Por muito que nos custe, o tempo pede formas diferentes de abordar os mesmos problemas, obriga-nos a (re)fundar conceitos, a estudar, a pensar em conjunto. Precisamos de um novo mapa de competências, no qual as Universidades, centros de saber e os foros possam servir de caminho comum
POR JOÃO QUINTELA CAVALEIRO
Aterramos. A sensação generalizada é que depois da turbulência, dos sustos, falta perceber a real dimensão dos danos. Socorro-me do exemplo dos Juristas, paradigma projectado para muitos outros talentos, para perceber o quanto esta arte se transformou com esta pandemia – ou melhor “pandemónio”.
Basta tomarmos como auxiliar o “Plano de Recuperação Económica e Social de Portugal 2020-2030”, projectado por António Costa Silva. Sem apontar a bondade ou crítica ficam as citações mais relevantes para ponderar. Nas páginas 141 e seguintes, Justiça: “modelo judiciário demasiado formalista”, “Portugal precisa de uma justiça, em particular da justiça económica e fiscal, orientada para o século XXI”, “reduzir os tempos”, “agilizar”, “transformação digital”, “divulgação pública do tempo médio de resolução dos processos por Tribunal”, “essencial aperfeiçoar modelos de gestão dos processos judiciais e, em geral, da justiça, desenvolvendo uma cultura organizacional centrada em resultados”.
Cientes que alguns conceitos, teoricamente correctos, podem ser prejudiciais se não aplicados com ponderação, é uma linha de acção com linguagem pouco natural aos juristas. A Justiça e o mais lato mundo do Direito são uma órbita com outra cadência, carente de maturação, respeitadora do caso concreto, de uma segurança sem respaldo em outro sector.
É a espuma do tempo, mas o momento é de (re)fundação, mais do que (re)transformação. Deu a volta a Magistrados, Advogados, Notários, Inspectores, In-house Lawyers, juristas da Administração Pública. A pandemia foi oportuna para recuperar o tempo que há tanto se precisava para despachar e decidir. Mesmo numa Justiça que não vive sem a imediação, o foro conseguiu encontrar soluções, fracas que fossem. O momento ressaltou um conjunto de procedimentos que há muito se percebia serem inúteis e que podiam ser revisitados, quiçá eliminados sem beliscar Direitos. Porém, como bem proclama a bitola protocolar francesa, “C’est le ton qui fait la musique”.
Para quem advogue, à catadupa de legislação adensou-se uma tarefa adicional. Exigiu-lhes mais do que nunca compreender decisões de gestão, ansiedades de líderes e colaboradores. Foi-lhes pedido que se libertassem dos espartilhos legais para ter criatividade no auxílio aos decisores a enfrentar uma crise sem precedentes. Páginas de diplomas rectificados, de reformação de conceitos, de uma “alteração de circunstâncias” e de “causas de força maior” que saíram das estantes, ganhando nova vida prática
Todos, sem excepção, foram forçados a rebuscar instrumentos básicos de gestão de recursos, a ajustar finanças da organização, aprender a gerir pessoas à distância, a pensar como se projecta a “marca” ou definir uma estratégia com uma neblina que obrigou a decidir à vista. Até a forma de negociar se ajustou, a intensidade do Governo das Sociedades adensou-se. E a maior evidência de todas, fomos “impelidos” a uma transformação digital, que pairava no ar, mas que começa a ganhar contornos de um “dever de competência tecnológica”. A quadratura do círculo será perceber como se preserva o segredo e a inexorável Confiança, sem poder estar presente com os Clientes?!
Por muito que nos custe – e confesso que em muitos casos toda esta erosão muito me consome –, o tempo pede formas diferentes de abordar os mesmos problemas, obriga-nos a (re)fundar conceitos, a estudar, a pensar em conjunto. Precisamos de um novo mapa de competências, no qual as Universidades, centros de saber e os foros possam servir de caminho comum. Com tanta névoa, resta uma passagem de esperança da figura mais marcante da actualidade – Papa Francisco – que prenunciava já em Maio de 2020 “que de uma crise como esta não se sai da mesma maneira, como antes: ou se sai melhor ou pior. Que tenhamos a coragem de mudar, de ser melhores, de ser melhores do que antes e de ser capazes de construir positivamente a pós-crise da pandemia”.
Nota: Artigo publicado originalmente no Jornal Económico de 12 de Outubro de 2020
Advogado e responsável do Núcleo da ACEGE de Vila Real
Há muito sonhava ( e continuo a sonhar) com um “um milagre ou revolução” numa LEI humana e menos cega. O texto que acabei de ler parece-me um milagre. Mas tudo é possível se lutarmos para isso…Duas ou três frases do texto acima devem ser lidas e bem compreendidas pelas nossas cabeças mas mais ainda pela justiça “cega” ou “míope”.
André R Correia
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