De acordo com uma análise publicada recentemente pela organização internacional Oxfam, e seis meses passados sobre o deflagrar da pandemia, uma boa parte das empresas de grande dimensão não está a enfrentar “adequadamente” as consequências económicas da Covid-19, nem a proteger trabalhadores e demais stakeholders. Mas esta falta de preparação e de mecanismos eficazes de resposta não é um “acidente”, mas antes a repetição da velha história que parece subsistir mesmo quando são as próprias grandes empresas a assumir publicamente compromissos que ditam o fim do retorno para os accionistas e para os executivos de topo como o seu objectivo primordial. Na verdade, a pandemia está a expor ainda mais o vasto fosso existente entre os “poucos” e os “muitos”
POR HELENA OLIVEIRA
O agravamento da crise de desigualdade desencadeada pela COVID-19 é alimentada por um modelo económico que permitiu a algumas das maiores empresas mundiais canalizar milhares de milhões de dólares em lucros para os accionistas, dando mais uma vitória aos principais multimilionários do mundo. E, ao mesmo tempo, deixou trabalhadores e, e em particular, as mulheres com baixos rendimentos, a pagar o preço da pandemia, em muitos casos sem qualquer protecção social ou financeira. Milhões de trabalhadores e respectivas famílias em todo o mundo perderam os seus rendimentos à medida que os mercados se contraíram, as empresas fecharam e os contratos com fornecedores foram cancelados. E estima-se que cerca de 500 milhões de pessoas sejam ainda empurradas para a pobreza antes do fim da pandemia (que ninguém se atreve a prever) e que, até ao final deste ano, poderão morrer mais pessoas devido à fome ligada à COVID-19 do que devido à própria doença.
Esta é a acusação feita pela Oxfam International num relatório publicado este mês e intitulado “Poder, Lucros e a Pandemia”, o qual analisa e destaca o fracasso das empresas em se prepararem adequadamente para enfrentarem as consequências económicas da COVID-19. De acordo com a organização internacional, a falta de preparação das empresas e dos seus mecanismos de resposta não é um acidente, mas o resultado de um modelo económico que as levou a concentrarem-se nos lucros a curto prazo, a maximizar a eficiência, a limitar o poder dos trabalhadores e das partes interessadas e a dar prioridade aos ganhos para os accionistas e executivos ricos em detrimento dos trabalhadores. Ou, em suma, a repetição de uma velha história que parece subsistir mesmo quando são as próprias grandes empresas a assumir publicamente compromissos que ditam o fim do retorno para os accionistas e para os executivos de topo como o seu objectivo primordial.
Como sabemos, muitas empresas, especialmente as de menor dimensão, e sem o aval dos governos, foram duramente atingidas pela crise e forçadas a encerrar as operações para proteger trabalhadores e clientes, com um número significativo das mesmas a sofrer fortes pressões económicas devido ao declínio das suas receitas. Apesar das dificuldades sem precedentes que a Covid-19 está a criar para muitas empresas, e de acordo com a investigação realizada seis meses após o deflagrar da pandemia, a Oxfam afirma que, desde o seu início, as grandes empresas têm colocado os lucros à frente da segurança dos trabalhadores, reduzindo os custos da cadeia de abastecimento e utilizando a sua influência política para moldar as respostas políticas.
E, ao contrário do que profetizavam os optimistas – de que a Covid-19 seria um importante catalisador para uma mudança empresarial que beneficiasse todos os stakeholders, em particular os trabalhadores – a pandemia acabou por expor ainda mais o vasto fosso existente entre os “poucos” e os “muitos”. Enquanto os trabalhadores, as suas famílias, e as empresas – particularmente as de pequena e média dimensão – lutam pela sobrevivência, algumas grandes empresas ou conseguiram proteger-se muito bem das consequências económicas da pandemia ou chegaram mesmo a aproveitar-se da catástrofe. Para a Oxfam, os impactos económicos “distorcidos” da COVID-19 não são um fenómeno natural nem um acidente histórico. As consequências económicas poderiam ter sido mais equitativas, sublinha a organização, acrescentando ainda que os governos poderiam ter estado mais preparados, os trabalhadores poderiam ter sido mais bem protegidos e as empresas em dificuldades poderiam ter resistido melhor ao choque económico.
Pagamentos excessivos aos accionistas deixam empresas e trabalhadores mais vulneráveis ao choque pandémico
De acordo com a Oxfam, quando a Covid-19 deflagrou, as maiores empresas do mundo poderiam ter tido muito dinheiro “à mão” para proteger os trabalhadores, ajustar os modelos de negócio e evitar dispendiosos resgates públicos. A última década foi o período mais rentável da história para as maiores corporações do mundo. Por exemplo, as empresas pertencentes ao ranking Global Fortune 500 aumentaram os seus lucros em 156%, passando de 820 mil milhões de dólares em 2009 para 2,1 biliões em 2019. O crescimento dos seus lucros ultrapassou de longe o crescimento do PIB global, permitindo-lhes captar uma fatia cada vez maior do bolo económico global. No entanto, os lucros que obtiveram antes da actual crise foram quase exclusivamente para um pequeno grupo de accionistas, em vez de serem reinvestidos em melhores empregos ou em tecnologias amigas do clima. Entre 2010 e 2019, as empresas listadas no Índice S&P 500 pagaram aos seus accionistas multimilionários cerca de 9,1 biliões de dólares, o que equivale a mais de 90% dos seus lucros durante esse mesmo período.
A nova análise da Oxfam revela ainda que as principais empresas do mundo utilizaram os quatro anos anteriores à COVID-19 para intensificar a distribuição de lucros aos seus accionistas. Do ano fiscal de 2016 até 2019, as 59 empresas mais rentáveis a nível mundial distribuíram quase dois biliões de dólares aos mesmos. Estes pagamentos equivaliam, em média, a 83% dos lucros líquidos destas mesmas empresas. A título de exemplo, a recordista Apple distribuiu, só em 2019, cerca de 81 mil milhões de dólares aos seus accionistas.
A verdade é que e no ano passado, muitas das empresas que enfrentam agora problemas financeiros aplicaram a maior parte dos seus lucros em pagamentos aos seus accionistas. Por exemplo, as dez maiores marcas de vestuário pagaram-lhes um total de 21 mil milhões de dólares (uma média de 74% dos seus lucros no ano fiscal de 2019) sob a forma de dividendos e recompra de acções. E, neste momento, são milhões os trabalhadores deste sector, seja no Bangladeche ou no México, que perderam os seus empregos porque as empresas cancelaram encomendas e recusaram-se a pagar aos seus fornecedores. Ou e como sublinha a Oxfam, os tempos de bonança dos accionistas não terminaram com o início da COVID-19.
Desde Janeiro, e de acordo com os relatórios das próprias empresas, a Microsoft e a Google pagaram mais de 21 mil milhões e 15 mil milhões de dólares, respectivamente, aos seus accionistas. Por seu turno e mesmo quando a procura dos seus produtos diminuiu durante a pandemia, o fabricante de automóveis Toyota distribuiu, desde Janeiro, mais de 200% do que obteve em lucros aos investidores, o gigante químico alemão BASF mais de 400% ao longo dos últimos seis meses e a AbbVie, o colosso farmacêutico americano já distribuiu 184% dos seus lucros líquidos aos accionistas nos dois primeiros trimestres de 2020. Adicionalmente, três das mais proeminentes empresas americanas que estão a desenvolver vacinas contra a COVID-19, com milhares de milhões de dólares em dinheiro público – Johnson & Johnson, Merck e Pfizer – também já despenderam 16 mil milhões de dólares desde Janeiro para o mesmo efeito.
Já as seis maiores companhias petrolíferas mundiais – Exxon Mobil, Total, Shell, Petrobras, Chevron e BP, as quais reportaram prejuízos líquidos combinados de 61,7 mil milhões de dólares de Janeiro a Julho de 2020, não deixaram de pagar 31 mil milhões de dólares aos accionistas durante o mesmo período de tempo. Por seu turno, a Seplat Petroleum, a maior companhia petrolífera da Nigéria, pagou 132% dos lucros aos accionistas nos primeiros seis meses de 2020, mesmo quando o país corre o risco de colapso económico. Pagamentos excessivos aos accionistas são más notícias para a desigualdade, na medida em que só aumentam os rendimentos dos já ricos, não sendo gastos em melhores salários para os trabalhadores comuns e continuando a incentivar os CEOs a seguirem uma estratégia de curto prazo.
Adicionalmente e a nível global, a análise da Oxfam revelou que as doações das maiores empresas do mundo durante a COVID19 ascenderam em média a 0,32% do rendimento operacional para 2019 e, portanto, não constituem uma contribuição adequada tendo em conta os custos financeiros desta crise e a extensão dos lucros empresariais. Em vez de dependerem de contribuições voluntárias, os governos deveriam recorrer a formas mais eficazes de mobilizar os recursos das grandes empresas para combater a COVID-19.
Dado o aumento dos lucros de algumas empresas enquanto muitas outras se afundam no abismo económico, um sacrifício adequadamente partilhado poderia ser o de tributar os lucros astronómicos das grandes empresas. De facto, e como defende a Oxfam, um imposto ao estilo da Segunda Guerra Mundial sobre os “lucros pandémicos” da COVID-19 contribuiria para angariar milhares de milhões de dólares em novas receitas necessárias para enfrentar as crescentes disparidades económicas, raciais e de género trazidas à tona pela pandemia. Olhando apenas para as 32 empresas globais que mais lucram com a COVID-19, estima-se que em 2020 poderiam ser angariados cerca de 104 mil milhões de dólares, os quais poderiam ser utilizados, por exemplo, em testes e desenvolvimento de vacinas para a população global, em conjunto com mais 33 mil milhões que poderiam ser investidos na construção de uma melhor força de trabalho na área da saúde.
A caminho de um futuro ainda menos igualitário?
As perspectivas económicas para o mundo são profundamente preocupantes. Apesar das muitas vezes repetidas proclamações de “reconstruir melhor”, as tendências actuais apontam para economias menos equitativas, menos estáveis e menos sustentáveis, em que muitas indústrias serão dominadas por um pequeno número de grandes empresas, com muitos trabalhadores a terem ainda mais dificuldade em encontrar empregos decentes.
Os elevados níveis de endividamento dos governos e a redução das receitas fiscais são uma ameaça ao tipo de investimentos públicos inteligentes em grande escala necessários para construir economias inclusivas e sustentáveis. E se o mundo continuar no caminho que está a trilhar actualmente, é muito provável que a pandemia resulte em mudanças estruturais e de longo prazo, com as divisões socioeconómicas e políticas existentes a sofrerem um possível agravamento. Para a Oxfam, os principais vencedores da economia pós-COVID-19 serão as grandes empresas e os accionistas ricos, que terão ainda mais poder e recursos para moldar as políticas públicas. A capacidade governamental e a responsabilização serão, desta forma, enfraquecidas, levando a uma maior erosão da confiança popular na governação democrática e a uma maior agitação social.
Ao contrário da crise financeira global de 2008, que viu muitas empresas de sucesso ficarem para trás, a COVID-19 está a acelerar uma tendência económica preocupante – a concentração do poder económico nas mãos de algumas empresas cada vez maiores. A título de exemplo, a Oxfam analisa a dimensão e o alcance em expansão das empresas de tecnologia, incluindo as de comunicação, retalho online e as plataformas que reúnem trabalhadores independentes. A influência das empresas mais poderosas do sector e dos seus proprietários sobre o nosso trabalho, política e sociedades será ainda mais dominante no panorama empresarial pós-COVID. Isto não só colocará uma série de desafios relacionados com os modelos de negócio destas empresas – tais como os relativos à privacidade dos dados, liberdade de expressão, direitos laborais e evasão fiscal – como também irá provavelmente exacerbar a desigualdade e desafiar as instituições democráticas.
Igualmente preocupante é o facto de uma proporção significativa das perdas de postos de trabalho associadas à COVID-19 verificar-se em pequenas empresas, as quais são responsáveis por mais de 70% do emprego em países de baixo e médio rendimento. Dados provenientes de todo o mundo evidenciam como as PME têm sido particularmente afectadas pela pandemia. No Brasil, o confinamento provocado pela COVID-19 encerrou mais de meio milhão de pequenas empresas no prazo de duas semanas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que cerca de 436 milhões de empresas (incluindo trabalhadores por conta própria) estejam actualmente sob ameaça. Um recente inquérito desta mesma organização em oito países revelou que 70% das PMEs tiveram de encerrar as operações (metade devido a instruções das autoridades, metade devido a uma redução nas encomendas ou a casos de COVID-19 entre o pessoal). E, nos países de elevado rendimento, as pequenas empresas são também responsáveis por uma parte significativa dos postos de trabalho em risco.
As PME são particularmente vulneráveis porque têm frequentemente reservas de dinheiro mais pequenas para resistir a um declínio na procura do mercado e, muitas delas, porque operam predominantemente em sectores vulneráveis à perturbação causada pela COVID-19. Um inquérito realizado às PME na região da Ásia-Pacífico salientou que quase metade tem menos de um mês de reservas de dinheiro e que quase 30% esperam ter de despedir mais de metade dos seus trabalhadores. O acesso limitado das PME ao crédito (particularmente nos mercados emergentes) está a ter um impacto ainda mais pronunciado em tempos de crise.
Apesar do seu significado e necessidades, existe igualmente o risco de que a resposta à COVID-19 e as políticas de recuperação por parte dos governos estejam a dar prioridade ao resgate das “grandes empresas”. É por isso que, após a pandemia, as PME correm um risco enorme de vulnerabilidade económica, com consequências potencialmente terríveis para os trabalhadores de todo o mundo.
Adicionalmente, o impacto da COVID-19 no emprego global poderá não ser temporário. As projecções da OIT sugerem que não se vislumbra uma recuperação rápida e que o declínio do emprego poderá persistir para além de 2020. Os investigadores da Universidade de Chicago estimaram que 42% dos despedimentos recentes nos Estados Unidos poderiam resultar na perda permanente de postos de trabalho.
Como também é já habitual, são as mulheres as que mais atingidas são por este flagelo económico. Enquanto responsáveis por 39% do emprego global, as perdas globais que as afectam ascendem aos 54%. Nos Estados Unidos, mais mulheres do que homens perderam os seus empregos de Fevereiro a Maio, sendo as mulheres hispânicas e asiáticas as que mais sofrem. Na Índia, as mulheres representavam 20% da força de trabalho antes da pandemia, mas as sondagens de desemprego sugerem que elas são “responsáveis” por 23% da perda global de empregos.
Por um lado, as mulheres estão sobre-representadas em muitos dos sectores mais afectados (e em empregos com baixos salários) e, por outro, estão na linha da frente do trabalho de cuidados não remunerados, incluindo a guarda de crianças, a assistência a idosos, a cozinha e a limpeza. A COVID-19 aumentou o tempo que as mulheres gastam com estas responsabilidades – fazendo-as abandonar a força de trabalho a um ritmo mais elevado do que os homens.
Como alerta a Oxfam e tendo em conta análises realizadas sobre a crise do Ébola, em 2014, na África Ocidental e que evidenciam que os rendimentos das mulheres recuperaram muito mais lentamente do que os dos homens, sem um esforço concertado, as perspectivas para o futuro são mais do que sombrias.
Editora Executiva