Ao contemplar a cena do presépio, encontramos também um casal jovem, migrante, num país em pleno processo de mudança política, económica e social; uma família que, por um pico de procura, não consegue alojamento e ultrapassa a situação com a solidariedade dos vizinhos, ao tempo os pastores. E a história, a vida daquela criança vai em frente pela resiliência amorosa dos pais e a ajuda próxima e pronta dos pastores. Também nesta consideração se celebra a própria humanidade, agora na sua dimensão comunitária.
POR MARIA DE FÁTIMA CARIOCA

No mês de dezembro, a referência ao Natal é incontornável, mesmo tendo ocorrido o Campeonato do Mundo de Futebol no Qatar, os protestos na China, a continuação da guerra na Ucrânia e outros temas que mereceriam comentário e reflexão. Para os cristãos é, naturalmente, um evento maior por celebrar o nascimento do Menino Deus, personificando a relação de amor entre o divino e o humano. Mas para todos, o Natal não deixa de ser a celebração da vida a partir de um nascimento, com tudo o que cada criança que nasce traz de novo, de único, de incógnita, de esperança, de futuro. É a vida na sua essência, no que tem de mais frágil, mais vulnerável, mais genuíno, mais humano, mais belo. Neste sentido, o Natal é a celebração da própria humanidade. E também por isso o Natal nos encanta, aquece e nos enche de emoções positivas.

Ao contemplar a cena do presépio, encontramos também um casal jovem, migrante, num país em pleno processo de mudança política, económica e social; uma família que, por um pico de procura, não consegue alojamento e ultrapassa a situação com a solidariedade dos vizinhos, ao tempo os pastores. E a história, a vida daquela criança vai em frente pela resiliência amorosa dos pais e a ajuda próxima e pronta dos pastores. Também nesta consideração se celebra a própria humanidade, agora na sua dimensão comunitária.

Passados dois mil anos, não deixa de ser impressionante como a história se repete e como continuamos a encontrar inspiração numa cena, em si mesma, tão familiar! 

Este ano ao refletir sobre o Natal, veio-me à memória, por associação com a Sagrada Família no Presépio, outra Sagrada Família, a de Gaudí, em Barcelona e um conjunto de reflexões sobre liderança, com visão de longo prazo, sistematizadas pelos professores Alberto Ribera e Yih-teen Lee, do IESE Business School. Dada a complexidade e ambição da sua arquitetura e as dificuldades de financiamento, o processo de construção da basílica foi lento e difícil. Quase desde o início que Gaudí compreendeu que, provavelmente, não a veria terminada, contudo colocou os meios para transformar a sua visão, o seu sonho em realidade, mesmo que demorasse mais de um século. 

Seis lições que podemos aprender com Gaudí:

  • Ter (e comunicar) a paixão

Dizia Gaudí: “primeiro, o amor; segundo a técnica”. A paixão com que nos envolvemos em cada projeto, em cada iniciativa, na missão e na vida quotidiana da empresa, transmite-se à equipa e espoleta a colaboração quando é partilhada entre todos. A paixão dá uma visão diferente ao trabalho que se faz e é a base do próprio fazer.

  • Delegar

Rodear-se dos melhores, formá-los, assegurar-se que estão alinhados com a visão aonde se quer chegar, entender qual a sua melhor forma de trabalhar e deixá-los fazer obra. Só assim, mesmo sem Gaudí, nem planos nem maquetas já que tinham ardido durante a Guerra Civil Espanhola, foi possível continuar a construção. A realização pessoal passa sempre pelo âmbito da autonomia, pelo uso da liberdade, pela marca pessoal que se deixa e perdura seja na pedra, seja na vida das pessoas com que estamos. 

  • Ser e permanecer humilde

Reconhecer que o valor de cada um reside no seu talento e não na sua origem, idade ou qualquer outra condição, sem, no entanto, deixar de respeitar quem são, tal como são. Ao longo do tempo, é bom caminhar próximo dos que nos são próximos e imersos na realidade, mantendo-se aberto a aprender com tudo e com todos. 

  • Manter-se focado

Qualquer obra, a concretização de qualquer ideia, necessita de foco, o que significa dedicar-se, atribuir prioridades, fazer escolhas na agenda, não desperdiçar o tempo e concentrar-se.

  • Nunca deixar de arriscar e aprender

Experimentar novas ideias, novos feitos, novas formas de fazer, novos caminhos, aceitando deixar-se surpreender com tudo o que pode acontecer e que não se imaginou, não se planeou e não se equacionou. E quando tal acontecer, seja bom ou nem por isso, aceitá-lo sem deixar de aprender e seguir em frente.

  • Não esquecer o propósito

Ter sempre presente a finalidade última onde se quer chegar. Muitas vicissitudes podem acontecer pelo caminho e muitas alternativas podem parecer tentadoramente mais fáceis de percorrer, mas construir o que nos propusemos, o sentido e a consistência que colocamos no que realizamos no dia a dia dá uma dimensão superior, bela e gratificante, à obra feita.

Para além de todas estas reflexões, o que tem o edifício a ver com o Natal? Em primeiro lugar, a primeira fachada a ser construída e que serviu de matriz para as restantes foi precisamente a fachada da Natividade. Em segundo lugar porque têm muito em comum, já que ambos são fruto de uma resiliência amorosa. Depois, ainda, porque se construir uma catedral é uma obra grande e digna, liderar e desenvolver pessoas é uma missão ainda maior. O que fazemos, a obra que deixamos faz parte de nós, mas não nos determina como pessoas. Pelo contrário, a forma como a nossa vida toca a vida dos outros, isso sim, determina-nos como pessoas.

O presépio interpela-nos, a cada um e como sociedade: cada vida que nasce exige-nos uma visão, um sentido de missão de longo-prazo. Os princípios de liderança enunciados são bons conselhos nesse sentido, mas sobretudo vale a pena revisitar nesta quadra o nosso projeto pessoal, seja na família, seja no âmbito profissional ou cívico. Vale a pena entender se temos claro que catedral gostaríamos de construir e se a estamos efetivamente a construir ou se algo de mais ou diferente poderíamos fazer. E fazer este exercício com grandeza e espírito inovador! 

Um bom Natal!

Professora de Factor Humano na Organização e Dean da AESE Business School