Num tempo em que tanto se fala de desumanização, se queremos contribuir verdadeiramente para humanizar os nossos hospitais, empresas, organizações ou quaisquer tipos de espaços, temos que encontrar tempo para dar voz ao que sentimos e dar tempo ao(s) tempo(s) … e às pessoas. E abraços!
POR HELENA GONÇALVES
Só percebi o que queria dizer “o tempo e o corpo fundem-se num só” depois de ter ouvido a Susana ler-nos este poema.
“Mecânica de um abraço”
O que encerras num abraço quando
abraças alguém não é
um corpo: é o tempo. Nesse
demorar suspenso
(enquanto deténs outra vida) há
um corpo que é teu enquanto o reténs
nos braços
(porquanto o tens para ti
suspendendo o movimento)
enquanto paras o tempo pelo
tempo
de um abraço. Mas a
força dos teus abraços é mais fraca
que a do tempo e
tens que ser tu a ceder
(tens que ser tu a largar) porque
o tempo não aceita estar parado tanto tempo e
exige que o soltes para
tornar ao movimento.
João Luis Barreto Guimarães, Nómada
Só percebi o que queria dizer “humanizamos o tempo pela narrativa” depois de ter ouvido quatro narrativas, escritas na sequência de um exercício prático em que a Susana nos pediu para, em exatamente 5 minutos, continuar por impulso, a frase: “No dia que me aconteceu… aquele olhar, ou …aquela mão, ou … aquela qualquer parte do corpo”.
Foi hoje:
a Mónica teve cancro da mama
e está comigo há seis meses.
Passamos por algumas coisas.
Se calhar não devia dizer passamos
Mas digo-o pois foi assim que senti.
Hoje disse-me:
doutora tenho notícias:
soube pelos exames que está tudo bem!
Que alegria!
Estendi-lhe a mão que apertou com força
confiadamente. Uma mão boa que me surpreendeu.
À saída depois de outros diálogos
e praticidades
Estendi-lhe o corpo e ela o seu.
Não me esquecerei.
Joana, Médica, Medicina Física e de Reabilitação
Entendi com esta narrativa o que queria dizer “o corpo como lugar de acolhimento” porque percebi o que era “uma mão boa”, a que acolhia a confiança sentida entre médica e doente. E também a importância do não-verbal porque ambas “estenderam o corpo”.
Entrei no quarto, olhei para a mãe e sorri, ela olhou para mim e sorriu… um sorriso triste… disse “bom dia. Como esta?”… ela respirou fundo, sorriu e respondeu “tudo bem”… ficamos a olhar uma para a outra, em silêncio, a sorrir… disse “não faz mal dizer que está tudo mal”… olhou para mim, olhos cobertos de lágrimas, sorriso doce, muito triste, cansado… desviou o olhar, lágrimas escorreram pela face… silêncio… toquei-lhe no ombro, deixei a minha mão… ela aceitou o meu toque… limpou a face, olhou novamente para mim e disse “pois não”… e ficamos ali… juntas…
Cristina, Médica, Cuidados Paliativos Pediátricos
Entendi com esta narrativa que o corpo pode dizer coisas diferentes das palavras ditas, que o silêncio também se ouve e fala e sobretudo como se pode escrever o(s) silêncio(s). E que a mãe aceitou, sentidamente, o toque … a mão … da médica do filho, mesmo estando “tudo mal”.
Ia com os minutos contados para visitar uma doente. Não a conhecia, apenas um nome…
No corredor, mil pensamentos assaltam-me a mente… seguem-se cumprimentos de várias pessoas, profissionais de saúde e familiares no corredor, a caminho do serviço.
Olho o relógio antes de entrar no quarto, na minha mente há um despertador a bater, dizendo: pouco tempo… pouco tempo… mas quero enganar a voz da consciência tentando convencê-la, mas que ao menos seja de qualidade, é o que tenho para oferecer.
Entro e encontro a Maria serena e sentada, de mãos cruzadas sobre o colo que me diz: Sente-se!
Então o que se passa? Em que posso ajudá-la?
Sr. Padre, tens tempo? Aquele olhar tão doce e esfomeado queria falar… e ser escutada.
Aqueles olhos azuis fundos e cristalinos, como que de menina, diziam-me para ficar… e foi simplesmente o que precisava para ficar e não olhei mais para o relógio.
Paulo, Capelão de Hospital
Entendi com esta narrativa que há muitos “tempos”, o tempo cronometrado, o tempo cronológico, o tempo da escuta … e que também há o tempo todo, o tempo pedido pelo “olhar doce e esfomeado” igual ao tempo oferecido por quem pensava que tinha o tempo “contado”.
E há o tempo de morrer … de ferir … de respirar!
Estava um dia de chuva. Precisava de esconder-me do dia de trabalho, de sair do hospital.
A miséria a que tinha assistido naqueles dias era mais do que muita. Pessoas nos corredores, gente encontrada morta na cama. Aquele idoso – nem o nome dele sabia – tinha-o encontrado às três da manhã, enquanto dava a medicação da meia-noite. A Helena disse “mais um”. Aquilo chocava e mexia comigo.
Entrei no café e, lá, encontrei um bocado de conforto. A baixa lisboeta estava bonita no meio das luzes de Natal e eu estava quentinha, aconchegada, longe da miséria da noite.
Olhando pela janela, estava ele. Ele e a sua filha. Ele que não tinha nada. Só a boneca da menina.
Fiquei ferida para a vida
Sandra, Enfermeira
Entendi com esta narrativa como o tempo pode ser insuportável, que às vezes é preciso ter tempo para se “esconder do dia de trabalho”, das práticas, das rotinas … que desumanizam quem morre … e quem cuida.
Só percebi o que queria dizer “temos que ter em conta o tempo para humanizar” depois de ter ouvido estas extraordinárias narrativas de quatro Cuidadores (com letra grande), duas médicas, uma enfermeira e um padre.
E também percebo agora o que quer dizer “o tempo está encarnado no corpo”. E também percebo agora Levinas que disse que “as rugas são o sinal de que chegamos sempre atrasados ao outro”. E eu não quero ter rugas!
E depois de um tempo de reflexão, individual e coletivo, inspirado naquelas palavras escritas e ditas, durante uma aula de Medicina Narrativa dada pela Susana, a Joana (uma das médicas) disse, a sorrir:
“Estou contente! Acredito na Humanização da Sociedade.”
E eu também!
Num tempo em que tanto se fala de desumanização, se queremos contribuir verdadeiramente para humanizar os nossos hospitais, empresas, organizações ou quaisquer tipos de espaços, temos que encontrar tempo para narrar e partilhar o que sentimos, dando tempo ao(s) tempo(s) … e às pessoas. E abraços.
Helena Gonçalves (com Joana e Cristina e Paulo e Sandra e Susana, que não têm rugas!)
Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School