É verdade! Claramente estamos a viver mais tempo. Nos últimos duzentos anos, década após década, a esperança de vida aumentou dois ou três anos. É como descobrir ao acordar, em cada dia, que nos foram doadas mais oito horas de vida, como diz Lynda Gratton, coautora do célebre livro “100 anos de vida”. Ou, dito de outro modo, imaginar que, em cada Natal, recebemos de presente mais 4 meses de vida. Que fazemos com eles? Esta antevisão de uma vida cada vez mais longa tanto tem de extraordinário e de estimulante como de preocupante ou, mesmo, assustador. Ver uma vida mais longa como uma dádiva ou uma maldição, depende em muito da perspetiva. Mas sobretudo tudo depende da forma como a decidimos sonhar e viver
POR MARIA DE FÁTIMA CARIOCA
A longevidade é uma revolução social, consequência do desenvolvimento económico, científico e tecnológico a par de estilos de vida mais saudáveis. Afetará tudo e todos. Desde logo porque, enquanto sociedade, é insustentável permanecermos num paradigma que compartimenta a vida em 3 grandes estados: educação, trabalho e reforma. A sociedade investe nas crianças e jovens enquanto são estudantes; ao chegarem à idade adulta espera que contribuam com o seu trabalho e respetivos impostos, para que, ao chegar o momento de se reformarem, a sociedade os possa apoiar até ao final da sua vida. Este modelo não é apenas insustentável economicamente como é também, muitas vezes, de uma enorme agressividade e indigno para com os mais idosos. Não é sem razão que muitos se sentem um fardo, inúteis e, até mesmo, descartáveis. Valham-nos “os avós”: os que continuam a ser úteis e sentirem-se estimados e queridos.
A boa notícia é que uma maior longevidade abre a possibilidade de que cada pessoa viva ao seu próprio ritmo, faça o seu próprio percurso vital, caminhando por algumas etapas de formação, outras de intenso trabalho profissional e outras simplesmente de pausa, voluntariado, de viagem ou outras experiências tão marcantes e transformadoras quanto as restantes fases. A forma como trabalhamos, quando e como adquirimos a nossa educação, com quem e quando decidimos passar a vida, com e quando temos filhos, como passamos os nossos tempos livres, tudo poderão ser escolhas muito mais pessoais e, potencialmente, mais gratificantes.
E que podemos fazer para receber e aproveitar esta dádiva que é a possibilidade de uma vida mais longa?
Ao vivermos mais tempo, em geral, teremos de trabalhar mais tempo para criar condições de sustentabilidade financeira, a longo-prazo.
Aparecerão novas profissões e serão necessárias novas competências, pelo que nos caberá adquirir novos conhecimentos, explorar novos horizontes e novas formas de pensar, desenvolver competências relevantes e diferenciadoras profissionalmente.
As transições entre fases da vida serão sempre momentos de maior complexidade e vulnerabilidade e, numa vida mais longa, é provável que se multipliquem e, nesse sentido, é crucial ganhar capacidade de adaptação, flexibilidade e serenidade na gestão destas situações.
Manter-se em boa forma física, psíquica, social e espiritual; equilibrar o trabalho com outros âmbitos da vida; desenvolver e preservar relações de amizade fortes e duradouras; encontrar em cada momento, em cada fase, um sentido para a vida, uma causa maior a que se dedicar, uma razão de ser mais além de si mesmo, serão componentes essenciais para apreciar cada dia de vida.
Pela multiplicidade de oportunidades que gera, uma vida mais longa significa também que as escolhas que se fazem e os compromissos que se assumem ao longo da vida sejam muito mais valiosos, exigindo prudência na decisão e audácia na execução.
A mesma dinâmica, mais fluida e personalizada, se poderá também aplicar às famílias. A formação deixa de ser um exclusivo dos filhos: pais e avós podem (e devem) escolher ir realizando um trajeto de formação ao longo da vida. Também as pausas deixam de ser um exclusivo dos avós: os netos ou filhos podem decidir fazer uma pausa para reorientar a sua trajetória profissional, para viajar e conhecer outras culturas, para acompanhar o desenvolvimento da família, para realizar algum projeto comunitário ou, simplesmente, para desfrutar de tempo e viver experiências com que sonham. E, finalmente, o trabalho profissional deixa de ser um exclusivo dos pais e mães: se já não existem trabalhos para a vida, há toda uma vida durante a qual se pode trabalhar e deixar obra.
E o mesmo acontecerá também nas organizações. Se hoje nos preocupamos em atrair e reter talento com as competências adequadas, uma maior população ativa permite uma visão radicalmente diferente do mundo do trabalho, integrando tecnologia, IA e automação com as competências unicamente humanas que se podem encontrar ou desenvolver, transversalmente, em todas as gerações.
Este novo paradigma exige ainda, naturalmente, um novo enquadramento da sociedade e o redesenho dos sistemas de apoio social. Na realidade, a longevidade associada aos padrões de demografia, que se verificam nos diversos países, será o maior motor da mudança social, mais além da evolução tecnológica ou da globalização. Mais do que isso, será porventura a resposta a muitos problemas sociais e desigualdades criados por essas últimas. Se a soubermos aproveitar, será uma excelente oportunidade de construirmos um mundo mais humano e, sobretudo, mais inclusivo.
No Japão, país onde a esperança de vida à nascença é a mais elevada do mundo, foi criado o “Council for the Design of a 100-Year Life” juntando ministérios, associações empresariais e sindicais, universidades e escolas de negócio para, em conjunto, estudar as implicações de uma maior longevidade. O trabalho de ano e meio realizado por este Conselho concluiu que era necessário fazer um investimento prioritário em 3 dimensões: formação ao longo de toda a vida, apoio comunitário aos idosos e redesenho do sistema de reforma. Um bom exemplo a seguir.
Ao olhar o meu novo neto recém-nascido, penso que os meus netos têm 14% de probabilidade de viver mais de 100 anos. Que dádiva entregarão ao mundo ao receberem a dádiva de uma vida longa? Já os pais têm apenas 10% de probabilidade de ultrapassar os 100 anos e nós, os avós, apenas 5%. Suficiente para ainda chegarmos a bisavós! Viva la vita!
Artigo originalmente publicado no Jornal de Negócios. Republicado com permissão.
Professora de Factor Humano na Organização e Dean da AESE Business School