O Papa Francisco dedicou à cultura do cuidado a sua mensagem para o Dia Mundial da Paz deste ano de 2021. Nessa mensagem, apresenta os princípios da doutrina social da Igreja como base da cultura do cuidado e “bússola” para um rumo comum do processo de globalização (n.ºs 6 e 7). Desses princípios destaca os da promoção e dignidade de toda a pessoa humana, o da solidariedade com os pobres e indefesos, o da solicitude para com o bem comum e o da salvaguarda da criação
POR PEDRO VAZ PATTO

Relembra a mensagem do Papa que o conceito da dignidade da pessoa surgiu e amadureceu com o cristianismo. Seguindo a célebre máxima de Kant, a mensagem afirma que a pessoa é um fim em si mesma, e nunca deve ser um mero instrumento a avaliar pela sua utilidade. Desta dignidade decorrem os direitos humanos, assim como os deveres. O conceito de pessoa não conduz ao individualismo, porque ela exige sempre a relação.

Sobre esse princípio também se debruça a carta pastoral da Conferência Episcopal portuguesa Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja, de 2 de maio de 20191. Aí se evoca a afirmação da constituição conciliar Gaudium et spes (n.º 25): «A pessoa é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais» É na visão bíblica e cristã do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e chamado a uma vida de comunhão com Ele que assenta a dignidade da pessoa.

Com também salienta essa carta pastoral, a dignidade da pessoa deriva do facto de ela ser membro da espécie humana e não de qualquer atributo ou capacidade que possa variar em grau ou possa ser adquirido ou perder-se nalguma fase da existência. Depende do que ela é, não do que ela faz ou pode fazer. Exige-se até uma maior proteção do ser humano mais vulnerável, por si mesmo ou pela fase da existência por que passa.

É oportuno relembrar estas verdades numa altura em que se questionam critérios de acesso a cuidados de saúde escassos, que não podem depender da idade como fator de discriminação (o chamado idadismo), porque, como a propósito afirmou o cardeal Tolentino Mendonça «o valor da vida não tem variações».

O valor e dignidade da vida em todas as suas fases também é contrariado pela legalização da eutanásia. Essa legalização pressupõe a ideia de que a vida humana perde dignidade e deixa de merecer proteção quando é marcada pela doença e pelo sofrimento; que a morte deliberada pode ser resposta aceitável para a doença e o sofrimento, e já não apenas o esforço incessante de os combater e aliviar.

Contraria a dignidade da pessoa (na grande maioria dos casos, da mulher) a prática da prostituição, também porque nela a pessoa é reduzida a objeto de uma transação comercial. Por isso, a danosidade da prostituição é algo que lhe é intrínseco, que nunca qualquer garantia jurídica poderá afastar. A proposta de legalização da prostituição como se de um qualquer trabalho se tratasse não corresponde a um qualquer progresso social, mas à capitulação diante de uma prática ancestral de exploração dos (das) mais vulneráveis.

O primado da dignidade da pessoa humana tem também implicações no âmbito da economia. Sobre essas implicações, também se debruça a referida carta pastoral da Conferência Episcopal portuguesa. Depois de realçar a persistência de elevados níveis de pobreza entre a população portuguesa, essa carta afirma, na linha do que tem afirmado o Papa Francisco, que «a economia, a empresa, os mercados devem estar ao serviço das pessoas, e não o contrário».

Como consequência desse princípio, afirma essa carta pastoral: «A busca do lucro é, em si mesma, legítima. Mas já não o será, se conduzir ao sacrifício de direitos fundamentais da pessoa do trabalhador. Pode um despedimento, individual ou coletivo, ser exigido pela necessidade de evitar, a curto ou longo prazo, a insolvência da empresa. Nesse caso, será legítimo como uma forma de salvaguardar ainda postos de trabalho na medida do possível. Mas já não o será se a empresa tem lucros e pretende, com os despedimentos, apenas aumentar esses benefícios. Neste caso, tal decisão não está ao serviço da pessoa humana, mas sacrifica-a».

O Papa Francisco indica o princípio da solicitude pelo bem comum como guia orientador de um rumo inspirado pela cultura do cuidado.

A este respeito, afirma a sua mensagem que «cada aspeto da vida social, política e económica encontra a sua realização quando se coloca ao serviço do bem comum». Por “bem comum” deve entender-se, de acordo com a definição da Gaudium et spes (n.º 26), o «conjunto das condições da vida social que permitem a todos, aos grupos, como a cada um dos seus membros, alcançar mais fácil e plenamente a sua perfeição». O bem comum alarga-se a toda a família humana, a do presente e também as gerações futuras. Todos os nossos projetos e esforços devem ter presente os seus efeitos sobre toda a família humana. Revelou-o bem a experiência da pandemia da Covid-19, perante a qual nos apercebemos de que «estamos no mesmo barco, todos frágeis e desorientados, mas, ao mesmo tempo, importantes e necessários, todos chamados a remar juntos, porque ninguém se salva sozinho e nenhum Estado nacional pode assegurar o bem comum da sua população».

Sobre o princípio do bem comum, também se debruça a referida carta pastoral dos bispos portugueses. Aí se afirma: «O bem comum é o bem de todos e de cada um. Não é a soma de bens individuais; mas também não é o bem de um todo que se sobrepõe às partes; porque cada parte, cada pessoa, tem um valor por si mesma, é um “todo” por si mesma. Não é, por isso, o bem do “maior número” numa perspetiva utilitarista, de uma maioria que sacrifica bens fundamentais da minoria».

Por isso, o bem comum não se confunde com o bem da maioria. Se num país predomina o peso eleitoral da classe média, não podem, por isso, ser ignorados ou desvalorizados os direitos dos mais pobres. Tal como não pode ser ignorado o bem das populações de zonas do interior do nosso país que se vão tornando cada vez menos numerosas.

Também nessa carta se salienta a dimensão universal do bem comum. Não devem ser contrapostos o bem comum nacional e universal. Por isso, são inaceitáveis as correntes inspiradas no “nacionalismo de exclusão” e na hostilidade aos imigrantes. Como tem sido salientado pelo Papa Francisco, a imigração não deve ser encarada como uma ameaça, mas pode contribuir para o desenvolvimento dos países de origem e de destino (a nossa própria experiência histórica demonstra-o).

A mensagem do Papa alude também ao princípio da solidariedade, estreitamente ligado ao do bem comum. Na verdade, ele é aí definido, de acordo com a encíclica de São João Paulo II Solicitudo rei socialis (n.º 38), como «a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum, ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos»

Salienta esta mensagem que a solidariedade não é um sentimento vago, mas exprime o amor de maneira concreta; «ajuda-nos a ver o outro – quer como pessoa quer, em sentido lato, como povo ou nação – não como um dado estatístico, nem como meio a usar e depois descartar quando já não for útil, mas como nosso próximo, companheiro de viagem, chamado a participar, como nós, no banquete da vida, para o qual todos somos igualmente convidados por Deus».

A propósito do princípio da solidariedade, será oportuna a referência a um outro documento da Conferência Episcopal portuguesa, este de 17 de junho de 2020: Recomeçar e reconstruir – Reflexão da Conferência Episcopal Portuguesa sobre a sociedade portuguesa a reconstruir depois da pandemia Covid-192.

Aí se afirma que nos espera, como consequência indireta da pandemia Covid-19, uma crise económica e social de uma dimensão que não tem paralelo na história mais recente. Para enfrentar esta crise, é necessário um esforço de solidariedade que também não tem paralelo na nossa história recente.

Nesta reflexão dos bispos portugueses, salienta-se como a amplitude da crise tem feito redescobrir a importância do papel do Estado, não só no que diz respeito aos necessários apoios sociais, mas também no que diz respeito ao relançamento da economia. Verifica-se, mais uma vez, que o mercado ou uma economia movida apenas pelo interesse individual não conseguem, por si só, fazer face aos desafios desta crise. Esse papel do Estado é reconhecido pela doutrina social da Igreja e relaciona-se com o princípio da solidariedade. Mas deve também ser salvaguardado outro princípio basilar dessa doutrina, o princípio da subsidiariedade, que exige que o Estado não se torne omnipresente anulando as iniciativas da sociedade civil. Salienta, a este respeito, este documento da Conferência Episcopal portuguesa que não deveremos cair na ilusão de que do Estado pode esperar-se a superação da crise sem o contributo da iniciativa e criatividade da sociedade civil, quer no plano dos apoios sociais, quer do relançamento da economia. Essa seria uma forma de desresponsabilização da sociedade civil.

Esta reflexão salienta também que a situação que experimentamos poderá ser uma ocasião para construir um sistema em que os valores da solidariedade não movam apenas as ações de apoio social, mas penetrem também na economia e no mercado. Cita, a propósito, a proposta da encíclica Caritas in Veritate (n. 39) de fazer penetrar a lógica do dom e da solidariedade na economia, nas empresas e no mercado.

Na sua mensagem, o Papa Francisco indica a salvaguarda da criação como um outro princípio da doutrina social da Igreja que deverá servir de “bússola” de um novo rumo da globalização orientado pela cultura do cuidado.

Na verdade, não tem sido habitual apresentar a salvaguarda da criação como um princípio da doutrina social da Igreja a par de outros princípios basilares dessa doutrina. Compreende-se a inovação à luz do relevo que vem sendo dado a esse princípio no magistério do Papa Francisco, sobretudo a partir da publicação da encíclica Laudato sì. Mas esse princípio não pode ser desligado dos restantes e é no contexto global da doutrina social da Igreja que deve ser enquadrado.

Nesse sentido, salienta o Papa Francisco, citando a encíclica Laudato sì (n.ºs 91 e 92): «não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza, se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos»; «paz, justiça e salvaguarda da criação são três questões completamente ligadas, que não se poderão separar para ser tratadas individualmente, sob pena de se cair novamente no reducionismo».

A visão bíblica da criação ilumina e esclarece o papel da pessoa humana em relação à natureza. Essa visão confere ao ser humano uma dignidade incomparável, porque criado à imagem e semelhança de Deus. Deus, em Jesus Cristo, assumiu natureza humana e Este deu a vida pela salvação da humanidade, para que esta pudesse partilhar a vida de Deus.

Mas a teologia da criação também nos leva a compreender que o ser humano não deve substituir-se ao Criador, nem tratar a natureza como objeto do seu domínio absoluto. É criatura, não se cria a si próprio. É uma criatura dotada de sublime dignidade, mas não deve substituir-se ao Criador, deve, antes, com Ele colaborar, completando a sua obra, sem a destruir. A especial dignidade da espécie humana é um privilégio, mas também uma responsabilidade. A encíclica Laudato Si` denuncia o “antropocentrismo moderno” ou “antropocentrismo desordenado” como uma das raízes da crise ecológica.

Há um outro aspeto, que nem sempre é referido, e que me parece de salientar. É o que diz respeito à noção de “ecologia humana”, em relação ao qual o magistério da Igreja contrasta com o pensamento ecologista dominante.

Sobre a “ecologia humana” pronunciou-se Bento XVI na encíclica Caritas in Veritate (n. 51): «Se não é respeitado o direito à vida e à morte natural, se se tornam artificiais a conceção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental. É uma contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas. O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral

NOTA: Este artigo resulta de uma síntese do capítulo “Uma Bússola para um Rumo Comum” incluído no livro “ A Sociedade do Cuidado”, obra que apresenta uma reflexão multifacetada sobre o cuidado – o cuidado com os outros, com o mundo e consigo próprio”, contando com a visão de 30 autores de prestígio. A sua pertinência foi reforçada pela pandemia do Covid-19, a qual acentuou a natureza social, global e interconectada da humanidade, e que se entende como estruturante para o futuro da sociedade humana global.

Editado pela Universidade Católica Editora, a obra pode ser adquirida aqui

Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz (CNJP)
Juiz Desembargador