Celebrámos o maior espectáculo do mundo no meio do deserto com estádios com ar-condicionado. Transformámos um evento tradicionalmente de Verão num espectáculo de gastar mal o dinheiro e em cheio no advento. E todos aplaudimos a Argentina como se os milhares de mortos na construção de elefantes brancos de luxo não nos dissessem respeito. Morreram pelo nível absurdo de construção, por se fazer vista grossa às normas de segurança e por se trabalhar duramente com quase 50 graus de temperatura. Foi bonita a festa, pá, e também foi feita a nossa vontade
POR PEDRO COTRIM
Janeiro de 2023 foi quente em Portugal Continental. Fevereiro foi normal na temperatura, mas extremamente seco. Março foi quente e seco e Abril e Maio extremamente quentes – dos mais quentes desde que há registos. Em recuando ao ano passado, Dezembro foi o mais quente desde que há registos – quase cem anos. Outubro e Novembro também foram quentes. Setembro foi quente e Agosto muito quente.
As temperaturas são comparadas com as Normais Climatológicas. Sabemos desde a escola que são séries de 30 anos; a que está a ser usada no IPMA é a de 1971-2000. O que sucede, grosso modo, é os meses serem quase todos mais quentes do que foi habitual nos 30 anos de poluição muito intensa que fecharam o século XX.
As médias de Julho e Agosto em Lisboa, nas balsâmicas décadas de 70, 80 e 90, eram de 17 graus nas mínimas e de 28 nas máximas: em Julho do ano passado, mês não referido no preâmbulo, os mesmos valores foram de 19 e 32,4. A média das temperaturas máximas durante um mês inteiro em Lisboa foi de 32,4 graus. Em Santarém e Beja, 36,8 graus celsius. Em Évora, 37,6. Para se ter noção deste absurdo, podemos pegar em papel e lápis e imaginar 31 dias hipotéticos, colocar os valores das temperaturas máximas imaginadas e fazer as contas. Em jeito de comparação, Riade, no Verão, tem médias das máximas em torno dos 38 graus.
Mesmo os «pólos do frio» do país já não são o que eram. Uma mínima de 3 graus negativos em Bragança ou na Guarda dá direito a notícia no telejornal, quando há uns anos os muitos graus negativos eram habituais no Inverno em boa parte do país. A neve não caía apenas na Estrela, no Marão e no Gerês e o país era mais temperado. São situações que se sentem à flor da pele, que muitas vezes nos engana. Bem conhecemos a expressão «não me lembro de chover assim».
A verdade é que um mês, um ano ou uma década não fazem um clima. São precisas séries muito longas para se perceberem alterações climáticas. Houve dúvidas até ao milénio – havia aquecimento, não havia aquecimento, e, em havendo aquecimento, se era antropogénico ou não. Depois houve relatórios do IPCC que acabaram com as dúvidas.
Haverá sempre situações pontuais, como neve em Lisboa ou no Alentejo, que não deixam de se poder considerar como, de algum modo, prováveis pela situação geográfica de Portugal. O nosso país está a meio caminho entre o pólo e o equador, na zona temperada por excelência: a neve nunca será um evento do domínio da fábula. À nossa latitude há cidades como Chicago, Nova Iorque, Istambul, Pequim ou Seul, que têm Invernos rigorosos por receberem pelos ventos de oeste massas de ar continental, ao contrário do que sucede na Europa Ocidental. Mas, sobretudo, lembremo-nos dos nossos 40 graus de latitude norte como uma média para o país – estamos bem dentro da zona temperada.
No conjunto, há agora muito mais mecanismos de medida e a ciência está una na afirmação: caminhamos para o colapso e, na verdade, não fazemos realmente muito para o evitar. Celebrámos o maior espectáculo do mundo no meio do deserto com estádios com ar-condicionado. Transformámos um evento tradicionalmente de Verão num espectáculo de gastar mal o dinheiro e em cheio no advento. E todos aplaudimos a Argentina como se os milhares de mortos na construção de elefantes brancos de luxo não nos dissessem respeito. Morreram pelo nível absurdo de construção, por se fazer vista grossa às normas de segurança e por se trabalhar em construção civil com quase 50 graus de temperatura. Foi bonita a festa, pá, e também foi feita a nossa vontade.
Os petro-estados estados do Golfo são pródigos em assuntos de pasmar. O edifício mais alto do mundo, aquele pináculo que sobe quase um quilómetro para dentro do céu, não tem ligação à rede de esgotos do Dubai. As fezes são armazenadas em cisternas e depois levadas dali para longe em camiões. Aquele prodígio da engenharia afinal é um prédio doente. Aliás, nas cidades riquíssimas do Médio Oriente, não se anda pela rua, que queima seriamente durante grande parte do ano: aterra-se no ar condicionado do aeroporto, anda-se em transportes climatizados e vive-se o dia-a-dia em hotéis e edifícios climatizados. As diversões são todas climatizadas e a própria água das piscinas tem de ser refrigerada (!).
A zona sudoeste dos Estados Unidos também tem um clima inclemente. Phoenix e Las Vegas são cidades construídas numa frigideira. São corriqueiros os dias de quarenta e muitos graus durante vários meses do ano. E que fazem as pessoas? Fogem aos dias. As descrições de quem lá vive são engraçadas, mas não têm graça alguma. Estarem 35 graus à meia-noite não convida a nada. Vive-se em casa, nos hotéis, nos casinos e em demais sítios em que possam estar ao abrigo do calor. Na rua arde-se. E são cidades muito grandes. Imaginar a energia necessária para refrigerar o ambiente onde vivem muitos milhões de pessoas é desumano. E ainda se vai desumanizar mais.
No Egipto vive-se um delírio tremendo. O Cairo, o lindíssimo Cairo, está mais quente que nunca. A solução óbvia: constrói-se uma megacidade no deserto onde os afortunados que lá possam viver estejam salvaguardados dos milhentos graus. Há um projecto aprovado para um espectacular arranha-céus de 1 km de altura. Arrefecer tudo, levar água pelo deserto e tratar do dia-a-dia de milhões de pessoas. Tem tudo para dar certo.
Mas é tudo? Nem perto. Do outro lado do Mar Vermelho, em Jeddah, já se iniciou a construção de uma torre com cento e setenta quilómetros de comprimento (170 km, sim). The Line. Dispensa carros, uma vez que as pessoas todas viverão entre duas paredes com 500 metros de altura. O deserto por ali também é quentinho e nada melhor que apreciá-lo do sossego de uma sala arrefecida e decorada com uma lareira virtual.
Quem escreve estas linhas é fã de ficção científica desde os anos oitenta. Leu Silverberg, Heinlein, Lem, Bradbury e todos os autores das grandes colecções da altura. Nunca imaginou viver para escrever sobre estas construções fora de um romance.
Quem escreve estas linhas trabalhou no INMG, hoje IPMA, há trinta anos. Não havia consenso sobre as Alterações Climáticas. Este escrevente é céptico por via da ciência que estudava e pela ficção científica que lia. Ficava abalado pelo terror sensacionalista das imagens do género «Nova Iorque no ano 2000» com água pela metade das Torres Gémeas e optou sempre pela reserva em relação à teoria do então chamado «Aquecimento Global»; teve reservas até chegar a voz dos novos relatórios, que apresentaram factos. Agora quase nem são necessários, pois a realidade está patente e a queimar-nos.
Quem escreve estas linhas tinha um amigo, o José A., que somava 32 anos em 2017. Era um latagão com um metro e noventa, saudável e sem história de doença cardíaca. Preparava-se para almoçar com a família no infame dia dos incêndios de Pedrógão, 17 de Junho; caiu redondo no chão e não foi possível reanimá-lo. Teve morte súbita originada pelo calor num dia em que estavam uns 40 graus na Lisboa que tanto amava. A ele se dedica este artigo.
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