A irrupção do coronavírus nas nossas vidas e a necessidade de lutar contra ele representa, sem dúvida, uma situação crítica. E, como em todas as crises, temos de enfrentá-las com riscos dos quais devemos proteger-nos, com ameaças a combater e perigos a afastar. No entanto, e em conjunto com este enorme dever, também não se deve negligenciar o que há a ganhar, tanto em termos de desafios como de oportunidades
POR JOSÉ LUIS FÉRNANDEZ FÉRNANDEZ
De facto, se andarmos bem e com a lucidez suficiente, se estamos dispostos a fazer da necessidade virtude, é seguro que, em primeiro lugar e mais importante que tudo, temos de evitar que uma situação como a que estamos a viver, inegavelmente crítica, se torne desesperada. Em segundo lugar e se assim for, teremos vivido um processo do qual, seguramente, sairemos reforçados enquanto sociedade em muitos aspectos.
É evidente que neste rio revolto aparece sempre quem pretenda lançar a cana de forma abusiva: aqueles que querem pescar votos de forma demente e manipuladora. Uns, seja com discursos apocalípticos e antecipações pseudo-proféticas do Vale de Josafá; outros, enchendo as ruas de multidões fanáticas ao grito de “o governo brinca com a saúde pública e põe em risco as nossas vidas” ou qualquer outro slogan infeliz.
Felizmente, parece que nesta ocasião a sensatez dos grupos políticos que estão na oposição facilitou a calma, o civismo, a colaboração com as autoridades e, finalmente, uma lealdade institucional que, com base no que aconteceu em situações passadas muitíssimo menos importantes, não seria garantida a priori, se o tabuleiro político à escala nacional fosse diferente.
Porque, na verdade, e para além dos aspectos tangenciais do assunto, o núcleo duro do mesmo deve ser muito claro. Trata-se da questão de ganhar, entre todos, o jogo da Covid-19, colocando ao dispor todos os meios necessários para salvar as vidas de quem a contrai.
E está nas nossas mãos o facto de a situação não se transformar em desespero. Para tal e como já referido, é necessário agir com sensatez e fazê-lo de maneira coordenada e de forma responsável. Estamos, assim, perante uma situação em que, se algo pode ficar claro, são os quilates da cidadania e da ética política que valorizamos como povo.
Depois de um mês de confinamento, e tentando olhar para o horizonte, antecipando o estado de espírito com o qual teremos de trabalhar no “dia seguinte”, ficam claras algumas coisas. Consequentemente, há que partilhar as seguintes trinta teses para uma gestão orientada para o futuro. E, para concluir, enquadrá-las com algumas outras considerações de âmbito mais alargado.
- O Estado tem autoridade e poder suficiente para limitar a capacidade de actuação e a liberdade de manobra de todos os agentes. Entende-se que o faz para implementar com sucesso medidas drásticas e excepcionais, a partir das quais tenta organizar a vida social e económica.
- Essa legitimidade deverá estar orientada sempre para o Bem Comum e não para qualquer outro tipo de finalidades particulares ou partidárias.
- A distinção conceptual entre Estado e Sociedade, em circunstâncias tão excepcionais como as que vivemos, é cada vez mais evidente. Nem tudo pode – e não deve! – ser feito pelas administrações públicas ou pelos organismos estatais. De facto, a capacidade da sociedade para responder com agilidade e solvência a situações críticas tem sido evidente.
- A Economia constitui um valor de grande peso, mas não é o de maior ponderação. Na base de tudo está a própria Vida e a Saúde!
- Por isso, a sensatez pessoal, a prudência política e o bom senso pedem, em primeiro lugar, que se ataquem as causas que nos levaram a estas circunstâncias infelizes.
- Em paralelo, há que disponibilizar os meios adequados para evitar que persistam os riscos para a saúde e para a vida.
- A lealdade institucional convida, neste tempo em particular, à abstenção de se distrair as acções de coordenação ante a crise, com ataques à acção governamental, com base em erros passados, mesmo que estes sejam óbvios.
- Neste momento, é suficiente assegurar que as autoridades não tomem medidas injustas, desequilibradas, opacas ou oportunistas. O que exige controlo democrático por parte dos grupos da oposição e dos media e um exercício de transparência por parte do governo.
- A lealdade nacional exigirá, posteriormente, um verdadeiro ajuste de contas, tanto político como social e, quando apropriado, administrativo e criminal, no que respeita às acções cometidas ou às omissões mais ou menos irresponsáveis, devendo estas ser avaliadas e processadas num determinadomomento.
- Vamos ter de esforçarmo-nos muito para superar a situação – vital, anímica, económica, política, social – em que ficámos, depois de fazer o seu balanço e sermos capazes de aferir os seus danos.
- Alguns destes serão em termos de perdas de vidas humanas e, neste campo, o número de mortes terá de ser criteriosamente aferido não só para avaliar adequadamente a questão mas também, e se necessário, para retirarmos daqui lições e medidas que, no futuro, possam evitar situações como a que estamos a lidar.
- Outros danos terão de ser objecto de reflexão em termos económicos. Só com base em dados rigorosos é que será possível estimar, fidedignamente, que caminho deverão tomar as medidas de política económica para se poder evitar uma recessão excessivamente grave tanto em termos de abrangência como de profundidade.
- A partir de um plano económico bem estruturado – e, se possível, ao nível de toda a União Europeia – deverão ser implementadas medidas técnicas para minimizar o impacto da recessão e permitir que a actividade económica seja retomada no mais breve espaço de tempo.
- Os princípios que deverão orientar qualquer medida de política económica extraordinária podem reduzir-se aos seguintes: eficiência, justiça, sensatez, prudência, transparência, transparência, transparência e transparência.
- As empresas, por seu turno, devem já ter constatado, e no contexto da natureza excepcional da crise do coronavírus, que existe um número de circunstâncias que exige determinadas considerações para se encarar o futuro com lucidez.
- Três conceitos deverão emergir fortemente, os quais deverão ser cuidadosamente considerados pelas empresas e por quem as gere: por um lado, a colaboração; por outra, a dependência mútua; e, finalmente, a simbiose, a realidade convivencial na qual a acção da empresa se desenvolve no que respeita a outros agentes e instituições.
- Sem colaboração não pode haver negócio. Sem empresas, a sociedade fracassa e as autoridades tornam-se inoperantes. Mas, por sua vez, a empresa depende da colaboração externa e da legitimidade concedida pela autoridade, a qual e também por sua vez, legitima. E todos convivem e, em suma, sobrevivem em comum, de forma simbiótica.
- A conjuntura que estamos prestes a vivenciar, causada pela grande crise económica que resultará da emergência inerente à luta contra a pandemia de coronavírus, constitui uma boa oportunidade para se retirar conclusões relativamente às teses acima afirmadas.
- Deverá ser já claro de que forma a empresa faz parte de um contexto alargado que, estando fora de si mesma – latu sensu, faz parte do ambiente – é o que lhe confere vida, viabilidade e legitimidade fornecendo uma carta de cidadania no mercado, ao mesmo tempo que, ao longo do processo, oferece as condições que possibilitam o crescimento e a expansão possíveis.
- Adicionalmente, a empresa constitui um agente social, a partir da natureza económica que representa, em si mesma considerada.
- A razão profunda para a existência da empresa, considerada como uma organização económica, enfrenta duas realidades, as quais coincidem em apontar a pessoa como a chave da explicação e justificação.
- Os trabalhadores e aqueles que, relacionados desde o interior ou na órbita da própria instituição, animam o organigrama e a estrutura organizacional, são pessoas. Clientes, parceiros, mediadores, distribuidores, fornecedores e concorrentes são, no final do dia, pessoas também.
- Uns e outros têm as suas próprias agendas e expectativas que configuram os seus projectos de vida. E um aspecto essencial de tudo isto converge e está relacionado com a realidade institucional que a empresa constitui.
- A empresa é, assim, uma realidade económica e social, e faz parte de um tecido institucional abrangente. E é este tecido que permite, facilita e encoraja o desenvolvimento dos negócios.
- Ao mesmo tempo, a empresa, com a sua mera existência num mercado livre e competitivo, contribui directa e imediatamente para articular o contexto social e para conferir resiliência ao sistema.
- A sociedade depende, em grande medida, da qualidade, da capacidade de inovação económica e social, bem como da solvência das empresas que operam no seu seio e que formam o tecido industrial e de serviços da própria sociedade.
- Dependendo do nível de vitalidade e energia das empresas, a própria sociedade será mais ou menos rica e generosa; e estará em condições, melhores ou piores, para promover o crescimento económico, o progresso e o bem-estar social e, em suma, para alcançar o desenvolvimento das pessoas e dos seus povos.
- Ao pensarmos como a empresa deverá enfrentar as novas realidades que emergem da situação que estamos a viver e com vista a encarar a sua própria acção com a mentalidade adequada, o que primeiro deverá ser feito será adoptar a determinação firme e perseverante de lutar com todas as forças para sobreviver, garantindo a viabilidade da empresa em qualquer caso.
- É uma ocasião privilegiada para repensar aspectos chave que apontam para o próprio coração da empresa. Por um lado, o próprio modelo de negócio. Por outro, a forma mais adequada para organizar o trabalho. Acima de tudo, a forma a partir da qual se pode contribuir para a criação e contribuição do valor no grau máximo para a empresa, fornecendo-o à sociedade enquanto um todo.
- A empresa não deverá somente preocupar-se em levar a cabo transacções de qualidade; mas sim e acima de tudo, em estabelecer relacionamentos poderosos que facilitem impactos significativos no ambiente, no contexto e no sistema, em prol de um futuro partilhado, no qual os agentes contribuam para o cuidado mútuo, com base num compromisso para com a sustentabilidade.
Suficiente será afirmar que tudo isto se refere a aspectos específicos de natureza política, económica e, especialmente, de gestão empresarial. Contudo, gostaria de fechar o ciclo destas reflexões, enquadrando o que foi dito com considerações de âmbito mais conceptual, apontando para algumas considerações de natureza ética.
Sem entrar em grande detalhe nos argumentos que se seguem – tal como não foram desenvolvidas as trinta teses acima mencionadas – gostaria de deixar claro o seguinte: que o mundo é muito pequeno e o destino da humanidade é unitário e holístico. Assim e desta forma, parece não existir salvação se decidirmos isolarmo-nos e ignoramo-nos uns aos outros. E isto tem de ficar muito claro.
Assim, o corolário para o acima exposto é o de que muros e fronteiras não têm razão para existir. Na verdade, significam muito pouco quando existe uma pandemia – ou qualquer outra variação do tema, seja uma fuga radioactiva, um desastre natural, um problema ecológico – ou algo do mesmo calibre. As fronteiras servem, a este respeito, para muito pouco, para além de delimitarem os territórios nos mapas da geografia política.
Não terá chegado o momento de começarmos a considerar a possibilidade remota de estabelecermos pré-condições, a partir das quais podemos tentar encontrar um consenso para um processo de pré-consulta com vista a uma conferência de condições prévias possíveis para que, a médio prazo, se convoque uma conferência de alto nível? E cuja agenda inclua como único ponto o estudo preliminar para identificar as condições estruturais e um enquadramento objectivo de abordagem a partir do qual seja possível chegar a um pré-acordo global – ou, por outras palavras, à escala planetária – onde a abordagem de uma ordem diferente no sentido de uma nova realidade geoestratégica e uma organização do mundo mais humana, mais sustentável e mais justa poderia ser repensada com calma?
Penso que sim. Veremos se é possível todos decidirmos tornar exequível uma nova e mais sensível forma de nos organizarmos enquanto espécie humana e vulnerável, num mundo finito e muito ferido … onde a ética e a Vida Boa sejam postas no lugar, bem abraçadas. E conseguindo que os poderosos se posicionem a si mesmos ao serviço das pessoas e do Bem Comum.
Como fazê-lo? Não há receita. A única certeza que temos é a de que, sozinhos, não o poderemos fazer. E nem Zeus do Olimpo nem Deus Pai virão ajudar-nos a retirar as castanhas do fogo. É uma tarefa humana e temos de ser nós, homens e mulheres, a fazer o trabalho. Se fizermos o que pudermos, já teremos feito alguma coisa. Porque,
outra coisa que deverá ficar clara é a de que a fantasia delirante da omnipotência tecnológica, com a qual tantos freaks enchem a boca, também já recebeu uma cura salutar de humildade.
A realidade, neste sentido, surpreendeu-nos e irá, muito provavelmente, voltar a surpreender – e mais vale cedo do que tarde – no futuro. E se olhássemos para a situação vivida com um ensaio geral para novos cenários que muito provavelmente – e mais cedo do que tarde – teremos de enfrentar enquanto espécie humana?
Apostemos no melhor que temos: valores, liberdade, irmandade, solidariedade, dignidade, ética, em suma, como cúpula e tarefa do que de mais genuíno existe no espírito humano.
Director da Cátedra de Ética Económica e Empresarial, na Universidad Pontificia Comillas, autor de vários livros sobre Ética e Responsabilidade Social Corporativa, conferencista reputado e doutorado em Filosofia