Ensinar às crianças a diferença entre o que é certo e o que é errado é, sem dúvida, tarefa dos cuidadores. Mas, e de forma crescente, são vários os países que estão a adoptar o ensino da ética nas escolas desde tenra idade, e com resultados promissores. A formação em ética para os mais novos não só melhora a performance académica, como ajuda crianças e jovens a serem mais tolerantes, mais empáticos e a prepararem-se melhor para os seus próprios dilemas éticos futuros
POR HELENA OLIVEIRA

Partindo do lema de que é necessário ensinar as crianças e os jovens como pensar e não o que pensar, e tendo em consideração a velha dúvida que questiona se a ética é passível de ser ensinada, ir mais além da diferença entre o que é certo e o que é errado e ajudar os mais novos a perceber as razões e os impactos dos seus actos e comportamentos é um caminho que, para muitos, deve ser trilhado ao longo de todo o percurso escolar.

A verdade é que tal como todos nós, os mais novos estão a crescer num mundo que é significativamente complexo, são inundados por informação, tanto verdadeira como falsa e ao ponto de nem sempre se conseguir distinguir entre ambas, e saber questionar e apurar diferentes pontos de vista só poderá ajudar a uma vida mais ética, íntegra e bem informada.

Discussões mais profundas entre educadores e estudantes, onde lhes é dada a confiança de fazerem perguntas difíceis, e onde estes possam sentir que são ouvidos e compreendidos, poderão constituir o caminho certo para que cresçam com melhores ferramentas e com a consciência certa para assumirem compromissos futuros nas universidades, nas empresas, nos locais de trabalho no geral e nas suas próprias comunidades.

As marchas e greves climáticas que têm trazido às ruas milhões de jovens – e que tantas vezes têm sido agressivamente criticadas por parte de muitos adultos – relembram-nos que os mais novos não são meros espectadores do mundo, que é e será deles, mas sim cidadãos que, activamente, procuram respostas às suas dúvidas e temores e que sabem distinguir o certo do errado e ir bem mais longe do que isso.

Adicionalmente, as pesquisas em desenvolvimento humano demonstram claramente que as sementes da empatia, do cuidado com os outros e da compaixão estão presentes desde muito cedo na vida. Todavia, e para que os mais jovens se transformem em adultos éticos e compassivos, é necessário terem quem os ajude a cuidar destas sementes e a fazê-las crescer até se desenvolverem completamente.

O problema, em muitos casos, e sendo os adultos os primeiros a acusarem os mais jovens da falta de valores, é que este pode residir nos próprios adultos e nas mensagens que estes vão transmitindo. Num estudo de âmbito nacional realizado nos Estados Unidos pelo Making Caring Common, um (grande) projecto da Harvard Graduate School of Education, uma larga maioria dos respondentes jovens, de diferentes raças, culturas e classes, parece valorizar mais os aspectos relacionados com o sucesso pessoal em detrimento do cuidado com os outros.

O Making Care Common tem como missão ensinar as crianças a preocuparem com os outros e com o bem comum, a tratarem bem as pessoas no dia-a-dia, a compreenderem e a procurarem a honestidade e a justiça e fazerem o que é certo mesmo que, por vezes, com custos para si mesmos. Para os responsáveis deste projecto, a ideia é que as crianças e jovens que cultivam estas capacidades possam vir a transformar-se em cidadãos mais solidários, que reforcem a democracia, que consigam remendar as fracturas que nos dividem e que estejam aptas a criar um mundo mais justo e mais ético. Vejamos alguns dos resultados do estudo em causa, o qual não é propriamente recente (foi feito em 2014), mas que dá espaço para reflexão.

Adultos têm quota-parte de culpa nos comportamentos menos éticos dos mais novos

Aos estudantes foi pedido que indicassem, por ordem de prioridade, o que mais importante era para eles: atingir um nível elevado de felicidade (ou sentirem-se bem na maioria do tempo) ou cuidarem dos outros. Talvez sem surpresa – afinal jovens e adultos querem ser felizes – quase 80% dos inquiridos escolheu “alcançar grandes feitos” ou “ser feliz” enquanto a sua prioridade de topo, com apenas 20% dos demais a seleccionar a opção “cuidar dos outros”.

Os mesmos jovens classificaram também a justiça abaixo de outros valores em causa. Por exemplo, são muito mais aqueles que hierarquizam o “trabalho árduo” acima da justiça, com uma percentagem significativa a demonstrar claramente que o seu auto-interesse é, por excelência, aquilo que mais os move.

A felicidade, o trabalho árduo e os grandes feitos são, indubitavelmente, valores importantes e tal como é discutido neste estudo, existem diferenças individuais e culturais na forma como os mais novos os compreendem. Mas, e como alerta o relatório, quando os jovens não conferem prioridade ao cuidado com os outros e à justiça e solidariedade, mas sim aos aspectos do sucesso pessoal – e quando sabem que os seus pares também não dão importância a estes valores éticos – o risco de crescerem com comportamentos prejudiciais, incluindo serem cruéis, desrespeitadores e desonestos, torna-se maior. Por exemplo, e no caso da desonestidade, metade dos alunos do ensino secundário admite ter “feito batota” nos seus testes e 75% confessam ter copiado o trabalho de casa de outrem. À primeira vista, este comportamento é tão comum que parece não existir grande margem para preocupação futura. Afinal quem nunca copiou num teste ou num trabalho de casa? Todavia, outros comportamentos mais graves, como o bullying – cerca de 30% dos respondentes afirmou ter sido vítima deste fenómeno – ou o assédio sexual na escola – com cerca de metade das raparigas entre o 7º e o 12º a reportarem pelo menos um episódio desta natureza – obriga a questionar a falta de ética incorporada nas atitudes dos mais novos.

Adicionalmente, qualquer sociedade civil saudável depende igualmente de adultos que estão comprometidos com as comunidades em que vivem, e com o mundo em geral, e que sabem que, em alturas específicas, devem saber colocar o interesse dos outros à frente dos seus próprios interesses. E os dados parecem indicar que não estamos a preparar um número significativo de jovens para a criação deste tipo de sociedade.

De acordo com o estudo, na raiz deste problema poderá estar a diferença entre a retórica produzida pelos cuidadores e outros adultos sobre o que afirmam ser as suas prioridades e as verdadeiras mensagens que transmitem no seu comportamento quotidiano. Apesar de a maioria dos pais e professores afirmarem que a sua maior prioridade é que as suas crianças cresçam como indivíduos éticos e compassivos, a verdade é que 80% dos jovens entrevistados afirmam que o que os seus pais realmente valorizam é atingir o sucesso e a felicidade, e não preocuparem-se com os outros: os jovens inquiridos têm três vezes mais de probabilidades de concordar do que discordar com a afirmação “os meus pais sentem-se mais orgulhosos de mim se eu tiver boas notas na escola do que se for um membro solidário no interior da minha comunidade”. As conversas que o Making Caring Common Project teve com pais e educadores para complementarem este mesmo estudo sugerem igualmente que o poder e a frequência com que estes falam sobre “grandes feitos” e felicidade – definidos pelo estudo como “sucesso pessoal” estão a contribuir significativamente para abafar a importância relativa aos cuidados com os outros.

Mas também há boas notícias. Mesmo que subordinados ao sucesso pessoal, o cuidado com os outros e a justiça continuam a ser importantes também para os jovens. Por exemplo, cerca de dois terços dos auscultados coloca a bondade no top 3 dos seus valores e 63% fazem o mesmo com a solidariedade. E talvez seja mesmo altura para que os adultos reconheçam a sua quota-parte de culpa quando apontam o dedo aos comportamentos pouco éticos dos mais novos.

Dar espaço aos miúdos para explorar dilemas éticos

“Quando se dá às crianças e aos adolescentes o espaço para explorarem dilemas éticos, tal poder-se-á afigurar como uma enorme mais-valia para os estudantes”, afirma Jana M. Loane, directora do Center for Philosophy for Children da Universidade de Washington, que ensina introdução à filosofia aos miúdos das escolas da área de Seattle. Central à educação em ética, diz, é ensinar aos miúdos as competências necessárias para que estes tomem decisões coerentes: procurar e avaliar os seus pressupostos, “escavar” as razões subjacentes a esses mesmos pressupostos, analisar sem preconceito a opinião dos demais e tomar uma decisão informada com confiança.

“Existe uma maior necessidade para este tipo de formação nos tempos que correm”, afirma, numa entrevista à Mind Shift. “A mais recente polarização política, o ciclo de notícias em permanente mudança – que nos faz estar menos comprometidos com aqueles que pensam diferente de nós – torna este tipo de aprendizagem imperativa”, assegura.

Por seu turno, num editorial publicado pelo Revolution Ethics Project, um projecto sedeado em New Hampshire e que começou por algumas reuniões e seminários informais que deram mais tarde origem a formação estruturada em ética, o fundador Eric Bowman recorda que uma das razões para o ensino da ética é proveniente do facto de as crianças e os adolescentes adorarem questionar as coisas, julgarem as pessoas e, também, da irreverência própria da idade. E, acrescenta, a verdade é que o desenvolvimento pessoal não só é um excelente motivo para se estudar ética, como é algo que, na generalidade dos casos, não tem espaço nas escolas “normais” para ser uma “disciplina.

Bowman acredita também que os jovens podem aprender e muito com “heróis morais”. “Enquanto são rápidos a condenar a NSA americana por espiar os cidadãos, também se enternecem com as palavras bonitas da Madre Teresa”, diz. “E mesmo o mais cínico dos adolescentes tem dificuldade em manter o seu cinismo ao ouvir a eloquência dos discursos d Martin Luther King”, acrescenta ainda. Para este professor, o ensino da ética significa que podemos e devemos aprender a analisar por que motivo estas e outras pessoas podem ser os nossos heróis morais e que ao partilhar com os seus pares os seus próprios heróis e aprenderam a conhecer os deles é uma excelente forma de compreender não só o que valorizamos enquanto comunidade, ao mesmo tempo que se explora o que valorizamos enquanto indivíduos. E, acusa, o que acontece na esmagadora maioria das escolas é o facto de se conferir prioridade ao sucesso (ou insucesso) de cada um, num ambiente onde a competição é muito mais reconhecida do que a cooperação.

Uma opinião similar tem Jana Lone, que não concorda com a ausência da disciplina nas escolas, as quais se limitam a fazer testes estandardizados, sem direito a questionamento e a cumprir os habituais currículos escolares. Tudo isto, acrescenta, apesar de existir muita pesquisa que indica que a capacidade dos mais novos para fazerem escolhas éticas – para verem os problemas a partir de ângulos variados e para considerarem um mal potencial que uma determinada decisão pode causar aos demais – está muito pouco desenvolvida. E cita um estudo sobre ética e os jovens realizado pelo Josephson Institute, o qual demonstra que apenas 49% dos jovens entrevistados nunca copiou num teste na escola, citando igualmente o estudo acima desenvolvido que coloca o sucesso pessoal acima do cuidado relativo aos outros.

Ensinar os miúdos a pensarem pela sua própria cabeça

O Ethics Institute, na Kent Place School, dedica-se exclusivamente a ensinar ética aos alunos do primeiro ao terceiro ciclo escolares. Como refere a sua directora, Karen Rezach, as crianças e os adolescentes gostam genuinamente desta orientação ética. “Tentamos ensinar-lhes como devem existir neste mundo”, afirma, explicando que envolve os seus alunos em casos de estudo simples, convidando-os a considerar diferentes pontos de vista e, para os mais novos, transmitindo-lhes o conceito de “certo versus certo”, ou seja, a ideia de que os dilemas éticos envolvem geralmente um “concurso” entre valores válidos mas conflituosos.

Para os alunos mais velhos, a formação é mais estruturada e desafiante. No centro do projecto educativo existe um enquadramento simples para a tomada de decisão ética, bem como uma colecção de valores que os estudantes são encorajados a estudar e a explorar. Uma vez por mês, todos os estudantes do segundo ciclo discutem um determinado estudo de caso, os quais, na sua maioria, reflectem problemas da vida real com os quais os jovens se vão confrontando. Por exemplo, num desses casos, conta-se a história de Emma, que não foi convidada para a festa de aniversário de Jane, mas que viu fotos da celebração no Instagram. Os estudantes são então levados a discutir questões como: como se terá sentido Emma ao olhar para as fotografias no Instagram? Qual é o grau de responsabilidade de Jane pelo sucedido? Que valores influenciam o que cada um pensa sobre este cenário? As histórias são contadas na terceira pessoa, o que também confere uma maior liberdade para os miúdos se expressarem. Já para os alunos do secundário, existem reuniões sobre ética depois das aulas numa espécie de “clube”, que compete com clubes de outras escolas a nível nacional, e sobre temas como “Ambiente e Saúde, “Ciência e Tecnologia” e até sobre ética nas empresas.

As pesquisas sugerem que a formação em ética melhora a performance académica. No mesmo artigo da Mind Shift, são citados vários estudos que o demonstram, como o caso das crianças escocesas a quem foi dada formação para pensarem em tomadas de decisão éticas e cujas responsabilidades de cidadania demonstraram capacidades de raciocínio elevadas e bem estruturadas. O mesmo aconteceu com um estudo realizado na Austrália que envolveu jovens estudantes que participaram em “inquéritos éticos baseados em diálogos” e que demonstrou que estes estão muito melhor preparados – face aos seus pares que não tiveram este tipo de formação – para avaliar e construir argumentos éticos bem fundamentados.

Rezach acredita que os estudantes beneficiam do estudo em ética mediante várias formas. “Pela primeira vez na vida deles, é-lhes permitido pensar pela sua própria cabeça – sem terem ninguém a dizer-lhes o que devem pensar”. E acrescenta que para os adolescentes que lutam com problemas de confiança e identidade, estes debates livres sobre questões éticas liberta-os para testarem os seus valores de uma forma abstracta e não ameaçadora.

Explorar conflitos a partir de diferentes pontos de vista – e esforçarem-se para compreender o valor subjacente a determinada opinião – aumenta igualmente a empatia relativa aos outros, assegura ainda a directora do Ethics Institute.

Bowman concorda com todos estes benefícios do ensino da ética aos mais novos. Os estudantes sentem-se “vivos” e desejam expressar as suas ideias e, ao longo do processo, são encorajados a pensar em questões que podem nunca ter considerado anteriormente. E, adicionalmente, ganham níveis de tolerância muito superiores relativamente a opiniões distintas das suas, permitindo-lhes perceber os valores dos outros (e os da sociedade) e considerar os seus próprios. E decerto que este “treino” os ajudará ao longo de toda a sua vida a lidar com os dilemas e questões éticas com que se irão confrontar nos vários quadrantes da sua existência. Sentem que podem participar em “conversas de adultos”, sentem-se respeitados enquanto seres humanos, enquanto agentes morais.

E percebem que são eles que decidem o que é certo e o que é errado e que não são meros espectadores num mundo de adultos.

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