Não existe forma alguma de prever o que trará esta presidência simplesmente porque Donald Trump não tem qualquer ideologia que se estenda para além de si próprio. Racista, sexista, homofóbico: ele é todas estas coisas e nenhuma delas, dependendo do momento
POR MISHA
PINKHASOV

Na manhã a seguir às eleições nos Estados Unidos, acordei e senti vergonha do meu país. Umas horas antes, por volta das duas da madrugada, um optimismo cauteloso daria lugar a uma certa apreensão quando se tornou claro que o estado da Florida não favoreceria Hillary Clinton. Fui para a cama pessimista, mas ainda com esperança. Todavia e tristemente, as manchetes matinais confirmariam o pior: uma vitória improvável de Donald Trump, depois de uma campanha repleta de mentiras, de teorias da conspiração, de palavras de ódio e de comportamentos escandalosos, mas ausente de planos ou posições políticas, bem como de respeito pela Constituição Americana e pelos princípios da democracia.

Todavia, também senti vergonha de mim mesmo. Como se este resultado fosse, em parte, culpa minha. Como se não tivesse trabalhado o suficiente para o evitar. Como se tivesse sido complacente e indolente. Mas e obviamente, se os Clintons, os Obamas, até os Bushes, já para não falar de Beyoncé, de Madonna e do enorme exército de celebridades, jornalistas, activistas, escritores e intelectuais que trabalharam em conjunto com os meus pequenos esforços não conseguiram mudar a mente dos eleitores americanos, por que motivo deveria eu culpar-me a mim mesmo?

Nasci na cidade de Nova Iorque e vivi na Europa ao longo de quase 20 anos. Esta combinação confere-me uma determinada visão do mundo a qual considero particularmente abrangente e informada. E foi tarde – demasiado tarde – quando, e ao longo destas eleições, me apercebi de histórias de pessoas em locais como a Virginia ocidental, o Kentucky e o Ohio, cujo mundo e formas de vida estão sob o ataque de uma sociedade pluralizada, acelerada e disruptiva. E não me refiro só a agricultores, mineiros e trabalhadores fabris que vivem em áreas rurais e pobres, nas quais são privados das oportunidades geradas pela globalização e pela mudança tecnológica. São também os motoristas de táxi, os trabalhadores da construção e os funcionários dos serviços municipais que vivem em cidades grandes e ricas como Nova Iorque, e que não conseguem competir com os beneficiários da nova economia.

Os ricos e os empreendedores estigmatizam os pobres pela sua pobreza e preguiça. E os intelectualmente ricos e cosmopolitas estigmatizam os provincianos pela sua ignorância e preconceito. Mas, e ao fazerem-no, negligenciam a sua frágil humanidade. Bem como o seu sofrimento.

[pull_quote_left]O âmago das grandes revoluções sociais de há um século não residiu na desigualdade em si mesma. Mas sim na indiferença visível face a essa desigualdade por parte das elites e de outros para quem as pessoas olham em busca de liderança. E foi neste ponto que os intelectuais humanistas e iluminados da América falharam[/pull_quote_left]

Sim, são maioritariamente brancos num mundo crescentemente multicolorido. Sim, são maioritariamente homens num mundo crescentemente multigénero. Sim, são maioritariamente trabalhadores num mundo que crescentemente valoriza os pensadores. Mas os seus medos e os seus problemas são reais, mesmo que as suas soluções para inverterem o tempo e deterem o progresso não passem de meras fantasias. Mesmo que prefiram culpar os outros em vez de se confrontarem com a sua própria falta de preparação para lidar com um mundo em mudança. Mesmo que estejam dispostos a confiar num homem que promete qualquer coisa a qualquer um apenas para ganhar uma eleição, mas que demonstrou, ao longo de toda a sua vida, ter apenas interesse na sua glória pessoal.

O âmago das grandes revoluções sociais de há um século não residiu na desigualdade em si mesma. Mas sim na indiferença visível face a essa desigualdade por parte das elites e de outros para quem as pessoas olham em busca de liderança. E foi neste ponto que os intelectuais humanistas e iluminados da América falharam. Lemos as palavras uns dos outros, concordamos uns com os outros, e de forma presunçosa mergulhamos no nosso mundanismo, decidindo que isto é tudo o que existe.

No dia que se seguiu às eleições, o cineasta Michael Moore escrevia no Facebook: “Todos devem parar de dizer que estão ‘estupefactos’ e ‘chocados’. O que vocês querem dizer é que estavam no interior de uma redoma e que não prestaram atenção aos vossos concidadãos americanos e ao seu desespero. Depois de ANOS a serem negligenciados por ambas as partes, a ira e a necessidade de vingança contra o sistema apenas cresceu”.

O que inverte o pressuposto do oprimido e do opressor. E nos recorda que os progressos que ditam não deixar ninguém para trás, significam que não se pode deixar ninguém para trás. Nem os que mais lentamente chegarão à mudança.

Desta forma, a vitória de Trump é uma revolução na verdadeira acepção da palavra. Mas, e tal como aconteceu com Robespierre, Lenine e Khomeini, será que os revolucionários compreendem realmente o que está em jogo? Tal como escreveu o jornalista Jacques Mallet du Pan em 1793, “a Revolução devora os seus filhos”.

[pull_quote_left]Existem razões para acreditar que a presidência de Trump não irá alcançar nada. A forma que tem para se elevar a si mesmo é destruindo o equilíbrio dos outros. Deixou o Partido Republicano em desordem e terá de se preocupar com potenciais facadas nas costas. Mesmo com o controlo do Senado, da Câmara dos Representantes e, muito provavelmente, do Supremo Tribunal, não existem garantias de que os republicanos funcionem como uma frente unida[/pull_quote_left]

É tentador torturarmo-nos com cenários catastróficos. Na verdade, não existe forma alguma de prever o que trará a presidência de Trump simplesmente porque Donald Trump não tem qualquer ideologia que se estenda para além de si próprio. Racista, sexista, homofóbico: ele é todas estas coisas e nenhuma delas, dependendo do momento. Mas a sua campanha e a sua vitória legitimaram um tipo de comportamento sem civilidade, o qual era pública e politicamente inaceitável até há muito pouco tempo. O que é extremamente perturbador. E, para além disso, as pessoas são meras ferramentas para serem usadas ao serviço dos seus propósitos. A forma como irá fazê-lo de dia para dia – seja em modo tirano maquiavélico ou em estilo de déspota iluminado – ninguém sabe. Porque a única coisa consistente que existe em Trump é a sua inconsistência.

O seu discurso de vitória foi surpreendentemente gracioso, conciliador até. Famoso por se recusar a seguir um guião, leu, cuidadosamente, todas as linhas do teleponto, ocasionalmente num tom aborrecido e similar a quem verifica os termos de um contrato. Mas terão vindo essas palavras do seu coração? Acreditará nelas? Ou tratou-se apenas de uma concessão aos seus assessores políticos – ao estilo do que já fez anteriormente, mas que nunca manteve mais do que uns poucos de dias? É fácil ser afável na euforia da vitória. Mas os problemas de Trump começam quando enfrenta um adversário, o que acontece muitas vezes na política.

Aos seus críticos disse: “para todos os que não me escolheram apoiar no passado peço a vossa orientação e ajuda para que possamos trabalhar em conjunto e unificar o nosso grande país”. Mas significará esta unificação uma visão partilhada ou apenas uma aquiescência da visão de Trump?

E acrescentou: “vamos trabalhar com todos os países que estejam dispostos a trabalhar connosco”. Mas que condições estarão subjacentemente escondidas para “os que estão dispostos a trabalhar connosco”?

Comprometeu-se também “a reconstruir as nossas infra-estruturas (…) as quais darão emprego a milhões de pessoas”. O que é uma medida bem-vinda, se bem que tardia. Mas a verdade é que não existe uma única coisa que tenha dito durante a campanha e que não tenha desdito mais tarde. Por que motivo acreditar que desta vez será diferente?

Existem razões para acreditar que a presidência de Trump não irá alcançar nada. A forma que tem para se elevar a si mesmo é destruindo o equilíbrio dos outros. Deixou o Partido Republicano em desordem e terá de se preocupar com potenciais facadas nas costas. Mesmo com o controlo do Senado, da Câmara dos Representantes e, muito provavelmente, do Supremo Tribunal, não existem garantias de que os republicanos funcionem como uma frente unida. Combinemos isso com a forma caótica com que Trump geriu a sua campanha, em conjunto com uma ampla, intensa e organizada oposição democrata, e é muito possível que os próximos quatros anos sejam um período de paralisia.

O lado positivo é que não existirá mais “business as usual”. Donald Trump quebrou finalmente a aliança funesta entre fé e finança no campo republicano. E forçou os democratas a admitir que eles não são os pluralistas que pensavam ser. Recordo-me de ter dito, antes das primárias, que, independentemente de quem ganhasse, a próxima administração seria um período de debate aceso e de inacção plena. É triste pensar que será o medo e não a esperança que ditará o tom, mas a América está demasiado dividida para qualquer outra coisa.

*Sobre o autor:
Misha Pinkhasov é co-fundador da consultora em estratégia NAIR-SAFIR, cuja missão é “colocar as pessoas nos negócios” através de práticas que criam valor partilhado entre as empresas, as suas comunidades e os indivíduos que fazem parte de ambas.

É igualmente o co-autor do livro “Real Luxury: How Luxury Brands Can Create Value for the Long Term” (Palgrave Macmillan 2014, www.realluxurybook.com).

Misha Pinkhasov trabalhou, ao longo de 18 anos, em áreas como a comunicação internacional, políticas públicas, mercados financeiros, marketing e media. Foi responsável de comunicação na OCDE ao longo de nove destes 18 anos, e é actualmente consultor de empresas privadas. Possuí um MBA da ESSEC Business School em Paris e um bacharelato em Economia do Consumo da Cornell University, em Nova Iorque. Vive em Lisboa, Portugal.

Co-fundador da consultora em estratégia NAIR-SAFIR, cuja missão é “colocar as pessoas nos negócios” através de práticas que criam valor partilhado entre as empresas, as suas comunidades e os indivíduos que fazem parte de ambas. É igualmente o co-autor do livro “Real Luxury: How Luxury Brands Can Create Value for the Long Term" (Palgrave Macmillan 2014, www.realluxurybook.com)