POR HELENA OLIVEIRA
“Nunca como hoje as temáticas económicas e financeiras atraem tanto a nossa atenção, pelo motivo da crescente influência exercitada pelo mercado em relação ao bem-estar material de boa parte da humanidade. Isto requer, de uma parte, uma adequada regulação das suas dinâmicas, e de outra, uma clara fundamentação ética, que assegure ao bem-estar conseguido uma qualidade humana das relações que os mecanismos económicos, sozinhos, não podem produzir”.
É assim que começa o documento “Oeconomicae et pecuniariae quaestiones: considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do actual sistema económico-financeiro”, apresentado no Vaticano a 18 de Maio último, pelo cardeal Peter Turkson, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral e por Dom Luis Francisco Ladaria Ferrer, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, entidades que, em conjunto, foram responsáveis pela sua redacção e publicação.
Apesar de serem vários os aspectos do documento que merecem uma análise profunda, o enfoque dado à toxicidade dos sistemas financeiros é meritório, sendo que o mesmo oferece alertas e advertências sérias sobre este sector específico, em particular quando e na actualidade, a crise financeira que estalou em 2008 parece ter caído no esquecimento dos seus principais responsáveis. Na verdade, e uma década passada sobre o seu deflagrar e como se pode ler no documento“a recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da actividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real”.Mas a verdade é que e como já enunciava o Papa Francisco na sua encíclica Laudato si “embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta porém uma reacção que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo”.
[quote_center]São urgentes novos sistemas económicos que promovam um desenvolvimento humano integral[/quote_center]
E é por isso que a Congregação para a Doutrina da Fé, cujas competências integram igualmente as questões de natureza moral – e quanta imoralidade caracterizou a crise económica e financeira -, em colaboração com o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, sentiu a necessidade de “realizar uma reflexão ética sobre alguns aspectos da intermediação financeira, cujo funcionamento, quando foi desvinculado de adequados fundamentos antropológicos e morais, não só produziu evidentes abusos e injustiças, mas também revelou-se capaz de criar crises sistémicas e de alcance mundial. Trata-se de um discernimento oferecido a todos os homens e mulheres de boa vontade”, pode também ler-se no documento.
De acordo com a apresentação do cardeal Peter Turkson, é importante não esquecer que “um aspecto chave da vida em comunhão, como qualquer família sabe, é administrar da melhor forma possível os recursos existentes nas nossas casas” e, dado que vivemos numa casa comum, como também Francisco tão bem relembrou, “enquanto família global que aspira a uma coexistência pacífica, somos também responsáveis por gerir ou administrar os bens dessa casa – o planeta – da melhor forma possível. E “é isso que a palavra “economia” – oiko-nomics – verdadeiramente significa”, acrescenta ainda o cardeal, sublinhando também a necessidade da emergência de novos sistemas económicos que promovam um desenvolvimento humano integral. O mesmo recorda o Oeconomicae et pecuniariae quaestiones (OPQ), quando explicita que “está em jogo o autêntico bem-estar da maior parte dos homens e das mulheres do nosso planeta, os quais correm o risco de serem confinados de maneira crescente às margens, de serem ‘excluídos e descartados’ – como também escreveu o chefe da Igreja Católica na exortação apostólica Evangelii gaudium – do progresso e do bem-estar real, enquanto algumas minorias desfrutam e reservam somente para si substanciais recursos e riquezas, indiferentes à condição dos demais”.
O prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral afirmou ainda que “numa casa onde reina o individualismo, os seus membros não conseguem prosperar integralmente” e, fazendo uma analogia com um mundo onde o individualismo é igualmente “rei”, também o desenvolvimento integral se torna impensável. E é por isso, acrescenta, que é vital um sistema económico saudável que estabeleça relações humanas prósperas. E, para ajudar a gerar esse sistema, diz ainda, “este documento conjunto recorda-nos que os recursos do mundo são destinados a servir a dignidade da pessoa humana e devem estar disponíveis para servir o bem comum”. Na Doutrina Social da Igreja (DSI) tal é conhecido como o destino universal dos bens, o qual se assume como a “regra de ouro para a conduta social” e “o primeiro princípio de toda a ordem ético-social”.
[quote_center]Se nada mudar, “cada sistema social, político e económico está destinado no longo prazo a falir e a implodir”[/quote_center]
O documento em causa alerta também para que se nada mudar, “cada sistema social, político e económico está destinado no longo prazo a falir e a implodir” e que, tal como escreve Francisco também na Evangelii gaudium, se queremos o bem real para os homens, “o dinheiro deve servir e não governar!”. Adicionalmente, e como declarou ainda o cardeal Peter Turkson e tendo em conta que para uma boa gestão dos recursos, é imperativa a existência de orientações ou regulações, também é sabido que estas podem ser mais técnicas ou matemáticas, enquanto outras serão mais éticas, dado que a economia e na verdade, contém as duas dimensões. “Mas apesar de esta verdade continuar a servir a actualidade, na prática, são muitos os agentes económicos que o esqueceram, sendo igualmente verdade que existe uma enorme resistência à ‘matematização’ da disciplina”, afirma ainda. É por este motivo que este documento conjunto “oferece algumas orientações ou regulamentações por parte do outro lado do espectro, com a esperança de que seja possível ajudar [os agentes económicos] a gerir os recursos mundiais com liberdade, responsabilidade, justiça, solidariedade e amor”.
Os três princípios para um mundo mais equitativo e solidário
Na segunda parte do documento – Considerações elementares de fundo – que defende a “economia centrada na pessoa humana”, é analisado de forma mais detalhada um conjunto de princípios que devem formar a base das nossas acções e que integram, por excelência, a dignidade humana, a antropologia relacional (a “comunhão”), o bem comum, o destino universal do bens, a solidariedade e a subsidiariedade e a imoralidade próxima, esta última referindo-se particularmente ao facto de, e apesar da comercialização de alguns instrumentos financeira ser lícita, em situações de assimetria “aproveitar-se das lacunas conhecidas ou da fragilidade contratual de uma das contrapartes, o que constitui por si mesmo uma violação da devida exactidão relacional e é já uma grave infracção do ponto de vista ético”.
Como explicou também, na apresentação do documento, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé – e confessando não ser um especialista no assunto -, o propósito destas Considerações é o de declarar claramente que, “na raiz da disseminação de práticas financeiras desonestas e predatórias existe, acima de tudo, uma miopia antropológica e uma progressiva crise do homem”. Dom Luis Ladaria Ferrer afirma que “o homem da actualidade, não sabendo quem é, nem o que está a fazer no mundo, não sabe sequer como agir bem, acabando por ficar à mercê da conveniência do momento e dos interesses que dominam o mercado”. A este respeito, o documento recorda que a antropologia relacional ajuda o homem a reconhecer a validade das estratégias que procuram a qualidade global da vida, em detrimento do aumento indiscriminado dos ganhos, as quais buscam também um bem-estar que se quer integral, “de todo o homem e de todos os homens”.
[quote_center]“Na raiz da disseminação de práticas financeiras desonestas e predatórias existe, acima de tudo, uma miopia antropológica e uma progressiva crise do homem”[/quote_center]
Quanto à legitimidade dos ganhos, pode ler-se no documento que “nenhum ganho é realmente legítimo quando diminui o horizonte da promoção integral da pessoa humana, do destino universal dos bens e da opção preferencial pelos pobres. São estes três princípios que se implicam e se exigem reciprocamente na perspectiva da construção de um mundo que seja mais equitativo e solidário”. Para o economista João César das Neves, que assina, nesta edição, um artigo de Opinião sobre esta matéria, “estes [três] pontos, que são pilares básicos da doutrina cristã, têm relevância central nas finanças”.
Secundado pelo documento, no qual se lê que “ a nossa época revelou as limitações de uma visão individualista do homem, entendido principalmente como consumidor, cuja vantagem consistiria antes de tudo numa optimização dos seus ganhos pecuniários”, o prefeito da Congregação para a Doutrina da Féafirma também que “o lucro do mais forte sobrepôs-se ao bem autêntico e transformou-se no verdadeiro factor dominante nas relações económicas e sociais”. E, acrescenta que, desta forma, “o bem comum desapareceu, em muitos ambientes, do horizonte da vida, sendo que o conflito dos relacionamentos aumentou e as desigualdades tornaram-se mais pronunciadas”.
Como se pode ler também no OPQ, apesar de “o ganho poder ser sempre procurado, mas não a qualquer custo, nem como referência totalizante da economia”, o que na verdade aconteceu e acontece, assegura Dom Luis Ferrer, é que “os sujeitos económicos mais fortes transformam-se em superstars e apoderam-se de quantidades astronómicas de recursos, recursos esses cada vez menos igualmente distribuídos e crescentemente concentrados nas mãos de uns quantos”, acrescentando ainda que é inacreditável que dez pessoas possam ter em sua posse quase metade de toda a riqueza produzida no mundo, facto este que se tornou uma amarga realidade.
Como sublinha o documento, “hoje é também evidente que a liberdade de que gozam os actores económicos, se compreendida de modo absoluto e distante da sua intrínseca referência à verdade e ao bem, tende a gerar centros de supremacias e a inclinar na direcção de formas de oligarquias que no final prejudicam a eficiência do sistema económico. Deste ponto de vista, é sempre mais fácil perceber que diante do crescente e penetrante poder de importantes agentes e grandes redes económico-financeiras, aqueles que deveriam exercer o poder político, ficam desorientados e impotentes pela supranacionalidade daqueles agentes e pela volatilidade dos capitais por eles geridos. Eles falham assim em responder à sua vocação original de servidores do bem comum, transformando-se em sujeitos ao serviço de interesses estranhos àquele bem. (…) “Tudo isto torna urgente mais do que nunca uma renovada aliança, entre agentes económicos e políticos, na promoção daquilo que serve ao completo desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda sociedade, conjugando ao mesmo tempo as exigências da solidariedade com aquelas da subsidiariedade”.
[quote_center]“Nenhum ganho é realmente legítimo quando diminui o horizonte da promoção integral da pessoa humana, do destino universal dos bens e da opção preferencial pelos pobres”[/quote_center]
Ao contrário do que se possa pensar, nesta elaboração conjunta do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano e da Congregação para a Doutrina da Fé, o dinheiro é apresentado no documento como “um instrumento bom”, tal como “o financiamento do mundo empreendedor é positivo” e a “função social do crédito é insubstituível”. O problema é que “o lucro do capital coloca fortemente em risco, e corre o risco de suplantar, os rendimentos do trabalho, comummente confinados às margens dos principais interesses do sistema económico”, sendo que este, e a dignidade que o integra, pode estar mais em risco e perder também “a sua qualidade de ‘bem’ para o homem”. Consequentemente, o próprio trabalho, em conjunto com a dignidade que o caracteriza, está em risco crescente de perder o seu valor enquanto um “bem” para a pessoa humana e a transformar-se num mero meio de troca no interior de relações sociais assimétricas.
E é exactamente nesta inversão de ordem entre os meios e os fins, na qual o trabalho enquanto um bem se transforma num “instrumento” e o dinheiro enquanto um “meio” se transfigura em um “fim”, que a irresponsável e amoral “cultura do descarte” encontra um terreno fértil. “Essa cultura exclui grandes massas da população, privando-as de um trabalho digno e tornando-as sem perspectivas e sem vias de saída”. Como escreve também o Papa Francisco na exortação apostólica Evangelii gaudim, “já não se trata simplesmente do fenómeno de exploração e opressão, mas de uma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas resíduos, ‘sobras’”.
Ainda a propósito da insubstituível função social do crédito, cuja disponibilidade incumbe em primeiro lugar a intermediários financeiros habilitados e confiáveis (…),“ parece claro que aplicar taxas de juros excessivamente elevadas, não sustentáveis pelos sujeitos que tomaram os créditos, representa uma operação não somente ilegítima eticamente, mas também disfuncional à saúde do sistema económico”. O documento chama a atenção para a vocação principal da actividade financeira de serviço à economia real, na qual é chamada a criar valor, com meios moralmente lícitos, e a favorecer a dispersão do capital com o propósito de gerar uma circularidade virtuosa de riqueza. Os exemplos positivos recaem nas cooperativas de crédito, no microcrédito, bem como no crédito público ao serviço das famílias, das empresas, das comunidades locais, sem esquecer o crédito de ajuda aos países em vias de desenvolvimento.
Sobretudo neste âmbito no qual o dinheiro pode manifestar todas as suas potencialidades positivas, e como sublinha o documento, “ torna-se claro que não é eticamente legítimo expor a risco indevido o crédito derivado da sociedade civil utilizando-o para objectivos predominantemente especulativos” (…), sendo que o que se torna inaceitável sob o ponto de vista ético, não é simplesmente lucrar, mas sim o aproveitar-se da desigualdade para vantagem própria, com o objectivo de criar lucros substanciais que prejudicam os outros.
[quote_center]“O ganho pode ser sempre procurado, mas não a qualquer custo, nem como referência totalizante da economia”[/quote_center]
Como é referido no final destas Considerações, “a finalidade especulativa, particularmente no âmbito económico-financeiro, arrisca hoje suplantar todos os outros objectivos principais que integram a substância da liberdade humana”. Esta realidade está a deteriorar “o imenso património de valores que faz da nossa sociedade civil um lugar de convivência pacífica, de encontro, de solidariedade, de regenerante reciprocidade e de responsabilidade pelo bem comum. Neste contesto, palavras como “eficiência”, “competição”, “liderança”, “mérito” tendem a ocupar todo o espaço da nossa cultura civil, assumindo um significado que acaba por empobrecer a qualidade das trocas, reduzida a meros coeficientes numéricos.
Receitas para desintoxicar o organismo e a urgência da transparência
“O mercado, graças aos progressos da globalização e da digitalização, pode ser comparado a um grande organismo, em cujas veias correm, como linfa vital, uma enorme quantidade de capitais. Levando em consideração esta analogia, podemos então falar de uma ‘saúde’ de tal organismo, quando os seus meios e instrumentos realizam uma boa funcionalidade do sistema, cujo crescimento e difusão da riqueza caminham harmoniosamente”.
Na terceira parte do documento conjunto tecem-se duras críticas aos sistemas bancário e financeiro, ao mesmo tempo que se oferecem propostas para alterar, significativamente, o actual panorama das finanças mundiais, intoxicado com a introdução e difusão de instrumentos económico-financeiros não confiáveis, “os quais colocam em sério perigo o crescimento e a difusão da riqueza, criando também riscos e problemas sistémicos”.
O documento começa por falar na urgência da introdução “de uma certificação por parte das autoridades públicas relativamente a todos os produtos provenientes da inovação financeira”, na medida em que “preservar a saúde e evitar a contaminação, também do ponto de vista económico, é um imperativo moral inelutável para todos os actores empenhados nos mercados”, a par da urgência também de uma coordenação supranacional entre as diversas arquitecturas dos sistemas financeiros locais”.
[quote_center]“A vocação principal da actividade financeira é de serviço à economia real, na qual é chamada a criar valor com meios moralmente lícitos”[/quote_center]
Para evitar o mais possível as situações de instabilidade financeira, em conjunto com as crises sistémicas, o documento aponta para a necessidade de se criar “uma clara definição e separação, para os intermediários bancários de crédito, entre a gestão de carteira de empréstimos comerciais e a de investimento ou negociação de carteira própria”.
O documento lista igualmente um conjunto de comportamentos moralmente criticáveis por parte dos consultores financeiros: “uma excessiva movimentação da carteira de títulos com o propósito principal de aumentar os ganhos originários das comissões pela intermediação; uma diminuição da devida imparcialidade na oferta de instrumentos de poupança, em regime de acordos ilícitos com alguns bancos, quando produtos de outros se adaptariam melhor às exigências do cliente; a falta de uma adequada diligência ou uma negligência dolosa por parte dos consultores, em relação à tutela dos interesses relativos aos ganhos dos próprios clientes”, entre outros.
Criticando igualmente a ênfase colocada no retorno para os accionistas e na gestão de curto prazo – o que se traduz em “assegurar ganhos substanciais aos administradores e accionistas, o que acaba por promover a assunção de riscos excessivos e por deixar as empresas debilitadas e empobrecidas daquela energia económica que lhes teria assegurado perspectivas adequadas para o futuro” – é também facilmente reconhecido que tudo isto cria e difunde uma cultura profundamente amoral e completamente contrária à realização do bem comum.
No que respeita em particular à ética que deverá guiar a relação entre banco e cliente, o documento propõe a criação de comités éticos no interior dos bancos, para actuarem junto dos conselhos de administração, tendo como objectivo que estes sejam ajudados “não somente a preservar os seus balanços das consequências de dificuldades e perdas, e a uma efectiva coerência entre missão estatutária e a prática financeira, mas também a sustentar adequadamente a economia real”.
[quote_center]“A finalidade especulativa, particularmente no âmbito económico-financeiro, arrisca hoje suplantar todos os outros objectivos principais que integram a substância da liberdade humana”[/quote_center]
Outra forte crítica está relacionada com “a criação de títulos de crédito de alto risco – que operam uma espécie de criação fictícia de valor, sem um adequado controle de qualidade e uma correcta avaliação do crédito – pode enriquecer aqueles que os intermedeiam, mas cria facilmente insolvência em prejuízo de quem deve recebê-los”, diz o documento. Em particular os grandes fundos de investimento que, como sabemos, procuram o lucro através da especulação e são concebidos para causar reduções artificiais nos preços dos títulos de dívida pública, sem se preocuparem se afectam ou agravam, de forma negativa, a saúde económica dos países e, consequentemente, a estabilidade económica de milhões de famílias.
O documento inclui ainda o problema dos produtos “derivados”, originalmente criados para segurar riscos, e as “bolhas especulativas”. “Verifica-se aqui uma carência ética, que se torna mais grave quanto tais produtos são negociados nos mercados chamados não regulamentados (over the counter) – mais expostos ao azar que os mercados regulamentados, quando não à fraude – e subtraem a linfa vital e investimentos à economia real”, pode ler-se ainda.
Também o mercado dos CDS [credit default swaps] é criticado, considerando que o mesmo levou ao “crescimento de uma finança do azar e das apostas no insucesso de outros, o que representa uma situação inaceitável do ponto de vista ético”.
A difusão de sistemas bancários paralelos ou “sombra” (shadow banking systems) é igualmente alvo de críticas por parte do texto conjunto da Congregação para a Doutrina da Fé e do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, que refere o favorecimento abusivo da chamada “finança criativa”, e cujo” motivo principal de investimento dos recursos financeiros é sobretudo de carácter especulativo, se não predatório, e não constitui um serviço à economia real”.
“Exactamente de tal desígnio especulativo nutre-se o mundo das finanças offshore, que, mesmo oferecendo também outros serviços lícitos, mediante muitos e difusos canais de ilusão fiscal, quando não de evasão e de lavagem de dinheiro fruto do crime, constitui um ulterior empobrecimento do normal sistema de produção e distribuição de bens e de serviços”.
[quote_center]“Preservar a saúde e evitar a contaminação, também do ponto de vista económico, é um imperativo moral inelutável para todos os actores empenhados nos mercados”[/quote_center]
A forma como o documento condena a fuga e a evasão fiscal através de offshores ocupa uma extensa parte da terceira parte do documento, em conjunto com os efeitos perniciosos que provocam na economia de um país e que contribuem para a geração de sistemas económicos fundados na desigualdade. “Além do mais, não é possível calar que sedes offshore, em muitas ocasiões tornaram-se lugares habituais para a lavagem de dinheiro, isto é, dos resultados de receitas ilícitas (furtos, fraudes, corrupção, associações para delinquir, máfia, saque de guerra…)”, acusa ainda o documento.
Todavia e o mais interessante no que aos paraísos fiscais diz respeito, é a seguinte proposta: “em todos os casos a manipulação fiscal dos principais actores do mercado, em especial dos grandes intermediários financeiros, representa uma injusta subtracção de recursos da economia real, é um dano para toda a sociedade civil. Considerada a não transparência daqueles sistemas, é difícil estabelecer com precisão a quantidade de capitais que transitam nos mesmos; todavia foi calculado que bastaria uma taxa mínima sobre as transacções realizadas offshore para resolver boa parte do problema da fome no mundo: porque não tomar com coragem a direcção de uma semelhante iniciativa?” Fica a pergunta e também o tom de esperança que finaliza o documento:
[quote_center]“Exactamente de tal desígnio especulativo nutre-se o mundo das finanças offshore que (…) constitui um ulterior empobrecimento do normal sistema de produção e distribuição de bens e de serviços”[/quote_center]
“Diante da quantidade e omnipresença dos sistemas económico-financeiros contemporâneos, poderemos ser tentados a cedermos ao cinismo e a pensar que com as nossas pobres forças podemos fazer muito pouco. Na realidade, cada um de nós pode fazer muito, especialmente se não permanece só” (…) “Numerosas associações provenientes da sociedade civil representam neste sentido uma reserva de consciência e de responsabilidade social das quais não podemos prescindir. Hoje, mais do que nunca, somos todos chamados a vigiar como sentinelas por uma vida de qualidade e a tornar-nos intérpretes de um novo protagonismo social, orientando a nossa acção na busca do bem comum e fundando-a sobre os sólidos princípios da solidariedade e da subsidiariedade”.
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