Apreciar a vida e o universo não tem preço. Ver realmente as maravilhas que temos ao redor e fazer parte delas é uma sensação inigualável, podendo ser experimentada em qualquer lugar. Efectivamente não trocaria este passeio a Cacilhas num cacilheiro por nenhum cruzeiro de luxo. E penso na quantidade de mães e mulheres, como eu, que gostariam de ter um dia assim, simples, calmo e belo
POR INÊS ANFILÓQUIO
O Tejo. Sempre que o vejo, a minha memória traz-me uma experiência que me ficou como uma página dourada numa época em que tive de reaprender o que era a arte de viver. A modéstia desta recordação poderá surpreender, mas sinto gigantismo na simplicidade e a sorte absoluta que temos no nosso quotidiano, que é por si só uma fortuna abençoada. Neste dia, fiz um passeio de barco a Cacilhas com uma querida amiga, que me mostrou, em cada passo, a sua forma de apreciar e de reparar nas pequenas coisas.
Apetecia-nos uma coisa diferente. Ambas lisboetas, uma nascida aqui e outra aqui criada, gostávamos do brilho e das luzes do Tejo. Estava um dia quente e sentimos saudades do sabor, das brasas e do cheiro das sardinhas assadas. Sugeriu-me a minha amiga que apanhássemos um cacilheiro e que tentássemos a sorte do outro lado do rio num restaurante à beira da água. Sorri e na minha cabeça regressei à infância, em que os meus pais me traziam, a mim e aos meus irmãos, à zona do Terreiro do Paço para brincarmos com os pombos e acenar aos barcos. Por vezes apanhávamos o cacilheiro e lá íamos numa grande aventura até ao outro lado do rio. Tudo era gigante nessa altura. Lembro-me de os marinheiros dos barcos acharem piada aos petizes e deixarem-nos ver o rio mais de perto! Que maravilha, tudo sempre tão belo!
Embarcamos e dou conta à minha amiga desta memória. Sorri e diz-me que os seus pais faziam o mesmo. Ficamos em silêncio a apreciar as ondas, o som e o cabeceio da embarcação, parecendo lembrar-nos que a vida e a natureza não se devem apressar. Os reflexos do sol nas ondas preenchem-nos a alma e chegamos à outra banda com a sensação de termos passado por uma sessão terapêutica. Estamos leves, sorridentes e atentas a algum marinheiro mais aprumado que nos possa dar a mão para desembarcarmos.
Cacilhas, depois da beleza do rio, não nos parece especialmente bonita, mas estamos dispostas a conhecê-la mais e mais. Passeamos junto aos cais e vemos os restaurantes antigos, onde se contam histórias dos tempos em que a pesca era a rainha dali. Vemos os letreiros antigos, os barcos e as redes abandonadas pelos embarcadouros e parecem-nos obras de arte congeladas no tempo, a céu aberto, com a perenidade que as intempéries permitem.
Damos meia-volta, pois sentimos a necessidade de alimento mais terreno e procuramos um sítio para almoçar. Subimos com a calma dos turistas uma rua pedonal e vemos diversos restaurantes a compor mesas e chapéus para a hora da refeição. Passamos por uma igrejinha muito bem cuidada e vamos sorrindo e olhando, espreitando as varandas e os detalhes da cidadezinha pitoresca.
Agradadas, notamos que o local tem sido renovado, mantendo uma compostura tradicional nas lojas novas de espírito alternativo que estão abertas e nas mãos dos espíritos jovens e artísticos que ali se instalaram. Descobrimos uma lojinha amorosa cujo nome não recordo, mas que teria alguma coisa a ver com joaninhas, pois a imagem de marca era o vermelho com as bolinhas pretas. Tinha peças muito mimosas de cerâmica portuguesa, recordações do nosso imaginário infantil e outras curiosidades tipicamente portuguesas. Damos uma volta de olhos e a minha amiga vê de soslaio uma tarte de amêndoa que lhe aguça o apetite.
Combinamos com a dona tornar à loja depois do almoço e pedimos-lhe conselho sobre o restaurante. Aceitamos a recomendação e vamos até lá, mas ainda reparo numa loja de roupa vintage. Deixamos a visita também para depois do almoço e regalamo-nos com as sardinhas grelhadas e a salada de tomate e alface. Perguntamo-nos se será impressão que a salada mista do restaurante tenha um sabor diferente da feita em casa. Será este o valor de não ter de a fazer? Lembro-me da frase italiana dolce far niente e parece fazer sentido. Comemos devagarinho as nossas sardinhas com sabor a saudade, a alegria e a festa.
Depois de almoço lá fomos aos pecados. A minha amiga à tarte, que apreciou numa esplanada enquanto trocava uns dedos de conversa com a dona do estabelecimento e pedindo-me desculpa por não me acompanhar à ‘minha’ loja, mas estava muito bem ao fresquinho.
Assim fiz e senti novamente o gosto que tenho em estar sozinha num sítio assim, onde posso ver sem pressa os tecidos e os feitios de outras épocas. Vi duas ou três peças que adorei e experimentei, mas optei por deixá-las na loja. Voltei para ao pé da minha amiga e contei-lhe o que vi, provando também a deliciosa tarte, realmente uma das melhores que já degustei.
A minha amiga admirou-se por eu não ter comprado a roupa e incentivou-me a fazê-lo, pois estavam a bom preço. Deixei-me de medo e manias e lá fui. Comprei dois vestidos longos que adoro até hoje e uns óculos espelhados vintage super-fashion. Saí com o sorriso de quem sai da Dior de Paris, com uma sensação de quem pode tudo, pois aquele dia tinha sido nosso, sem chatices, sem nada a atrapalhar o nosso prazer de viver com simplicidade e na companhia de uma verdadeira amiga que nos apoia, nos ouve, nos aprecia e aconselha e a quem tento retribuir a bondade.
Às vezes é tão fácil ser feliz! Temos apenas de aproveitar a oportunidade para apreciar as pequenas grandes riquezas do mundo, o que infelizmente nem sempre é possível com o stress do dia-a-dia, das tarefas infindáveis e contínuas que nos são impostas pela nossa azáfama.
Penso na quantidade de mães e mulheres, como eu, que gostariam de ter um dia assim, simples, calmo e belo, com as amigas para poderem carregar baterias. Fica aqui esta sugestão: é simples, prática e mesmo aqui ao pé. Como disse a minha amiga, parece um mini Algarve, daquelas ruas de Albufeira cheias de esplanadas com turistas.
Ao fim do dia, ao descer a rua, entrei ainda na pequena igreja e agradeci a bênção do dia e da companhia. Sai e lá viemos as duas, todas lampeiras, apanhar o barco com a luz do pôr-do-sol. Era um catamaran que parecia um iate! Oh, que espectáculo! Viemos para a parte de cima com os cabelos ao vento e óculos espelhados, ora nos olhos, ora no cabelo. Rimo-nos muito, rimo-nos de nós e de tudo, pois imaginávamo-nos em Ibiza num iate de luxo, mas acreditámos estar muito melhor ali. Ainda hoje, não trocaria esta experiência por nada!
Apreciar a vida e o universo não tem preço. Ver realmente as maravilhas que temos ao redor e fazer parte delas é uma sensação inigualável, podendo ser experimentada em qualquer lugar. Efectivamente não trocaria este passeio a Cacilhas num cacilheiro por nenhum cruzeiro de luxo, porque foi na altura certa e com a amiga certa, e será sempre uma memória minha muito acarinhada e pela qual me sinto muito grata.
Um beijinho, Helena. Tenho saudades tuas.
Inês Anfilóquio
35 anos + 5 , designer de interiores. Vive deslumbrada com o mundo e com a sua filha