“A guerra é louca, a paz é racional” (p. 293). Desde o princípio do seu pontificado que o Papa Francisco tem feito crescentes apelos à concórdia mundial. Na sua recente autobiografia Esperança (Nascente, janeiro de 2025), de onde é tirada a frase acima, todo o capítulo 21, com o mesmo título deste texto, é uma pungente condenação da guerra num mundo cada vez mais bélico
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES
Os últimos 80 anos, desde o fim do conflito mundial, foram bastante violentos, mas só com a invasão russa à Ucrânia de 24 de fevereiro de 2022 ressurgiu o fantasma de um embate realmente abrangente. Essa agressão, não apenas reabriu a porta a ataques espontâneos de grandes potências, mas infetou muitas outras feridas que sangravam um pouco por todo o mundo. Foi então que a profética e paradoxal afirmação do Papa acerca da “terceira guerra mundial aos pedaços”, sempre repetida após 2013, se tornou evidente. O grito de “nunca mais!”, que tantos afirmam desde os horrores nazis, está cada vez mais surdo.
O resultado é que nos encontramos num cenário internacional novo e ainda indefinido, mas o mais complexo e perigoso da história recente. Tal significa que todos os países, por muito pacíficos que sejam, têm de encarar seriamente o rearmamento defensivo. O Papa, não sendo pacifista, garante esse direito: “Nós não confundimos agressor e agredido, e não negamos o direito à defesa” (p. 293).
Deste modo, mesmo quando a guerra não chega às nossas terras, sentimos já os seus custos. Acabou o “dividendo da paz”, de que as economias gozaram no fim da “guerra fria”, poupando em despesas de defesa. Todos os povos sentirão esse peso, num tempo em que o baixo crescimento global, a transição climática, o envelhecimento demográfico, as ameaças pandémicas e tantas outras exigências, tornam esses gastos muito mais difíceis. Esse é o primeiro preço da guerra.
O segundo, mais grave, é que, face à emergência, as questões económicas, prioridade central dos últimos 80 anos, se vão tornando secundárias num planeta mais agressivo. O protecionismo, irmão bastardo do ataque bélico, está de novo a crescer, enfraquecendo a cooperação, a interdependência, a globalização. A agressão tarifária americana de 1 de fevereiro de 2025 constitui o segundo ataque espontâneo de uma grande potência em três anos. Mesmo sem explosões, um mundo mais feroz é também mais pobre.
Em momentos tão confusos é bom voltar às referências que mantiveram 80 anos de calma. A NATO, pilar da estabilidade no pós-guerra, que esteve moribunda após a queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989, recuperou a sua relevância, embora crescentemente criticada. A meta de 2% do produto em despesas militares, fixada há dez anos, constitui um compromisso central dessa Aliança.
Como seria de esperar, a generalidade dos países tem aumentado significativamente o seu compromisso financeiro nestes anos. Segundo dados da própria organização, dos 31 membros (o 32º, Islândia, não tem exército), 23 já atingiram o nível recomendado, quando eram apenas seis em 2021. Outros três tiveram subida, mas ainda insuficiente, pelo que só cinco estão claramente abaixo e sem aumento significativo de esforço: Eslovénia, Canadá, Itália, Portugal e Croácia.
Conhecendo as nossas discussões orçamentais internas, é fácil entender as razões deste impasse. No entanto, por muito que custe, e ninguém ignora esses custos, falhar aqui é, não só grave imprudência, mas sinal de falta de solidariedade, o que alimenta os agressores.
É verdade que o mundo está muito diferente de 1914, de 1939 e até de 1945. O quadro atual aparenta um regresso à guerra fria, desta vez entre EUA e China; mas com três diferenças centrais que alteram radicalmente o equilíbrio.
A primeira é que as duas economias dominantes estão fortissimamente integradas; assim, qualquer real conflito, mesmo apenas alfandegário, prejudica tanto o agressor como o agredido. A segunda é que as potências intermédias não estão alinhadas atrás dos líderes, seguindo cada uma a sua orientação flexível e oportunista. A terceira é que, enquanto a China joga o mesmo xadrez cuidadoso de há 50 anos, os EUA, mergulhados em graves clivagens domésticas, desmantelam ativamente a sua influência internacional, rasgando alianças e saltitando caprichosamente entre estratégias.
Os atuais dirigentes americanos parecem convencidos que agir como rufia do recreio manifesta força, sem reparar que assim minam e enfraquecem a hegemonia daquele que, mal ou bem, foi referência de paz e desenvolvimento desde 1945. A linha atual acabará por “make America small”.
“Aos homens e às mulheres de todas as regiões do mundo e, sobretudo, aos jovens, digo: não acreditem em quem diz que nada pode mudar ou que lutar pela paz é uma procura de ingénuos, de “boas almas”. (…) Nós não somos neutros: estamos do lado da paz” (p. 293-294). Neste recente apelo, Francisco invoca as exortações de São João XXIII em 1963, na Pacem in Terris (p. 285).
No jubileu da Esperança, devemos confiar que as suas advertências atuais sejam ouvidas como foram as de 1963, pois então o conflito manteve-se frio, ao contrário das de Bento XV em 1914 e Pio XII em 1939, afogadas em sangue.
Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas