Conforme refere a constituição pastoral Gaudium et spes “a paz não é a mera ausência de guerra, nem se reduz ao simples equilíbrio de forças entre os adversários”. Uma vez que a guerra é a concretização do ódio em acto, a paz não pode ser outra coisa que a concretização do amor em acto
POR FRANCISCO PIEDADE VAZ
Segundo Andrea Riccardi, foram dois os objetivos centrais que permearam a actuação tanto política como espiritual de João Paulo II durante o seu pontificado: a extinção dos regimes comunistas no Leste europeu, sem descurar as críticas ao capitalismo, principalmente em função do tratamento reservado aos mais desfavorecidos, e a preparação da Igreja Católica para o século XXI. Na verdade, “O longo pontificado João Paulo II atravessa diferentes cenários históricos: a Guerra Fria, a globalização e o tempo do único império americano, com a dissolução da União Soviética, o outro polo da Guerra Fria.”
Nos seus discursos, João Paulo II não deixa cair no esquecimento os diversos conflitos em curso e insiste no diálogo como a “procura daquilo que é verdadeiro, bom e justo para todos os homens.” E acrescenta, “o diálogo é ao mesmo tempo a busca daquilo que é e permanece comum aos homens, mesmo nas tensões, nas oposições e nos conflitos. Neste sentido, o diálogo é fazer de outrem um próximo; é aceitar a sua contribuição; é partilhar”.
O tema do diálogo é um tema querido não só a João Paulo II, mas também a todos os papas do século XX, que privilegiam as conversações e as mediações para a resolução dos conflitos. João Paulo II enquadra as relações internacionais numa “teologia das nações” segundo a qual os povos não são plenamente representados pelos Estados, constituindo-se numa família humana cujo bem comum deve ser o único farol da liderança política. Para o Papa, a ONU é uma organização fundamental para a afirmação de uma estratégia em que o diálogo e o direito são a pedra angular na edificação e na manutenção da paz entre os povos.
Recordemos as crises da guerra do Golfo e da guerra do Iraque em que o Papa propõe uma diplomacia multipolar baseada no diálogo e no direito. É aliás esta visão que expressa em 1986 quando fala em Assis aos líderes religiosos, reunidos para orar pela paz: “A paz é um estaleiro aberto a todos e não somente aos especialistas, aos sábios e aos estrategos. A paz é uma responsabilidade universal.” O evento de Assis está em consonância com a insistência de João Paulo II na paz como dom de Deus, sublinhando que a oração é uma arma de paz para todos os crentes e não só para os cristãos.”
Ao reconhecer a dignidade e a inviolabilidade da vida humana, criada à imagem e semelhança de Deus, João Paulo II é a favor de acções persuasivas de preferência sem o uso da força para resolver conflitos. No entanto, afirma que por vezes é necessário defender o agredido. É o caso, por exemplo, da legítima defesa, onde o direito de proteger a própria vida e o dever de não prejudicar a vida de outra pessoa são de difícil conciliação prática. Por isso, diz que “há um sentido da realidade, ao serviço da preocupação fundamental pela justiça, que impõe a manutenção do princípio de legítima defesa na mesma história humana”.
Em 1989, ao encontrar-se com militares italianos, o Papa interroga-se: “poderá ser-se cristão e militar?” Esta pergunta encontra resposta na constituição pastoral Gaudium et spes que, no seu número 79, esclarece que os militares são “servidores da segurança e da liberdade dos povos”, na medida em que “contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da Paz.” Por outras palavras, usar a força para impedir que alguém atente contra a vida de outrem é, mais do que um acto legítimo, um dever de qualquer ser humano.
Por outro lado, na Sollicitudo rei socialis o Papa diz que “cada um de nós é chamado a ocupar o próprio lugar nesta campanha pacífica, que há-de ser conduzida com meios pacíficos, para alcançar o desenvolvimento na paz”. Esta visão não é mais do que o desenvolvimento da intuição de João XXIII expresso na encíclica Pacem in terris, que já pensava uma Igreja que podia e devia animar cristãmente o empenhamento pela paz.
Conforme refere a constituição pastoral Gaudium et spes “a paz não é a mera ausência de guerra, nem se reduz ao simples equilíbrio de forças entre os adversários”. Uma vez que a guerra é a concretização do ódio em acto, a paz não pode ser outra coisa que a concretização do amor em acto. A ponte lógica entre a paz e o amor é a justiça e é nessa linha que João Paulo II refere na mensagem do Dia Mundial da Paz de 1984 que os três imperativos de uma sociedade para alcançar a paz são “a instauração da justiça, a promoção do bem comum e a participação de todos.”
Desta maneira, João Paulo II põe em evidência a questão nuclear da paz, ou seja, o reconhecimento dos direitos humanos. Assim, remete em primeiro lugar para a ideia de pessoa e em seguida para a ideia de lei. É a partir desta perspectiva que o Papa vê a guerra como o levar ao extremo da injustiça, por considerar que na base dessa mesma injustiça está o desconhecimento do próprio homem, e, por consequência, dos seus direitos.
Por outro lado, em 1987, num momento em que se contabilizavam mais de 44 conflitos em todo o globo, o Papa publica a encíclica Solicitudo rei socialis, para comemorar o vigésimo aniversário da Populorum progressio de Paulo VI, cujo tema principal é a solidariedade. Uma das particularidades desta encíclica reside no facto de não sucumbir ao simplismo de considerar essas múltiplas guerras apenas como disputas raciais ou geoestratégicas, mas concluir, após uma análise aprofundada, que a verdadeira raiz das guerras é o ódio ao semelhante, pelo simples facto de não ser igual a nós.
Para concluir diria que, no pensamento de João Paulo II, promover a paz, é, acima de tudo, cultivar e promover o bem comum, em particular nas suas vertentes culturais sociais e políticas. Com efeito, quando se cultiva o bem comum, cultiva-se a paz, pois o bem comum está intimamente ligado a todas as formas expressivas da convivência humana.
Francisco Piedade Vaz
Licenciado em Ciências Militares Navais pela Escola Naval e Mestre em Estudos da Religião, Área de Ética Teológica, pela Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa.