A voz doce despedia-se de mais um amigo efémero. Entram na vida dele, que os recebe e acarinha, e depois tudo prossegue. Creio que entende que tudo é realmente transitório. Entretanto eu olhava para o Tejo e pensava que seria capaz de o beber todo a jusante e a montante até aos altos do maciço central ibérico se disso dependesse a vida do Raúl.
POR PEDRO COTRIM

A maior montanha do mundo tem um metro de altura. Está ali ao fundo a olhar atentamente para uma árvore: «Olha, pai, esta árvore tem folhas diferentes!», na pronúncia maravilhosa das crianças. Fui ver e pareceu-me exemplar único ali perto. Como habitualmente, tinha razão. Aos quatro anos sabe-se tudo.

Raúl. 4 letras para 4 anos. Dispostas ao contrário fazem o luar mais solar e mais estelar que pode haver. Feito nas fornalhas nucleares, como todos nós, espera-o um mundo que nos maravilha e assusta de um modo um pouco contraditório. Eu tudo faço para que o segundo verbo o atinja menos vezes que o primeiro.

É filho de pais separados e viverá sempre com isso. Nunca conheceu outro mundo e não o estranha. Talvez os ambientes diferentes lhe dêem lentes mágicas para olhar para as coisas, mas não passa de uma suposição.

Tem olhos mais azuis que os ovos dos robin que tudo absorvem e lhe levam as ideias ao corpo pequenino. Sempre muito atento e observador, parece em equilíbrio com todo o resto de poeira estelar que não faz parte de si.

No outro dia atravessávamos a 25 de Abril. Uma gaivota engraçou com o nosso carrito e fez uma grande parte do percurso ao nosso lado. Encantados, pai e petiz. «Já viste que bate pouco as asas, pai?» Com efeito, planava, sobretudo (nada sei de gaivotas). Foi nossa companheira durante um quilómetro, mais coisa menos coisa. «Adeus gaivota!», ouviu-se quando o bicho decidiu afastar-se do ferro. A voz doce despedia-se de mais um amigo efémero. Entram na vida dele, que os recebe e acarinha, e depois tudo prossegue. Creio que entende que tudo é realmente transitório. Entretanto eu olhava para o Tejo e pensava que seria capaz de o beber todo a jusante e a montante até aos altos do maciço central ibérico se disso dependesse a vida do Raúl.

É deste modo curioso que faz o seu caminho. Sabe que em casa do pai não há televisão (pifou mesmo de vez, apesar de ter funcionado, de forma útil, apenas uns dois ou três meses em quinze anos), não há jogos de computador nem tablets. Há brinquedos, livros e muita vontade de falar com o outro.

Conversamos e passeamos muito. Vamos ver bichos (o que é uma quinta «pagógica» para ele!), vamos a museus, a parques e a muitos sítios que o deixam fascinado. Aparecem extraordinários porquês que me fazem puxar pelas meninges e pelas páginas que leio. Habituou-se a ver-me procurar nos calhamaços as respostas ao que pergunta e não diz que estão todas no computador.

Com o que vê e pergunta, vai aprendendo. Fui recentemente à Polónia e à Grécia e disse-lhe que ia viajar. «Onde é, pai?» Lá lhas indico, desta vez na rosa-dos-ventos do Padrão dos Descobrimentos. Há uns dias a educadora do menino disse-me espantada que o Raúl indicara os dois países num globo geográfico sem linhas de fronteira.

Vou continuar a gabá-lo. Há coisa de uma semana alguém lhe deu um recado com uma formulação do género «diz a ela», respondendo o Raúl de imediato «isso não se diz, diz-se diz-lhe!», com a indignação espantosa da infância. Se fala de um bicho que esteja sozinho pergunta onde está «a sua família», não procura pela «família dele», sempre nesta vozita de país das maravilhas. Eu não o massacro com correcções nem o persigo com informações. Tento apenas que ele seja atento, que perceba que o mundo está aqui ao lado e que quanto menos olhar para o ecrã que está aqui à frente mais hipóteses terá de crescer saudavelmente neste corrupio de desinformação inquieta. Afinal as perguntas acertadas sempre nos resolveram as questões e o mal de muitos foi não as saberem colocar. Os resultados estão à vista.

Não quero que o Raúl seja um sobredotado nem um super-herói, mas faço tudo para que se saiba defender. E acredito que vou conseguindo, apesar de não estar muito com ele por via da contingência familiar.

Estes intervalos de dias ou de uma semana sem o ver têm o seu reverso. Quando o vou buscar dá-me um abraço muito apertadinho e diz baixinho «tinha saudades tuas, pai.» O que sinto nessa altura não cabe nas letras de nenhum alfabeto. E é aí que percebo, ainda mais, o quão preciosa é esta tangente de nada que fazemos ao mundo. Que façamos sempre o melhor dela, senão a esfera que toca nem vale a pena.

Lisboa, Março de 2019

***

Vida de pai separado. Arrumo a casa depois de te levar à tua mãe e encontro um carrito muito encostado a um canto. Está mais bem estacionado que aquele onde acabei de te levar. Encontro outros nos bolsos das calças que vão lá parar quando me pedes, nos nossos passeios, para os guardar por já não teres mãos para os segurar (quem é que consegue fazer uma corrida na areia com dois ou três carrinhos em cada mão?). Um bonequinho que ganhámos quando acertei com uma bola numas latas também está num bolso.

Continuo a arrumar a casa agora vazia de ti por uns dias e pego no boneco de olhos muito abertos a que te agarras quando dormes. Pego também no cãozito de peluche que me dás para eu não dormir sozinho e que me entregas com corações nos olhos. Tu tens corações nos olhos e estão sempre à vista quando estou contigo. Abraço os bonecos como se te estivesse a abraçar e penso que aquele a que te agarras faria a felicidade de mil Gepetos.

Acho que já sei os nomes destes aviões e também acho que já que sei responder à pergunta «pai, gostas mais do Gumble ou do Jet?» Posso responder num dia que gosto mais de um e noutro que gosto mais do outro. Por gostares tanto destes bonecos eu também gosto e por isso também tenho os meus humores em relação a eles.

Eu costumava achar que o maior feito da humanidade tinha sido a Lua, mas afinal não é nada disso, a Lua é apenas um calhau que te fascina. E olha, diz-me lá, o que é um programa Apollo ao pé de um programa contigo?

És luz da luz e se olhas para um sítio ele torna-se soalheiro, diz o teu pai que não crê em Bíblias. Tens em ti todos os sóis do mundo e à parte disso tudo é maravilhoso. Por ti vale a pena ter existido. Morresse eu amanhã e já estaria de coração cheio. Esta coisa toda que se vai desenrolando à nossa volta passou a fazer o seu sentido porque tu me mostraste a vida, o amor sem reservas, o amor que não põe condições e que nada pede em troca. Ainda bem que não pede, porque o que te dou, ao pé do que me dás, é apenas o amor de alguém que ainda belisca a sua pele arrepiada por haver um menino que o trata por pai.

Lisboa, Setembro de 2019