É inevitável, as situações de crise “despertam nas pessoas os seus maiores medos”. E quanto menos perceberem qual é o sentido de lutarem para bens comuns, mais revoltadas ficam. Em entrevista, o psicólogo e psicoterapeuta Nuno Cristiano de Sousa diz que “as pessoas já não sabem para o que estão a contribuir”, o que “é extremamente castigador e apela à dinâmica de sobrevivência de cada um”. O equilíbrio pode estar num “desafio à criatividade”: encontrar recursos e investimentos mais autónomos, dentro dos valores, formação e capacidades individuais
POR GABRIELA COSTA

Os gregos têm uma definição para a catástrofe que diz que esta é uma mudança brusca. Que não tem de ser necessariamente má, mas tem de ser, necessariamente, uma mudança para algo novo a que não se está habituado.

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Nuno Cristiano de Sousa – Psicólogo e psicoterapeuta

Para Nuno Cristiano de Sousa, é fundamental valorizar esta ideia, numa altura em que quer quem governa, quer quem é governado, “vive momentos de instabilidade”. Perante a crise, que “despoleta nas pessoas todas as formas de se sentirem inseguras e ansiosas”, e numa escala de prioridades, as pessoas tornam-se “menos sociais e mais individualistas ao nível das suas preocupações. O que é normal”, garante o especialista, em entrevista ao VER.
 
“A saúde mental revela-se pela capacidade de amar e de trabalhar”, como disse Freud. Neste contexto, como vai a saúde mental dos portugueses? E a produtividade?
Freud considerou, de facto, num dos seus escritos, que a vida de uma pessoa está assente nestes dois grandes eixos. As sociedades, em geral, e a nossa, em particular, organizam-se em duas valências – quem governa e quem é governado. Mas, de uma forma geral, o que se verifica é que quer de um lado quer outro se estão a viver momentos de instabilidade.

Antes de mais, é importante distinguir o conceito de doença mental do ponto de vista psicanalítico, do conceito do ponto de vista médico, ou biológico. Deste último, a doença é um factor externo que interfere no nosso organismo. Mas da perspectiva psicanalítica, a doença mental está associada ao sofrimento mental. E há formas diferentes de sofrer e inúmeras razões pelas quais se fica exposto ao sofrimento.
Em Portugal vivem-se muito, nestes últimos tempos, fases de reestruturação constante. Trata-se de quadros de reestruturação vividos, por vezes, de maneira pouco perceptível. Ou seja, as pessoas não sabem muito bem de onde estão a vir, nem para onde estão a ir, a nível político e social.

Já nem se trata tanto da questão de ter um emprego para vida, mas ter um emprego onde se sintam realizadas com aquilo que fazem. O clima de instabilidade, a nível profissional, traz uma carga de sofrimento que torna difícil que as pessoas se sintam bem.

E como pode isso afectar os níveis de produtividade dos portugueses, habitualmente já reduzidos, apesar de trabalharmos em média mais horas do que vários países europeus?
É pedido às pessoas que trabalhem muito tempo, mas sem condições para realizar um trabalho de qualidade. E isto tem um grande impacto na vida das pessoas, pois vêem-se forçadas a trabalhar para um objectivo, sem perceberem que retorno terá isso para elas. Por exemplo, há cada vez mais contratos temporários e mais trabalho precário. Nesses empregos, facilmente as pessoas não se sentem parte de um projecto, pois sabem que estão a trabalhar para uma entidade que, a qualquer altura, as pode mandar embora. Sem envolvimento no projecto há desmotivação e uma sensação de exploração. A pessoa sente-se apenas mais uma. Isto compromete naturalmente a sua capacidade para se empenhar, entregar e colaborar. O indivíduo torna-se mais funcional, trabalhando porque tem de ser – pelo dinheiro – e não por paixão.

A precaridade agrava-se agora com o aumento do desemprego acima dos 14% e com casos muito preocupantes de famílias em condições difíceis. Nota um acréscimo de problemas ao nível da saúde mental devido a este contexto de crise?
As situações de crise despertam nas pessoas os seus maiores medos. É inevitável. Cada vez mais lhes é pedido que sobrevivam. E não que vivam. O que faz da vida uma espécie de mal necessário: é preciso trabalhar para sobreviver, já não há prazer.
Este ambiente despoleta nas pessoas todas as formas de se sentirem inseguras e ansiosas e, nesse sentido, posso dizer que o sofrimento das pessoas tem aumentado imenso.

Agora, do ponto de vista clínico, têm aumentado as doenças mentais? Não necessariamente. A crise está é a provocar nalgumas pessoas (que sentem mais as alterações externas, são mais sensíveis às mudanças sociais), algumas características da sua personalidade, em que elas se revelam sem capacidade para lidar com essas mudanças.

E essa “provocação” pode desencadear comportamentos desadequados?
Sim, eventualmente. Por exemplo, um funcionário público que pensara ter trabalho para a vida: ao ficar sem emprego, se não tiver capacidade emocional para encontrar alternativas, será extremamente doloroso ficar sem opções. E fecha-se. Isto é que é qualquer coisa que se pode tornar do registo da doença mental, pois é algo a que o indivíduo não consegue adaptar-se.

Já o Darwin dizia que quem sobrevive não são os mais fortes, são os que melhor se adaptam.

Em termos gerais, pode-se falar de um acréscimo de níveis de ansiedade na sociedade?
Pode-se notar que algumas pessoas estão mais zangadas ou irritadas, outras estão mais tristes… mas estas perturbações não são do foro da doença mental. O âmbito é muito mais específico, trata-se de outro contexto.

“Já dizia Darwin que quem sobrevive não são os mais fortes, são os que melhor se adaptam” .
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Mas, de facto, a crise despoleta nas pessoas uma grande preocupação, ansiedade e medo. Tenho pacientes com uma formação superior, mestrados, que estão há imenso tempo sem arranjar emprego. E já não procuram necessariamente na sua área de formação, antes, abrem o leque de opções para áreas onde nunca imaginaram trabalhar.

Esta atitude reflecte o esforço do lado mais saudável da pessoa (a sua capacidade de flexibilização), mas, ao mesmo tempo é triste, pois revela que a pessoa investiu muito dinheiro, tempo e expectativas numa carreira e depois o retorno que tem são ‘empregos para desenrascar’. É o que acontece, em todas as áreas.

E na sua opinião, a forma como Portugal está a tentar resolver a crise, através de um conjunto de medidas de austeridade, pode agravar esse mal-estar na sociedade?
O respeito à autoridade, como qualquer sentimento de respeito, é algo que deve ser merecido. E é muito difícil alguém sentir respeito quando sente que está a ser gerido por pessoas que têm pouco em consideração aquilo que é o seu próprio papel. Portanto, naturalmente as pessoas andam mais revoltadas. É-lhes difícil perceber qual é o sentido de lutarem para bens comuns. Este sentimento faz emergir a necessidade de sobrevivência de cada indivíduo.

Esse registo desperta o lado mais animal e agressivo da personalidade, relacionado com a luta pelo território. E isso faz as pessoas andarem menos simpáticas umas com as outras.

Acredita então que uma estratégia de crescimento económico para combater a crise limitaria mais os efeitos sociais da mesma?
As pessoas hoje em dia já nascem endividadas. Toda esta política económica tem estado assente numa perspectiva de punição, que implica castigar as pessoas dizendo-lhes que têm de abdicar de muitas coisas e contribuir cada vez mais com os seus impostos para reparar as asneiras que se fizeram para trás.

Enquanto isso, os nossos governantes optam por mandar os recursos internos para fora, permitindo uma exportação de mentes formadas, em vez de pensarem em criar condições para recuperar os recursos muito bem formados que já saíram do país, na área da investigação, por exemplo. Estão-se a castigar os recursos em vez de fomentar a sua dinamização. Isto é um pouco triste, porque Portugal está-se a construir cada vez mais enquanto uma nação dependente de outras: dos seus subsídios, dos seus fundos, das ajudas…

Esta linha de actuação – mandar o que é bom para fora e pedir ajuda ao exterior – é extremamente frustrante para quem vive no país; as pessoas já não sabem para o que estão a contribuir e já não investem a pensar que vão ter um retorno dos seus sacrifícios. É extremamente castigador e, insisto, apela à dinâmica de sobrevivência de cada um, tornando-o menos social e mais individualista ao nível das suas preocupações. O que é normal, numa escala de prioridades.

Essa dinâmica de sobrevivência associada à instabilidade emocional pode gerar efeitos perversos?
As pessoas estão mais preocupadas consigo próprias. Quanto mais dificuldades tiverem e castigadas forem mais assim será. É importante perceber que este pode ser um egoísmo bom, saudável. O verdadeiro egoísmo é querer que as pessoas vivam à nossa maneira. Nas situações difíceis as pessoas têm, de facto, de pensar primeiro nelas e nos seus, só depois virão os outros.

Como especialista, que conselhos poderá dar para que as pessoas procurem contornar o seu mal-estar, a prazo?
O país precisa de gerir dinheiro e para isso tem que produzir. Para produzir precisa de pessoas motivadas, que sabem que estão a contribuir para algo em concreto. Há muitas coisas que estão mal, mas também há muitas que estão bem – é importante não desvalorizar isso.

É importante que cada um tente encontrar, dentro do que são os seus valores, a sua experiência e a sua formação, formas de aplicar as suas capacidades. Que tente encontrar recursos e investimentos mais autónomos para se sustentar. E é fundamental que as pessoas descubram formas de se divertir pondo isso em prática, é um desafio à criatividade. Um desafio doloroso e que exige muito trabalho, mas é um desafio, não um obstáculo.

Os gregos têm uma definição para a catástrofe que diz que esta é uma mudança brusca. Esta não tem de ser necessariamente má. Mas tem de ser, necessariamente, uma mudança para algo novo a que não se está habituado. É importante valorizar isso.

E quais são as mudanças sociais mais sentidas pelos portugueses?
Em termos de números concretos não existem esses dados. Mas uma coisa é certa: a queixa directa da crise mais sentida prende-se com as relações com as pessoas mais próximas.

As pessoas sentem que levam os problemas do trabalho para casa e isso afecta as suas relações familiares. Esta tem sido a maior queixa que tenho recebido ultimamente. Por outro lado, saem menos com os amigos, fazem menos férias, passam mais tempo em casa com os filhos, ou seja, vivem num registo mais familiar. Só que num período em que mais facilmente levam as frustrações do trabalho para casa, andam mais preocupadas. E é difícil manter a harmonia que se espera de uma família neste contexto.

Não obstante, tudo isto pode ser pensado como um desafio a cada um de nós, para se conhecer melhor como uma pessoa e não estar tão ligado às coisas materiais da vida. Na prática, é trocar os jogos individuais de computador por um jogo de tabuleiro, onde todos interagem e convivem. Portanto, há ilações a retirar desta situação.

Não havendo recursos financeiros para se olhar para fora, as pessoas terão de encontrar os laços positivos das relações que lhe são próximas. Os maiores valores da vida não estão no dinheiro, mas nas relações. O dinheiro é um dano colateral para as pessoas conseguirem levar parte das suas expectativas à prática. Importa conhecer o valor daquilo que de facto preenche, que são as relações com as pessoas que nos são queridas, que fazem parte da nossa vida.

A nível mundial prevê-se que até 2050 as doenças mentais serão um dos maiores problemas de saúde pública. Esta é uma realidade desvalorizada?
É. Há um livro cujo título “A loucura da normalidade” diz muito: as pessoas só se apercebem que algo esta mal quando começam a revelar comportamentos muito fora daquilo que é habitual. Mas há um espectro dentro da normalidade em que as pessoas já revelam um estado de desconforto e dificuldades em estar na sua vida. A tendência é para estar atento a chamadas de atenção que são o culminar de muitas outras coisas. São já pedidos de ajuda. Mas há toda uma história de sofrimento para trás.

Portanto, espero é que antes dessa data se compreenda o papel que estas situações já têm. Porque muitas vezes só se começa a pensar sobre o assunto demasiado tarde.

É preciso dizer que, por vezes, quem está a gerir certas áreas de intervenção (na Saúde) não experiencia prática, o que perverte um pouco a sensibilidade que as pessoas têm para os problemas. Há elementos básicos sobre a doença mental que só se observam na pessoa, não nos livros.

O seu consultório trabalha em articulação com o projecto Cogitando na divulgação da importância da saúde mental. Como surgiu a ideia e de que modo tem ela uma missão social?
O projecto arrancou como um hobby, no início da minha actividade clínica, para clarificar a mensagem sobre saúde mental que era normalmente transmitida. Há muitos mitos e preconceitos, e a tendência para restringir a doença mental a um âmbito estritamente médico.

Uma pessoa que está em sofrimento é alguém que precisa de compreensão, porque não percebe o que está a viver, nem consegue lidar com isso. Clinicamente, em psicanálise, o mote é pensar sobre as coisas e compreender o seu propósito na vida de cada um.

O Cogitando ajuda as pessoas a adquirir esse autoconhecimento, o que lhes permitirá lidar de uma forma mais segura com aquilo que são os factores da vida. O site permite interacção, através das perguntas ao psicólogo, que não constituem uma terapia, mas apenas uma forma de ajuda para que comecem a pensar nas suas situações de um ponto de vista diferente. E abrem uma porta a que, eventualmente, procurem ajuda.

Num quadro de responsabilidade social, temos uma área de conteúdos relacionados com iniciativas e projectos de investigação ou de cariz social, como os da Bolsa de Valores Sociais, que apoiamos com a compra de acções solidárias. Apoiamos projectos que fazem sentido no âmbito do consultório e que têm finalidade social.

É o caso, por exemplo, do projecto “A Moderna Diferença”, onde participo como colaborador na qualidade de especialista de saúde mental. Esta é uma iniciativa do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa que visa divulgar informação acerca da temática da violência doméstica contra as mulheres, promovendo debates e acções de angariação de fundos e de roupas, para os filhos e as mulheres que se encontram nas casas de abrigo das associações UMAR e APAV. Trata-se de um debate essencial, porque a maior parte dos casos que se conhecem, referem-se a situações violentas, com agressão física, mas há relações de violência que muitas vezes não fazem partem dos números, como o controlo ou a dependência financeira dos maridos sobre as mulheres.

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