POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
No dia 18 de Maio de 2018 foi apresentado no Vaticano um documento conjunto da Congregação para a Doutrina da Fé, a autoridade máxima em questões doutrinais, e o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, instituição criada em 2016, englobando os vários departamentos sociais da Curia Romana (Conselhos Pontifícios Justiça e Paz, ‘Cor Unum’ (acção caritativa), Pastoral da Saúde e Migrantes/Itinerantes).
O texto, intitulado “Oeconomicae et Pecuniariae Quaestiones. Considerações para um Discernimento Ético sobre Alguns Aspectos do Actual Sistema Económico-Financeiro”, merece a atenção de todos, sobretudo se envolvidos no mercado financeiro.
O aspecto mais relevante é a Santa Sé se pronunciar, pela primeira vez, sobre alguns detalhes do mercado de capitais, como derivados financeiros, credit default swaps, LIBOR, shadow banking e offshore, entre muitos outros, temas que dominam a “secção III – Algumas pontualizações no contexto contemporâneo». Claro que os princípios da posição católica acerca das finanças em geral, e estes mecanismos em particular, estão definidos há muito, em sucessivas encíclicas, sobretudo nas últimas décadas. Mas não existia ainda um texto doutrinal que descesse a tal pormenor.
A tarefa não é fácil. Os temas do capital, crédito, produtos financeiros são, como se sabe, dos mais controversos hoje em dia, sendo generalizada e intensa a crítica devastadora do sistema. Não falta quem ache que o sistema financeiro é o inferno na terra. Pensar em Jesus na bolsa de valores é tão chocante como vê-Lo a jantar em casa de publicanos e pecadores. Mas era precisamente isso que Ele tendia a fazer. Quando um dia os fariseus O censuravam por isso, «Jesus ouviu-os e respondeu-lhes: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, mas sim os doentes.Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Porque Eu não vim chamar os justos, mas os pecadores.”» (Mt 9, 12-13).
[quote_center]Não falta quem ache que o sistema financeiro é o inferno na terra[/quote_center]
O texto é muito mais interessante e profundo do que parece aos muitos que não entendem a sua posição. Aquilo que mais o distingue é o equilíbrio. A Doutrina Social da Igreja nunca embarca em condenações genéricas e globais, que tantos activistas gostam de fazer, mas também nunca evita uma severa chamada à responsabilidade dos envolvidos nos problemas. Normalmente isso costuma irritar todas as partes. Os críticos das finanças queriam ataques mais fortes da hierarquia católica, enquanto os próprios financeiros se sentem injustiçados pelas censuras. Além disso, aqueles que, mergulhados nas questões técnicas do sector, tendem a ignoram as análises morais, descartam o documento como generalidades sem aplicação. No entanto, quem pretender viver como cristão neste complexo mundo dos empréstimos e investimentos, tem aqui um documento precioso, que deve meditar com atenção e seriedade.
Logo no princípio são afirmados os critérios fundamentais:”Nenhum ganho é realmente legítimo quando diminui o horizonte da promoção integral da pessoa humana, da destinação universal dos bens e da opção preferencial pelos pobres. São estes três princípios que se implicam e se exigem reciprocamente na perspectiva da construção de um mundo que seja mais equitativo e solidário” (10). Estes pontos, que são pilares básicos da doutrina cristã, têm relevância central nas finanças. Pode dizer-se que todo o resto do texto é apenas explicitação desta estrutura essencial.
Ninguém pode acusar a Nota de omitir a importância do mercado e do crédito para o bem-estar das populações. “A tal propósito, como não pensar na insubstituível função social do crédito, cuja disponibilidade incumbe em primeiro lugar a intermediadores financeiros habilitados e confiáveis” (16). Mas este apoio vem sempre ligado a uma intensa exigência moral: “Também o dinheiro é por si mesmo um instrumento bom, como muitas coisas de que o homem dispõe: é um meio a disposição da sua liberdade e serve para alargar as suas possibilidades. Este meio pode, porém, voltar-se facilmente contra o homem” (15).
[quote_center]Os críticos das finanças queriam ataques mais fortes da hierarquia católica, enquanto os próprios financeiros se sentem injustiçados pelas censuras[/quote_center]
A grande crítica está reservada a um dos temas centrais da Doutrina Social da Igreja, desde os seus primórdios, na encíclica Rerum Novarum de 1891, e que é particularmente visível nas finanças: a “inversão de ordem entre os meios e os fins, em que o trabalho se transforma de bem em ‘instrumento’ e em que o dinheiro se torna de um meio em ‘fim?” (15). «Neste sentido, onde o mero ganho é colocado no vértice da cultura de uma empresa financeira, ignorando as contemporâneas exigências do bem comum – coisa que hoje é um facto bastante difundido também nas escolas de negócios prestigiosas – cada instância ética é de facto percebida como extrínseca e justaposta à ação empreendedora” (23).
Outro grande valor do documento é a abordagem inclusiva dos problemas, adicionando-lhe dimensões que muitas vezes ficam omissas: “O mercado, graças aos progressos da globalização e da digitalização, pode ser comparado a um grande organismo, em cujas veias correm, como linfa vital, grandíssima quantidade de capitais. Levando em consideração esta analogia, podemos então falar de uma ‘saúde’ de tal organismo, quando os seus meios e instrumentos realizam uma boa funcionalidade do sistema, cujo crescimento e difusão da riqueza caminham harmonicamente. Uma saúde do sistema que depende de saudáveis ações singulares que são realizadas”(19).
Não é este o lugar para entrar nos detalhes acerca de instrumentos e questões particulares que, como se disse, é a grande novidade do documento. O essencial é dizer que este texto constitui uma referência preciosa para um sector decisivo da actualidade, mas que tem de ser lido de forma correcta, sem preconceitos e ideologias, no espírito do doente que precisa do único Médico.
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas