POR PEDRO BARATA
A 3 de Dezembro abriram os trabalhos de mais uma conferência/cimeira do clima. No mesmo dia, o meu colega Luís Costa lançou-se na aventura de ir de Lisboa até Katowice (no Sul da Polónia), à COP24, com um carro eléctrico, numa campanha para demonstrar, por um lado, a viabilidade do transporte eléctrico e, por outro, os constrangimentos a uma mudança de hábitos que nos leve colectivamente a uma trajectória de sustentabilidade.
Essa trajectória de sustentabilidade é o foco do Roteiro para a Neutralidade Carbónica. No seguimento do anúncio feito pelo Primeiro-Ministro em Marraquexe, há dois anos, de que Portugal se comprometeria com o objectivo de reduzir as suas emissões até 2050, até um nível em que as mesmas seriam compensadas pela retirada de emissões a nível nacional – a “neutralidade carbónica” –, o Governo avançou com um projecto visando estudar cenários contrastantes que permitam levar o país a atingir a dita neutralidade carbónica. Após mais de um ano de elaboração, a primeira versão das trajectórias foi apresentada no dia 4 de Dezembro.
Fica o Governo de parabéns pela iniciativa, mas ainda mais pelo formato da apresentação. Ao longo de um dia completo, foi a vez de membros do Governo, de diferentes ministérios, servirem de moderadores, atentos e interventivos, de um debate em que o protagonismo por uma vez foi dado aos peritos sectoriais. Num verdadeiro exercício de consulta, é gratificante, enquanto coordenador do Roteiro, perceber o empenho de diferentes agentes políticos em receber as mensagens principais do Roteiro, compreendê-las e intuir delas os princípios para a sua acção política. E que mensagens serão essas?
[quote_center]Na COP24 o protagonismo, por uma vez, foi dado aos peritos sectoriais[/quote_center]
Ao contrário dos cabeçalhos das notícias dos jornais, o Roteiro não propõe políticas e medidas. O que o Roteiro determina são as formas mais eficazes de atingir os objectivos a que Portugal se propõe, tendo em conta o custo de desenvolvimento e aplicação de diferentes tecnologias. Cabe ao poder político verificar agora as possibilidades políticas e governativas (de governance) de atingir essa eficácia. Por outras palavras, o Roteiro não preconiza o vegetarianismo ou a proibição de alimentação com carne vermelha, mas estabelece claramente que uma das medidas custo-eficácia será a diminuição da produção animal.
Mas, naquilo que só podemos construir como uma perversão do espaço público, a verdadeira grande mensagem do Roteiro não se prende com as emissões da pecuária (que não atingem sequer os 10% do total das emissões nacionais), mas com a muito profunda alteração dos sistemas energéticos, seja por via do aumento radical da eficiência energética e do aumento da energia renovável, seja pelo aumento extremamente rápido da mobilidade eléctrica e partilhada, em volumes que hoje apenas começamos a vislumbrar (no passado mês de Setembro, as vendas de veículos eléctricos atingiram pela primeira vez os 5% do total de ligeiros de passageiros em Portugal). Ainda mais radical é a mensagem quando sabemos que o modelo de base do Roteiro teve que ser “intervencionado” de forma conservadora, por forma a refrear a compra de veículos eléctricos na década que se avizinha, isto é, se o modelo na sua versão pura se verificar, teremos mais de um milhão de veículos eléctricos em 2030. Na prática, o motor de combustão interna desaparece do mercado (embora não das nossas estradas) nos próximos dez anos.
Conseguiremos nós operar a transição? Seremos capazes de antecipar os necessários ajustamentos? Tal parece razoavelmente fácil quando pensamos no ajuste da estratégia de grandes empresas como a EDP ou a Galp. Muito mais complicado será a reconversão de um enorme número de profissionais em Portugal ligados à economia automóvel assim como à refinação de produtos petrolíferos ou à manutenção de serviços. Assim como hoje já quase não vemos portageiros nas nossas auto-estradas, dentro de alguns anos não veremos o mecânico coberto em óleo de automóvel, e uns anos depois diremos adeus à figura do camionista. É a essa transição social e económica que a equipa do Roteiro se irá dedicar nos próximos meses.
Depois disso virá a batalha seguinte: a de garantir que as metas e trajectórias apontadas por este Roteiro têm uma tradução prática nos mecanismos políticos, económicos e financeiros de que o país irá dispor nos próximos anos, através de um novo instrumento jurídico. Tema para crónica futura.
Entretanto, o Luís chegou a Katowice e com ele os ensinamentos do nosso Roteiro para a Neutralidade Carbónica. No caminho que percorreu e a que a Get2C chamou o caminho para um Cooler World rumo à neutralidade carbónica, calculou-se a pegada carbónica em tempo real, tanto para o desempenho do carro como para as escolhas dos três passageiros em termos de alimentação e alojamento. As infografias demonstrativas desta aventura podem ser consultadas em www.coolerworld.pt, bem como as limitações e experiências vividas por esta equipa.
[quote_center]A verdadeira grande mensagem do Roteiro para a Neutralidade Carbónica prende-se com a muito profunda alteração dos sistemas energéticos, por via do aumento da eficiência energética, da energia renovável e da mobilidade eléctrica e partilhada[/quote_center]
A viagem COP by Electric Car parou em 13 cidades: Madrid, Vitoria-Gasteiz (Capital Verde Europeia em 2012), San Sebastian, Bordeaux, Tours, Paris, Bruxelas, Nijmegen – a actual Capital Verde Europeia –, Essen (Capital Verde Europeia em 2017), Dortmund, Berlim, Dresden, Breslávia e Katowice, e ao longo do percurso teve vários encontros estratégicos com protagonistas políticos europeus da área da sustentabilidade, para chamar a atenção para os desafios da descarbonização.
Chegados à COP24, o que se espera então desta reunião das Partes do Acordo de Paris? Esta é sem dúvida a reunião mais importante do regime climático desde que há três anos o Acordo de Paris foi assinado. É aqui em Katowice que existe a expectativa de que será terminado um conjunto de regras essenciais para o funcionamento do regime acordado. As mais importantes respeitam ao sempre relevante tema da transparência: no Acordo de Paris, os países são convidados a entregar periodicamente as suas Contribuições para o esforço global de mitigação. Contudo, a falta de harmonização destas “metas” autopropostas pode dar azo a todo o tipo de contabilidade criativa. Tal deve ser impedido ou pelo menos mitigado.
O segundo tema importante diz respeito ao funcionamento dos mecanismos de financiamento. A promessa de Paris foi a agilização dos mecanismos de financiamento por forma a aumentar o fluxo de financiamento para novas tecnologias de adaptação e mitigação para os países mais pobres. As vicissitudes recentes do Conselho do Fundo Clima Verde, principal fundo climático, demonstraram que há ainda muita desconfiança mútua entre alguns dos principais agentes nesta área.
Um terceiro desafio diz respeito à criação de novos mecanismos do mercado de carbono, adaptados à nova realidade em que (quase) todos têm metas de limitação ou redução de emissões. Tudo isto num ano em que o mercado de carbono europeu (o principal mercado mundial e o trendsetter”) está em franca recuperação.
Há motivos para um optimismo moderado. Sobretudo quando vemos a tendência recente dos custos tecnológicos e mesmo dos hábitos sociais, de que o COPbyElectricCar é exemplo. Pensemos apenas que esta viagem não seria possível há cinco ou quatro anos e perceberemos o quanto já fizemos de caminho. E o que ainda falta percorrer.
Pedro Martins Barata, membro do Expert Adisory Group SBTi Net Zero Standard, co-presidente do Painel de Peritos da Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono e Partner da Get2c