O afã de sermos os primeiros a apresentar um PRR na Europa é a razão para colocar a discussão um plano manco em que não é possível descortinar o grau de ambição ou a custo-efetividade quando a maioria das medidas não têm indicadores de execução ou metas?
POR PEDRO BARATA

“Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado”
Fado de Amália Rodrigues, letra de Aníbal Nazaré, música de F. Carvalho

Entrou em consulta pública o plano de recuperação e resiliência, principal instrumento de planeamento da “bazuca” orçamental europeia. A importância deste documento para a vida económica do país na preparação dos próximos dez anos não pode ser subestimada, tais são os volumes de financiamento disponíveis. Importaria por isso podermos refletir em conjunto sobre o seu conteúdo. É por isso lamentável que o período de consulta seja tão curto para tão importante documento.

Para quem já tenha algumas décadas de análises deste tipo de planos, ressalta em Portugal a falta na administração pública das componentes de avaliação de políticas. Pouco ou nada se conhece de pensamento produzido no seio da Administração sobre as suas próprias políticas, sobre a avaliação do cumprimento de objetivos de políticas passadas. Essa incapacidade de ter um pensamento reflexivo sobre as políticas passadas é, sem dúvida, um dos entraves a uma aprendizagem com os erros e consequentemente, a uma maior eficácia na gestão da coisa pública. A pobreza discursiva e, sobretudo, a pobreza de análise no documento em causa são por isso uma consequência de anos, décadas, de subinvestimento nessas capacidades. À custa de apresentações bonitas de PowerPoint de consultoras (eu sei, porque sou um deles), descapitalizou-se o Estado e as suas competências.

É assim que se chega a este triste estado de coisas. Comecemos pelo mais evidente: o Governo coloca a discussão um plano. Mas um plano costuma ter algumas componentes. Em primeiro lugar, deve ser coerente com uma estratégia global. Foi-nos dito que a estratégia a seguir seria a que foi apresentada e discutida pelo Engº António Costa Silva. Costa e Silva produziu um relatório que, não tendo o meu agrado total, tinha certamente um mérito maior – o de pôr-nos a pensar sobre as grandes opções estratégicas do país, a partir de um retrato mais ou menos minucioso das nossas vantagens competitivas, das grandes evoluções mundiais e do momento internacional em que vivemos. O documento Costa e Silva era discutível em muitos pontos, mas percebia-se o alcance e percebia-se o valor acrescentado – enorme, diga-se – do exercício.

Deste PRR depreende-se que ele será a consubstanciação do anterior documento. Tenho demasiada consideração pelo pensamento de Costa e Silva para o querer associar a este documento. Na prática, não se percebe, senão pelos títulos maiores dos documentos, que haja uma relação entre os mesmos.

Em segundo lugar, admitindo que não seja contemplada a estratégia, mas que ela exista na mesma, o plano deveria apresentar os indicadores de sucesso, as metas a atingir. É verdade que o documento exibe logo na abertura a opção por não incluir nesta versão pública essas metas, mas é caso para perguntar: o afã de sermos os primeiros a apresentar um PRR na Europa é a razão para colocar a discussão um plano manco em que não é possível descortinar o grau de ambição ou a custo-efetividade quando a maioria das medidas não têm indicadores de execução ou metas?

Em terceiro lugar, um plano faz uma afetação de recursos. Discute o seu levantamento, assim como as opções pela distribuição e afetação pelas diferentes áreas e medidas. Em lugar algum se faz essa explicação, podendo levar-nos a pensar que o mesmo não é senão uma coleção coligida à pressa de grandes projetos e medidas já previamente orçamentadas. Essa suspeita é ainda mais pronunciada quando na maior parte dos casos se apresenta a medida e a sua orçamentação como inscrita já em alguma estratégia prévia – seja ela o Hidrogénio, ou a Mobilidade Elétrica, etc…

Por motivos europeus, o PRR teria que responder diretamente às questões endossadas a Portugal aquando da última avaliação decorrente do Semestre Europeu. A leitura de toda essa secção é um exemplo de como responder sem nada adiantar.

Chegados aqui, temos um exercício de planeamento pobre, assente sobre diagnósticos setoriais e instrumentos programáticos datados, obviamente mais concentrados em “hard projects” – e sabemos como os “lobbies” adoram estes projetos de construção ou de equipamento, em vez das “soft skills” que precisaríamos para aliviar os constrangimentos ao nosso desenvolvimento. Da última vez que seguimos estes passos, acabámos com três autoestradas paralelas Lisboa-Porto, mas com uma linha do Norte com velocidades do século XIX, e um nível de pobreza energética vergonhoso.

Depois as modalidades de execução: não há uma linha, ou quase, sobre o papel de outros actores que não sejam os poderes públicos – dado que a grande maioria do dinheiro será consubstanciado em projetos públicos ou projetos de grande iniciativa pública. Para o tecido empresarial de pequena dimensão, inovador, não se vislumbram senão alguns, poucos parágrafos. Ao mesmo tempo que o Estado continua a centralizar ainda mais a execução destes dinheiros, como é o caso premente do Fundo Ambiental, que irá mais uma vez centralizar a administração de uma fatia muito relevante em tudo o que é ambiental neste Plano.

No meu canto da floresta (“my neck of the woods”), a política de clima em particular, acontece algo curioso – o plano reafirma as metas existentes de redução de emissões de Portugal, fruto do Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050 e do Plano Nacional Energia e Clima (PNEC). Mais uma vez, o documento repete uma falsidade – Portugal não foi o primeiro país do mundo a almejar a neutralidade carbónica – mas a falsidade, de tanto repetida, lá vai fazendo o seu percurso. Ainda assim, Portugal pode orgulhar-se sem dúvida de estar no pelotão da frente dos países que lutam pela neutralidade carbónica. Acontece que, felizmente, o mundo e a Europa mudaram, desde que o PNEC português foi elaborado. Em particular, a meta comunitária de redução de emissões foi aumentada, para 55%, pelo que estará para breve a discussão de um novo pacote/distribuição de metas nacionais. Não interessa aqui qual a evolução já tida nesse debate, a decorrer já dentro do enquadramento de uma nova Lei do Clima europeia, mas importa neste momento discutir o bizarro de fazer aprovar um Plano com bases que não são sequer as da discussão europeia sobre o tema central da transição climática europeia.

Finalmente, o plano dedica quatro magras páginas ao seu acompanhamento – via a costumeira Comissão de Acompanhamento, sem pouco mais ter de reflexão sobre a participação pública e comunitária sobre as grandes escolhas comuns que faz (nem que seja por omissão). Voltando ao início, espelha bem o desinvestimento da capacidade analítica e reflexiva da nossa administração pública. E condena-nos a mais um ciclo efémero de crescimento.

A Recuperação e a Transição Climática

A transição climática, entendida como a transição energética (descarbonização da energia elétrica + eletrificação dos consumos + aumento da eficiência energética) mas também a transição dos sistemas de uso do solo, da ocupação do território e dos ciclos de materiais, está já em curso, mas ainda de forma ténue e não consentânea com a dimensão do desafio que se nos coloca enquanto sociedade.

É nesse sentido que a anterior análise global do PRR, quando aplicada à dimensão climática, deixa-nos de certa forma constrangidos. Se pensarmos que toda a União Europeia erigiu para si o propósito de um novo Pacto Ecológico Europeu como elemento central da sua resposta política à pandemia, constata-se que falta muita “transição climática” neste Plano. Em particular:

  • Muito pouco (para não dizer nada) é pensado no setor energético para lá da cadeia do hidrogénio. Sendo certo que este será um debate indispensável e incontornável, a transição renovável levaria sem dúvida a pensar mais estruturadamente em apoios à implementação de projectos de energia renovável (fora das regiões autónomas), em múltiplas formas de atuação que não estão contempladas, como sejam por exemplo, as Comunidades de Energia Renovável ou as futuras Comunidades de Cidadãos para a Energia.
  • Quando em plena pandemia identificamos Portugal como dos países mais vulneráveis à pobreza energética, com uma substancial parte do nosso parque residencial não oferecendo condições dignas de habitabilidade do ponto de vista térmico, o PRR não oferece outras linhas de atuação que não a disponibilização de equipamentos, numa versão quase assistencial e de certo modo periférica aos eixos centrais do programa.
  • Quando é necessário aumentar a participação dos cidadãos e promover a figura do “prosumer” (produtor e consumidor de energia) por forma a apoiar a resiliência do sistema elétrico e o fornecimento energético, o tema não é sequer aflorado.

Não tenhamos dúvidas de que o PRR será sempre um plano com inevitável impacte positivo na economia e também na transição climática. Mas fica a ideia de que não é por este Plano que passarão as mudanças estratégicas do nosso sistema energético por forma a acomodar a transição climática.

Pedro Martins Barata, membro do Expert Adisory Group SBTi Net Zero Standard, co-presidente do Painel de Peritos da Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono e Partner da Get2c