Muito do que aconteceu no tempo de pandemia vai ter influência no futuro das nossas organizações, sobretudo se não quisermos voltar para trás e se considerarmos que queremos chegar a uma nova normalidade, diferente da que tínhamos antes. E as mudanças que presenciámos têm, em grande parte, impacto nos relacionamentos, pois implicam pessoas e, por isso, originam potencialmente ajustes na cultura ética das organizações
POR ANA ROQUE

Muito do que aconteceu no tempo de pandemia vai ter influência no futuro das nossas organizações, sobretudo se não quisermos voltar para trás e se considerarmos que queremos chegar a uma nova normalidade, diferente da que tínhamos antes. Ou seja, se considerarmos que há uma aprendizagem que pode ser capitalizada e aproveitada para construir um futuro mais feliz para as empresas e para os colaboradores, na plena acepção da palavra que, em última instância, segundo Aristóteles, é o que pretendemos atingir e é aquilo a que se destina a ética.

As mudanças que presenciámos, e que queremos alcançar têm, em grande parte, impacto nos relacionamentos, implicam pessoas e, por isso, originam potencialmente ajustes na cultura ética, feita de instrumentos, liderança e procedimentos que tínhamos vindo a desenhar e a disseminar ao longo dos tempos.

Digo isto porque, para onde quer que olhemos, deparamo-nos com aspetos que valem a pena serem repensados sob pena de avançarmos às cegas, de sermos tolhidos por medos que nos impedem de avançar como os que surgem em algumas das primeiras respostas do inquérito “Ética em tempos de pandemia” realizado pelo Fórum de Ética da Católica Porto Business School e ao qual ainda é possível responder. Nas respostas já recolhidas para este mesmo inquérito, os trabalhadores referem a resistência por parte de algumas chefias em pensar, por exemplo, o trabalho diário em termos de objectivos, insistindo, ao invés, nos horários para assegurar um padrão tradicional de controlo.

É importante refletirmos sobre como funcionavam as nossas organizações antes da crise, quais eram os nossos hábitos e a nossa visão do trabalho, o que era “fazer parte” e o que era gerir uma organização.

A reflexão pode começar pelos valores. À luz do que vivemos nos últimos meses, qual é a visão que temos sobre os nossos valores? São os mesmos? Há valores conflituantes? Qual é a nossa hierarquia de valores? Entre a segurança e o respeito pela privacidade dos dados, qual é que escolhemos? E a transparência? Quais são os limites? Porquê?

De repente, a empresa entrou pela casa dos trabalhadores. Tudo aconteceu muito rápido e não podíamos prever, mas se, agora e por decisão nossa, as pessoas se mantiverem em casa, há diversos aspetos sobre os quais vale a pena refletir: o que é o tempo privado? Que tipo de controlo é legítimo ser exercido num espaço que é do trabalhador? A avaliação de desempenho pode ter de ser repensada até porque vai ser feita, em grande parte, com base no que ocorre longe da vista das chefias e dos pares.

A confiança e a responsabilidade individual adquirem novas dimensões. Temos de confiar mais, há mais situações de decisão necessariamente autónomas, e a capacidade de cada um pensar e analisar cada caso adquire uma nova importância, até de um ponto de vista da gestão do risco para a empresa.

É uma tendência que não é completamente nova. Gradualmente, temos vindo a assistir a uma alteração dos códigos com as tradicionais três perguntas no final — ”É legal?; Está de acordo com os valores da empresa?; Estaria confortável que aparecesse nos jornais?” — para códigos que remetem para uma análise mais introspetiva e mais centrada no valor do julgamento individual. Exemplo disso é o código da Dell que começa com a recomendação de uma pausa – “Pause to reflect on your point of view. Take a few minutes to consider where you are and your view of the situation”- , e que termina com o apelo à responsabilização e à transparência: que o trabalhador partilhe a decisão que tomou.

Estes são aspetos muito relacionados com a cultura que agora tem de ser repensada de modo a poder ser desenvolvida e alimentada também fora das paredes da empresa.

É importante, por exemplo, repensar o conceito que a organização tem de pessoa, a forma como é tida em conta a individualidade, os valores pessoais dos trabalhadores.

Aliás, se refletirmos, verificamos que muito do sucesso da empresa está relacionado com valores pessoais, como o altruísmo de, em momentos de risco pessoal e familiar, aceitar como missão ir trabalhar para servir os outros. Assistimos com frequência a casos destes nos últimos tempos por parte de profissionais com funções que até então não tínhamos por hábito valorizar grandemente, e não me estou a referir aos profissionais da saúde, mas sim e por exemplo, aos profissionais da limpeza.

Relacionado com este aspeto da valorização das pessoas surge o elefante que tem estado na sala e que muito poucos têm encarado: o aspeto da justiça organizacional, a resposta e a postura da empresa relativamente à questão do salário dos executivos. É um dos pontos destacados como incontornáveis por um dos diretores do Institute of Business Ethics, num artigo denominado “The future ain’t what it used to be” dedicado à ética pós-Covid.

Outro aspecto que este tempo tornou mais claro é a necessidade de a empresa ter em conta a família. A família deixou de ser invisível, pode estar na mesma sala em que se trabalha, pode ouvir cada reunião.

A vida privada, a família que andava a desaparecer dos códigos de ética, quase só surgindo pela negativa quando se falava em temas como conflito de interesses, vai ter agora de reaparecer. A família espreita pela porta enquanto trabalhamos, reclama que se trabalha demais, presencia. Aspetos como a forma como se fala em contexto de trabalho, a linguagem que se utiliza, a linguagem que é utilizada connosco pelos nossos chefes, passa a ser um potencial exemplo, nomeadamente para as crianças que eventualmente ouçam uma conversa de contexto laboral.

Como refere Arménio Rego, em contexto laboral “Tomamos decisões e adotamos condutas nas organizações que teríamos vergonha de assumir perante as crianças – pois temos consciência de que seriam pouco exemplares para a sua educação como cidadãos bem formados!”

Como é que tudo isto vai fazer parte dos nossos futuros códigos de ética? E quais vão ser os novos temas dos códigos? Uma boa forma de uma empresa identificar os temas que podem ser importantes fazer constar de um código de ética é fazer ou refazer a matriz de risco ético. Algumas empresas já tinham feito a matriz, mas agora alguns dos riscos identificados poderão ter mudado ou adquirido uma nova dimensão.

A segurança da informação, por exemplo, adquire uma nova importância, com mais documentação a sair da sede da empresa e a passar para a casa dos trabalhadores.

Toda a gestão do risco deve ser repensada e também os procedimentos, nomeadamente os relacionados com o reporte de más práticas, tendo em conta até a recente Whistleblower Directive prevista para entrar em vigor em 2021, e que estabelece regras claras para os canais de denúncia em organizações públicas e privadas, com mais de 50 trabalhadores.

São muitos os aspetos e os pontos sobre os quais vale a pena refletir e repensar, e não apenas relativos às relações no interior da empresa, mas também os que estão relacionados com questões de âmbito social como a saúde, a educação ou o combate à pobreza, aspetos relativamente aos quais cada vez menos as empresas podem dizer que não lhes dizem respeito.

Nunca a reflexão foi tão importante. Este é momento de pensar sem medo, de questionar os nossos quadros mentais, de pôr em questão o sistema e tentar construir algo de novo.

Activista da ética, investiga, escreve e desenvolve iniciativas no sentido de promover a reflexão ética e o pensamento crítico. Procura formas alternativas de promover a ética empresarial.