O desejo inerente de questionar o nosso mundo e de conferir um sentido para a nossa existência é tarefa milenar. E, apesar das inúmeras tentativas para se encontrar uma resposta a esta velha interrogação, a verdade é que não há nenhuma definição que seja universalmente aceite e provavelmente nunca haverá. Mas e num período em que o fenómeno da pandemia nos obrigou a estar mais próximos de nós próprios e, consequentemente, a descobrir que muito do que nos foi “roubado” é exactamente o que mais valorizamos na vida, a reflexão sobre este enigma ganha uma nova actualidade. Assim, e aliada a esta reflexão proposta pelo VER, juntámos igualmente os principais resultados de um estudo realizado em 17 economias desenvolvidas, publicado há poucos dias e que inquiriu 19 mil pessoas sobre o que confere sentido às suas vidas. No topo das respostas está a família, mas a heterogeneidade reina entre as sociedades auscultadas
POR HELENA OLIVEIRA
“O segredo de uma existência com sentido é termos algumas pessoas boas na nossa vida, nas quais possamos verdadeiramente confiar, cuidar e amar. Quer estejamos juntos num veleiro exíguo durante muitos meses, quer estejamos numa ilha remota ou simplesmente a aguentar o ‘lufa-lufa’ diário do que significa ser humano, estas são as pessoas que desejamos ter no nosso canto, independentemente de tudo o resto. São essas pessoas que tornam a nossa vida melhor e que sabem, tal como nós sabemos também, que fazemos tudo por elas. E, se tivermos sorte, o nosso nome estará escrito num envelope que pertence a alguém que nos ama “.
[excerto do novo livro A Wonderful Life: Insights on Finding a Meaningful Existence do filósofo e psicólogo Frank Martela]
Desde a Antiguidade que a procura do sentido da vida gerou muita especulação filosófica, científica, teológica e metafísica, assumindo igualmente um papel principal na literatura e nas artes. E foram e continuam a ser também muitas as respostas distintas a esta pergunta, provenientes de uma panóplia de contextos culturais e ideológicos distintos, sem esquecer igualmente a busca individual que cada um de nós vai realizando para ver respondida esta interrogação à medida que vamos trilhando os vários caminhos da nossa própria existência. Todavia, não existe uma definição universal sobre o que realmente dá sentido à vida e muito provavelmente nunca haverá.
Platão definia o “Homem” como “um ser em busca de significado” e, na religião, tradicionalmente uma forte indagadora da procura deste sentido por parte da humanidade, a crença de que existe vida para além da morte assumiu-se como uma resposta reconfortante para aliviar o peso do indivíduo na definição da sua existência.
No geral, a procura deste sentido da vida integra a necessidade de uma forte motivação humana para compreender a essência da sua existência pessoal, aliada a uma resposta satisfatória às grandes questões que, há milénios, preenchem as mentes de inúmeros pensadores. Quem sou eu, qual o meu propósito, o que é verdadeiramente importante para mim ou, simplesmente, o que devo fazer com a minha vida, fazem igualmente parte deste “mistério”que há muito tenta ser solucionado e que poderia ser muito útil para um funcionamento psicológico humano mais saudável.
Na actualidade e apenas a título de exemplo, o filósofo e psicólogo Frank Martela, autor do livro A Wonderful Life: Insights on Finding a Meaningful Existence insiste que a resposta a tão complexa pergunta é bastante simples: para compreendermos o sentido da vida, basta sabermos quem escolheríamos levar para uma ilha deserta. Ou seja, este ainda jovem filósofo que tem reunido muitos seguidores em torno das suas Ted Talks, defende que o principal sentido da nossa existência reside no significado que temos na vida das pessoas que amamos e que são realmente importantes para nós e que a partir do momento em que sentimos que ocupamos um lugar especial na vida dos outros, somos capazes de apreciar o valor da nossa própria vida.
Ou, em suma, este investigador que tem dedicado a sua carreira em busca da resposta ao sentido da (e na) vida – ou ao que dá sentido à vida – tem como base o princípio universalmente aceite de que somos animais sociais e que a necessidade de pertença é uma motivação fundamentalmente humana e imprescindível para conferir significado à nossa existência. Como afirma também, evoluímos para viver em comunidades e cuidarmos uns dos outros, sendo que o instinto para construirmos relacionamentos sociais fortes está fortemente “embutido” na nossa própria humanidade.
Como afirmava também e com beleza o filósofo francês Maurice Merleau-Ponty “somos colaboradores uns dos outros numa reciprocidade consumada, as nossas perspectivas fundem-se umas nas outras e coexistimos através de um mundo que nos é comum”. Merleau-Ponty (que morreu em 1961) acrescentava ainda que “embora a nossa cultura individualista ocidental nos tenha habituado a esculpir fronteiras particularmente claras entre o eu e o outro, viver “isolado” ou apenas para si próprio é uma conquista cultural e não a nossa forma típica de ser.
Reiterando o pensamento do filósofo francês, Frank Martela assegura ainda que são inúmeros os estudos que demonstram que as relações constituem a chave certa para abrir a porta ao sentido que damos à vida. E, regra geral, quando aos inquiridos nesses mesmos estudos lhes é pedido que refiram o que lhes confere maior significado à sua existência, a família surge em primeiro lugar seguida pela categoria “amigos”.
Estes resultados estão em linha com o mais recente inquérito realizado pelo Pew Research Center que, ao longo da Primavera de 2021 – e quando a COVID-19 passou a dominar quase todos os cantos do mundo – entrevistou cerca de 19 mil adultos, em 17 economias avançadas, questionando-os sobre o que lhes conferia sentido à vida e o que os fazia continuar a “andar para a frente”. E tornou-se claro que a principal fonte de sentido é, realmente, a família. Em 14 dos 17 países inquiridos, o factor “família” foi o mais citado entre todos os demais analisados. Todavia, existem também várias diferenças a assinalar nas demais respostas, as quais sublinham a singularidade de cada um dos públicos auscultados. Se a família se assume como proeminente, o trabalho, o bem-estar material e a saúde fazem igualmente parte, e como seria de esperar, dos elementos que dão sentido à vida. E são esses resultados distintos que propomos divulgar seguidamente.
Família no topo, com carreira e bem-estar material a seguirem-na de perto
O que é que as pessoas mais valorizam na vida? Quanto do que confere satisfação às suas vidas é fundamental e partilhado entre culturas e que factores são exclusivos a uma determinada sociedade? Foi para tentar compreender estas e outras questões que o Pew Research Center realizou um inquérito de “resposta aberta” sobre o sentido da vida a quase 19.000 adultos em 17 economias avançadas.
Ao analisar as respostas de todos os inquiridos, e como já anteriormente mencionado, torna-se evidente que a fonte de significado predominante é a família. Os respondentes destacam as suas relações com os pais, irmãos, filhos e netos, mencionam frequentemente o tempo de qualidade passado com os seus familiares, o orgulho que sentem relativamente a realizações alcançadas pelos mesmos e até o desejo de viver uma vida que possa contribuir para deixar aos seus descendentes um mundo melhor. Na Austrália, Nova Zelândia, Grécia e Estados Unidos, mais de metade dos respondentes afirmam que é a família que torna a sua vida plena de significado, entre os 17 tópicos que faziam parte do inquérito do Pew.
Os respondentes estão igual e amplamente unidos na ênfase colocada nas suas carreiras e profissões. Os “empregos” constituem uma das três principais fontes de significado eleitas na maioria dos locais inquiridos. Ainda assim, a importância colocada nos mesmos apresenta grandes variações, desde um máximo de 43% em Itália até um mínimo de 6% na Coreia do Sul. Por exemplo e na Itália, se a família e a carreira são citadas em conjunto como os factores com maior importância na sua existência, nos EUA apenas cerca de um terço dos inquiridos consideram as suas carreiras como o elemento predominante de valor nas suas vidas. Por outro lado, e enquanto alguns descrevem especificamente as suas carreiras e o significado que as mesmas lhes dão – por exemplo, um trabalhador da área da cibersegurança que afirma dar-lhe muito prazer ver na prática o valor dos seus contributos ou um professor que adora ensinar e envolver as suas crianças na disciplina de História, outros aludem genericamente ao apreciar o seu trabalho ou os seus colegas ou ainda o facto de se sentirem intelectualmente desafiados.
Como seria também expectável, são muitos os inquiridos que sublinham a importância de ter as suas necessidades financeiras básicas satisfeitas – ou mesmo gozar de algum nível de luxo – como forma de dar sentido às suas vidas. Em nove dos 17 públicos inquiridos, o bem-estar material apresenta-se no top 3 dos principais factores eleitos e, na maioria dos locais, cerca de uma em cada cinco ou mais pessoas mencionam-no também. A Coreia do Sul é o único território que cita o bem-estar financeiro como a sua principal fonte de significado. Ainda assim, os exemplos que os inquiridos consideram como “necessidades financeiras básicas” tanto incluem ter “comida na mesa” e “um tecto sobre a minha cabeça”, ou “um rendimento decente para sustentar a minha família”, como não ter “nenhuma dívida” ou “dinheiro suficiente” para desfrutar de actividades como viagens ou outras actividades de lazer.
Saúde, fé, religião e espiritualidade
A saúde posiciona-se igualmente, embora de forma relativa, no topo dos requisitos, surgindo como um dos três principais elementos basilares para a vida das pessoas, mas apenas em cerca de um terço dos locais inquiridos. E, adicionalmente, esta ênfase relativa na saúde é bastante variável, com 48% que a mencionam em Espanha – tornando-se prioritária para os espanhóis – até apenas 6% que declaram o mesmo em Taiwan. Para alguns, problemas de saúde específicos levam-nos a valorizar a sua vida – tal como uma mulher americana que observou: “Deus deu-me vida, Ele puxou-me através do cancro”. A vida é preciosa e só temos uma hipótese”, ao passo que outros, de uma forma mais geral, consideram-na como um pré-requisito para outras fontes de significado, nomeadamente os amantes do exercício físico e dos estilos de vida considerados como saudáveis.
De uma forma um pouco surpreendente, para a maioria dos inquiridos, o valor da saúde na actualidade não está directamente ligado à pandemia da COVID-19. Embora exista um sentimento generalizado na maioria dos públicos inquiridos de que a pandemia global mudou a vida das pessoas mas, e na maioria dos locais, aqueles que mencionam a saúde como algo que faz parte do sentido que dão à vida não são mais propensas a mencionar a COVID-19 do que os que não a consideram prioritária. Algumas pessoas que mencionam ambas fazem-no porque têm problemas de saúde que foram agravados pela doença, causando dificuldades adicionais. A título de exemplo, uma mulher dos Estados Unidos descreveu a sua situação da seguinte forma: “Actualmente, estando confinada devido a problemas de saúde e para me manter afastada da COVID, Deus é o que me mantém”, enquanto outro respondente descreveu a sua situação como “anos de trabalho pessoal para superar a ansiedade e a depressão que se esfumaram por causa do distanciamento social”. Por outro lado, “ganhar a luta contra a COVID” também acabou, em vários casos, por transformar a vida das pessoas para melhor, na medida em que as obrigou a olhar para dentro de si mesmas e a descobrirem o tal “sentido” que estava adormecido.
A fé, a religião e a espiritualidade são igualmente temas que diferem significativamente nas várias sociedades auscultadas. Com excepção para os Estados Unidos, a religião nunca é mencionada no top 10 das principais fontes de significado citadas e apenas 5% dos inquiridos nas demais 16 regiões analisados a consideram importante para conferir sentido à sua existência. Nos EUA, no entanto, 15% dos respondentes mencionam a religião ou Deus como uma importante fonte de significado, o que faz dela o quinto tópico mais referido. Para alguns, a ênfase na religião assenta sobretudo na relação pessoal com Jesus: “Eu sigo Jesus, por isso a minha fé e esperança baseiam-se na forma como ele desempenha um papel na minha vida. Não confio em nenhum humano para beneficiar a minha vida”.
Outros sublinham os benefícios que advêm de fazerem parte de uma religião organizada: “O meu marido acabou de morrer, pelo que a vida não é muito gratificante neste momento. Mas o apoio da família e dos amigos, bem como o da Igreja ajudou-me a encontrar um sentido, assim como a recordar as coisas boas que partilhámos”. Adicionalmente e ainda nos Estados Unidos, os protestantes evangélicos são muito mais propensos do que os demais protestantes a mencionar a fé como a principal forma de dar sentido às suas vidas – 34% vs. 13%, respectivamente. E, em todos os grupos religiosos dos EUA, aqueles que frequentam com maior assiduidade os cultos religiosos são muito mais propensos a citar a sua religião na sua resposta comparativamente aos que não o fazem frequentemente.
No que respeita à natureza enquanto caminho para o sentido da vida, o Reino Unido, a Austrália, a França, a Nova Zelândia e a Suécia são os países que mais se distinguem pelo valor que lhe atribuem. Em cada um destes países, a natureza é considerada como um dos oito factores prioritários para uma vida com sentido. Também no Reino Unido, os hobbies e as actividades “extra” são reverenciados por muitos: cerca de um em cada cinco inquiridos menciona os seus hobbies como algo que lhes dá satisfação na vida, classificando-os apenas atrás da família e dos amigos.
Na análise do sentido da vida e da auto-realização, cerca de 10% nos 17 públicos inquiridos mencionam também os desafios ou dificuldades que têm interferido com a sua “busca pela felicidade”. Mais uma vez, este factor varia substancialmente entre os públicos inquiridos, com cerca de um em cada cinco respondentes a mencionar estas dificuldades em Itália, mas apenas 5% ou menos a referir o mesmo na Nova Zelândia e no Reino Unido. Em alguns lugares inquiridos – incluindo Itália, EUA e Espanha – aqueles que mencionam a sociedade e as instituições como importantes para o significado das suas vidas são mais propensos a mencionar estes mesmos desafios ou dificuldades. Adicionalmente, as pessoas que elegem a sua família ou os seus amigos como imprescindíveis no sentido que dão às suas vidas tendem também a ser menos atreitas a mencioná-los e o mesmo acontece com aqueles que conferem maior valor à educação e a aprendizagem ou aos seus hobbies.
Dada a sua subjectividade, há quem também defenda que o sentido da vida é um segredo bem guardado num frasco de vidro. Devolve-nos o olhar quando estamos em frente ao espelho. Acompanha-nos no nosso caminho para o trabalho. Senta-se calmamente na palma da nossa mão. Envolve-nos num forte abraço quando estamos com aqueles que amamos. Tocamo-la, sentimo-la, cheiramo-la e sentimo-la todos os dias, mas não nos apercebemos do que ela é. Falamos da vida, e meditamos sobre o seu significado. Lemos livros para encontrar a resposta. Perguntamos aos sábios “qual é o significado da vida? E, muito possivelmente, o segredo é que não há segredo.
Editora Executiva