes a Stanford, em 2005, é paradigmática do actual conceito de serial entrepreneurs (empreendedores em série): como recordou aos jovens, o Macintosh foi o primeiro computador que permitiu personalizar a tipografia e esta novidade, copiada pouco depois pelos seus concorrentes, não teria ocorrido se ele não tivesse assistido a aulas de caligrafia.

Como diz Steven Johnson, autor do livro Where good ideas come from” (que desmistifica com exemplos concretos a ideia de que os avanços disruptivos da humanidade foram fruto de génios que viveram de costas voltadas para tudo aquilo que não tinha a ver com o seu trabalho), se quer cultivar uma mente inovadora, “passeie com frequência, siga as suas intuições, anote tudo mas mantenha as suas folhas desordenadas. Abrace as descobertas ao acaso, cometa erros, tenha muitos hobbies, frequente cafés, deixe que os demais utilizem as suas ideias, peça emprestadas e recicle as ideias dos outros”.

Jornalista