Foi em mais uma conversa promovida pela ACEGE que António Pinto Leite, ex-presidente desta Associação, apresentou o seu recém-lançado livro sobre a sua vida intitulado “Não há vidas grátis”. Afirmando que é “o coração que fala”, o autor propõe, na sua narrativa, transmitir os motivos que o levaram a escrever 59 curtas-metragens nas quais se expõe nuamente, despojado de receios ou preconceitos. Um acto de vulnerabilidade ou um acto de coragem? Da parte de Pinto Leite, a resposta é simples: este livro “é o que eu sou”
POR HELENA OLIVEIRA

No início da sua intervenção, António Pinto Leite assume que não é propriamente comum ser o autor a apresentar o seu próprio livro. Tendo sido “intimado” para tal, começa por explicar que o livro nasce quando a carga de stresse baixou de 14 horas para 8 horas por dia, permitindo-lhe uma visibilidade sobre a vida que não era possível “quando estamos afogados em trabalho”.

De acordo com o autor, não é propriamente um livro de memórias, mas antes “um passeio no tempo que está vivo em mim” e não tem capítulos, mas antes “59 curtas-metragens”. Explica que “se desdobra em dois – o António que está numa situação que já ocorreu e que está viva em si e o António que está a escrever, que se aproxima e fala consigo mesmo” -, sabendo que “viver é desenhar sem borracha e que não há hipótese nenhuma de apagarmos o que aconteceu, ainda que esteja vivo”. E enfatiza também que “o livro é um monumental exercício de paz interior”, citando o filme “Oito e Meio”, dirigido em 1963 por Federico Fellini e uma frase proferida pelo actor principal, Marcello Mastroianni, que diz que “ser feliz é poder contar a verdade toda sem magoar”.

Não foi fácil decidir, junto da família e amigos a quem deu o manuscrito a ler, se este era publicável ou não, na medida em que nele expõe a sua vida [e também parte da dos que lhe são próximos], posição considerada de vulnerabilidade por alguns dos que consultou e de coragem por outros tantos. “Com os que receavam a minha vulnerabilidade, reflecti que a vulnerabilidade com o sentido do outro pode ser uma força e não uma fraqueza”. De qualquer das formas, a publicação foi “autorizada” pela sua família, mesmo que esta o tenha feito de “coração apertado”. “Da minha parte não recorri à coragem, mas ao meu espírito de liberdade e à convicção de que o livro tem o sentido dos outros e pode chegar a alguém”.

O homem que dividiu, ou multiplicou, a sua vida entre a política, o jornalismo, o ensino e a advocacia, “e mais de mil conferências e cargos ligados ao bem comum, como a ACEGE”, afirmou ainda que o livro “não é para a posteridade”, mas “para a proximidade”, para a família, para as pessoas que ama e o amam, para aqueles “a quem a minha vida acidentada pode tocar”, e, em particular, para os seus 12 netos “e para os que virão”. Começou a escrever para os netos,  “com o objectivo de os ajudar” – e na medida em que a sua vida foi feita de “tropeções” – fazendo-os pensar que “se o avô se safou, também eu me vou safar”.

No Prefácio da obra, assinado por Marcelo Rebelo de Sousa, fala-se ainda em outras vidas, a adicionar às já referidas: a familiar e a da fé. “ Tenho noção de que Deus é a principal personagem da minha vida, assim foi mesmo quando não sabia que existia. Ao escrever o livro e ao passear no tempo fiquei pasmado com a interferência que teve e como, subtilmente, se tornou na personagem central do livro”.

Quanto à família, distingue a mulher, Guida – ou Simões, como a trata. António Pinto Leite afirma que “a Guida baptizou a obra como ‘o nosso livro e concordo com ela’” e, entre risos, acrescenta que “é o nosso sexto filho, mas desta vez é evidente que sai ao pai”.

Plano de reforma: amar perdidamente

António Pinto Leite explica que o livro tem três partes: a estrada do fim, ”que é o sítio onde estou”, o passeio no tempo e a estratégia para a eternidade. O autor detém-se na primeira curta-metragem do livro, a qual poderá ser sentida “com brusquidão” por parte de alguns: intitulada “A estrada do fim”, representa na verdade, o “onde é que eu estou”.

Pinto Leite explica que a ideia nada tem de depressiva e escreve que “antes, cada dia que passava era um dia a mais; hoje, cada dia que passa é um dia a menos”. E é exactamente por isto que “se torna mais urgente a paixão de viver”, e é por isso que a “estrada do fim não dá vontade de chorar, mas sim de fazer e de ser feliz”. Citando a frase de um livro sobre o que significa envelhecer gradualmente – “Que coisa estranha para acontecer a um rapazinho” – sublinha novamente que “sou um homem feliz na estrada do fim”.

António Pinto Leite diz também que nesta fase da vida [tem 69 anos] colocam-se duas questões às quais não é possível escapar, porque remetem para uma confrontação interior: uma, a mais profunda, é perguntarmo-nos “fui quem sou?”; a outra, é a que nos fazem e fazemos a nós próprios: “qual é o teu plano para a reforma?”. O autor explica que a sua resposta não é dada a partir de um raciocínio ou de leituras, mas “a partir da minha liberdade interior, que é explosiva: o meu plano é amar, matar saudades, amar perdidamente a minha querida mulher, os meus filhos, os meus netos, os meus grandes amigos, amar Deus e os que precisarem de mim”. Assim, o seu plano de reforma, “e se alguém perguntar, é amar”.

O passeio no tempo

Ao longo da escrita do livro, o autor recorda igualmente uma das características que o define e que não é, em princípio, muito visível para quem o conhece. Diz-se um homem tímido. Outro ponto onde se detém é no seu espírito libertário. “Vivi intensamente quando era novo essa ideia, porque é a minha natureza. Vivi equívocos, desperdicei tempo, gozei, animei-me com a vertigem e também lidei com o vazio. A verdade é que cinquenta anos depois, constato que é o meu espírito libertário que me faz publicar este livro”. Porque, na verdade, “é o que eu sou”.

Uma outra confrontação é a de que “sou uma artista sem talento”, consciência que ganhou pelos 17 anos: “Deus deu-me todas as características típicas dos artistas, a começar pela sensibilidade ou a busca da obra-prima. E depois distraiu-se e esqueceu-se de juntar um talento”. Mas “fui compreendendo que Deus me deu um talento, a vida. A vida é o talento que Deus me deu”. Com a vida como talento, “temos todos a possibilidade de fazer obras-primas, seja nas nossas relações humanas, seja nos empreendimentos em que nos envolvemos”.

De limitações e arrependimentos não se escusou igualmente de escrever. Assim, e como afirma, “o instrumento mais forte que uso perante as minhas limitações é o sentido de humor”. E, a propósito, cita Winston Churchill quando este diz que “A imaginação consola os homens do que não podem ser; o sentido de humor consola-os do que são”.

Ao virar mais páginas da sua obra, Pinto Leite fala do seu “epicentro”, a família. E menciona que a sua “começou” no Bairro Alto onde, e num dos empregos que teve quando o dinheiro era curto, “fardado de criado sirvo uma morena bonita”, sem que esta lhe prestasse atenção, confessa. Mas foi com essa morena bonita que haveria de casar, “passando de empregado de mesa a marido da cliente”, afirmando também que o elevador social funcionou”, diz entre sorrisos.

E salta para outra das viagens importantes que retrata nas páginas da sua obra: o seu caminho de fé, a perda desta no início da idade adulta que o levou a atravessar um “deserto agnóstico” ao longo de mais de 20 anos e finalmente a sua reconversão, depois de mantida “uma luta entre o amor, a morte e a fé”, na altura em que Guida é diagnosticada com um cancro.

A este propósito, são várias as “curtas-metragens” que escolhe incluir no seu livro. Assumindo-se como um “cristão não-linear que se afastou de Deus na juventude”, são alguns os episódios que o acompanham nesse período ainda de agnosticismo, mas nos quais foi sentindo a necessidade de reencontrar a fé. Desde a “inquirição de S. João”, a um artigo que se viu impelido a escrever para o Expresso, que deveria ser sobre Mário Soares e Cavaco Silva, e que acabou por se intitular “Vou a Fátima”, a par de uma carta do Bispo de Coimbra (em resposta a esse mesmo artigo) que lhe mudaria a vida alguns anos depois.

“É impressionante a companhia e a interferência de Deus na nossa vida”, algo que se manifestou também quando era presidente da ACEGE, em particular no congresso de 2012, onde o tema “O Amor como critério de Gestão” foi, com surpresa para muitos, apresentado e que tem guiado a Associação Cristã de Empresários e Gestores até aos dias que correm. “Quando falei aos empresários no congresso de 2012 sobre amor e gestão estava tão perplexo como eles, mas senti que Deus não me dava outra opção. Essa minha perplexidade é uma das curtas-metragens”.

O self-made man, a bifurcação do destino e porque as facturas da vida acabam sempre por chegar

A acumulação e sobreposição de “funções” fazem também parte da sua história de vida: vende enciclopédias enquanto dá início ao seu curso de Direito na Clássica; alista-se no PPD, fundado por Sá Carneiro, onde começa pela reprografia e passa a segurança na sede nacional do partido em 1975; é convidado para dar aulas na Faculdade de Direito; envereda pela política onde esteve “perto de ser importante”, mas preterindo-a porque, com a sua personalidade, “teria de me despedir da minha família sem que ela se despedisse de mim e sem que  se apercebesse que me despedia dela”. Acabaria por escolher a advocacia [é sócio fundador da sociedade de advogados Morais Leitão], mas pelo meio foi ainda jornalista no Semanário,  aceita o convite para Presidente da Comissão Instaladora da Escola Superior de Comunicação Social e junta ainda uma coluna semanal no jornal Expresso.

Assumindo-se, sem surpresa, como um workaholic, recorda uma frase que ouviu de uma psicóloga, a qual considera inspirada: “a depressão é excesso de passado – que não tenho -, o stress é excesso de presente e a ansiedade é excesso de futuro – que considero ser o que tenho mais”, dizendo, em qualquer caso, que “nesta idade é bom ter uma ânsia que fervilha”.

Como escreve no livro, “a questão central de uma vida de pai workaholic é saber qual o preço que a sua vida teve em cada filho”. E é por isso que dedica também um conjunto de páginas à “aflição de um pai ausente”, sendo estas muito especiais porque “trato cada um dos meus filhos em concreto”, apresentando-os, um por um, aos leitores. “Sei que os textos deles sobre o pai não são avaliações, são declarações de amor que tudo perdoam. Mas fazem-me crer que mais importante do que estar com os filhos é estar nos filhos, mesmo nos momentos de silêncios estafados ou depressivos”.

Regressando aos primeiros minutos da sua apresentação, António Pinto Leite refere ainda um outro episódio narrado a propósito do peso excessivo que o trabalho pode ter “mesmo num grande amor”. Refere “as cartas tristes que a minha querida mulher, a Guida, me deixou na caixa postal do amor que é debaixo da almofada, a pedir-me que a amasse melhor”. Publica as cartas “para alertar os mais novos”.

A última curta-metragem escrita e que retorna à primeira, chama-se “Uma estratégia para a eternidade”, porque é essencial ter “um diálogo de amor com a morte, de amor porque é o amor que Deus me deu para O ver na morte”.

E é com esse diálogo honesto composto por várias perguntas entre ambos os “interlocutores” que António Pinto Leite termina a sua obra, reiterando que “não há vidas grátis “porque as “facturas da vida chegam sempre”, sendo que o exercício deste livro faz compreender “quais as que paguei, quais as que ainda não estão pagas e deverei pagar e as que apenas pagarei na eternidade”.

E é com uma frase roubada à sua Guida que termina também a apresentação de um homem feliz na estrada do fim: “Obrigado pelo que sinto”.

Agora é altura de ler o livro.

Editora Executiva