A Administração Trump está a transformar os Estados Unidos, que era a “nação indispensável ao Mundo”, numa grande potência egoísta e vingativa, que não respeita as suas próprias leis e contratos e que ignora os valores universais dos direitos humanos e da justiça. A Comissão Europeia deveria anunciar de imediato que, perante esta crise e a lacuna de financiamento no sistema humanitário global causada pela suspensão da USAID, aumentará de emergência o seu orçamento de ajuda humanitária
POR FILIPE SANTOS
A USAID – a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional – era a maior agência de apoio humanitário do mundo. Com uma equipa de 10.000 profissionais, dois terços dos quais a trabalhar diretamente no terreno em mais de 100 países, a USAID distribuía mais de 20 mil milhões de dólares por ano para financiar organizações e programas humanitários locais, sobretudo em países em desenvolvimento, mas também em zonas de catástrofe e países devastados pela guerra. Era muitas vezes o principal financiador dos programas e organizações que apoiava e desempenhava um papel crucial no combate à propagação de doenças como o HIV, na promoção da educação infantil, no acesso a água potável, na proteção dos direitos das mulheres, na ajuda humanitária após catástrofes, na distribuição de vacinas e em iniciativas de desenvolvimento económico local.
A decisão da Administração Trump, no final de janeiro, de congelar sem aviso prévio todos os pagamentos da USAID com o intuito de fazer uma avaliação de programas de 90 dias, enquanto encerrava o site da organização e assumia o controlo da sua infraestrutura informática, é irresponsável e ilegal. Uma semana depois, a Administração Trump colocou quase todos os funcionários da USAID em licença forçada e anunciou a retirada no prazo de máximo de um mês de milhares de trabalhadores no estrangeiro, tornando a USAID incapaz de funcionar.
Isto significa que as avaliações serão feitas por pessoas sem qualquer conhecimento das condições locais e sem qualquer contexto da situação específica dos programas humanitários. Houve denúncias tornadas públicas de que dinheiro estava a ser entregue aos talibãs no Afeganistão! Sim, como parte de um acordo longamente negociado para permitir que as raparigas frequentassem a escola para além do ensino primário. Outra denúncia foi que o dinheiro da USAID era gasto a financiar o uso de preservativos em África! Sim – como parte de programas fundamentais para travar a propagação do HIV numa luta global contra uma epidemia devastadora que a Humanidade tem vindo a vencer na última década, graças a políticas coordenadas a nível mundial.
Esta decisão irresponsável da Administração Trump teve um impacto imediato e devastador no sistema humanitário global, forçando a interrupção da maioria dos programas que financiava, a retirada dos seus funcionários no terreno e a suspensão da distribuição de alimentos, água e medicamentos. Muitas das organizações financiadas tiveram de suspender completamente as suas atividades ou reduzir drasticamente as operações e contratos, enfrentando a falência devido à súbita falta de financiamento, apesar dos contratos assinados com a USAID. Mesmo o dinheiro já transferido para estas organizações não podia ser utilizado devido à ordem de suspensão e ao receio de represálias da Administração Trump.
Naturalmente, o governo dos EUA tem o direito de decidir reduzir o seu orçamento de apoio humanitário. O que não tem direito de fazer é impor essa redução de forma repentina, sem aviso prévio e sem respeito pelos contratos assinados, causando danos imensos aos seus próprios funcionários, aos programas humanitários que apoiava e, sobretudo, aos beneficiários finais. É importante salientar que muitos destes programas são de longo prazo e contam também com o apoio de outras agências de financiamento, pelo que estas ações representam um desperdício colossal de investimentos e capacidades humanitárias.
Apesar de algumas das medidas iniciais da Administração Trump terem sido parcialmente revertidas ao fim de alguns dias, permitindo a continuação da entrega de alimentos de emergência, danos enormes já foram causados ao sistema humanitário global. Muitas das consequências mais graves só se farão sentir ao longo do tempo, à medida que as doenças se propagam mais rapidamente, os sistemas educativos enfraquecem, os projetos agrícolas são interrompidos, a fome aumenta e as ações de resposta a catástrofes se tornam menos eficazes, aumentando a probabilidade de tensões políticas nos países em desenvolvimento.
Esta é uma calamidade humanitária e política de uma dimensão que poucos compreendem. E porque é que não há um protesto mais generalizado no setor humanitário? Por MEDO! Todos sabem (e receberam avisos claros nesse sentido) que uma Administração Trump vingativa castigará deliberadamente qualquer funcionário, ONG ou organização humanitária que fale abertamente sobre o que está a acontecer.
Infelizmente, esta é a nova ordem mundial em que vivemos – a Administração Trump está a transformar os Estados Unidos que era a “nação indispensável ao Mundo” numa grande potência egoísta e vingativa, que não respeita as suas próprias leis e contratos e que ignora os valores universais dos direitos humanos e da justiça.
Dado o impacto e as potenciais consequências humanitárias desta crise, este é um momento que exige uma liderança decisiva e responsável. A União Europeia deve agir, reforçando o seu apoio humanitário e assumindo um papel de liderança global.
A DG ECHO é o departamento da Comissão Europeia responsável pela Proteção Civil e Operações de Ajuda Humanitária. Com um orçamento superior a 2 mil milhões de euros e 30 anos de experiência no apoio humanitário, trabalha em parceria com a USAID em muitos programas e conhece os projetos mais críticos e os parceiros locais de confiança.
A Comissão Europeia deveria anunciar de imediato que, perante esta crise e a lacuna de financiamento no sistema humanitário global causada pela suspensão da USAID, aumentará de emergência o seu orçamento de ajuda humanitária, criando um novo fundo chamado EUROPEAID – um mecanismo financeiro filantrópico de emergência – com um compromisso inicial de mil milhões de euros. Deveria igualmente criar uma equipa dedicada para gerir este fundo e avaliar pedidos de financiamento de emergência por parte de organizações humanitárias, garantindo a continuidade dos programas mais críticos. Esta iniciativa deveria ser liderada por uma figura política e humanitária europeia de renome, em estreita coordenação com a DG ECHO.
Esta ação deveria ser coordenada com os principais países doadores europeus, que poderiam contribuir para este fundo de emergência e disponibilizar parte do seu pessoal para esta nova equipa. Alternativamente, poderiam anunciar um aumento dos seus próprios orçamentos humanitários para cobrir o défice de financiamento em programas essenciais, coordenando a sua distribuição com o EUROPEAID – uma abordagem que países desenvolvidos fora da Europa, como o Canadá, a Austrália, a Coreia do Sul e o Japão, também poderiam seguir.
A Comissão Europeia deveria ainda fazer um apelo imediato às fundações globais, empresas e indivíduos de elevado património líquido para contribuírem para este fundo de emergência (ou para um fundo paralelo chamado GlobalAID), de forma a mitigar os efeitos imediatos desta catástrofe humanitária. Grandes fundações – como a Fundação Gates, que já investe milhares de milhões em ajuda humanitária – e bilionários como Warren Buffet provavelmente responderiam ao apelo, juntamente com outras fundações e corporações de todo o mundo.
O EUROPEAID necessitaria, naturalmente, de recursos humanos adicionais com experiência em apoio humanitário e desenvolvimento local. Ironicamente, milhares de especialistas estarão disponíveis no mercado global de trabalho, tendo sido despedidos pela USAID ou colocados em licença prolongada e desiludidos. Alguns destes profissionais altamente qualificados poderiam ser contratados pelo EUROPEAID e por fundações globais dispostas a assumir a liderança, evitando assim a perda de competências valiosas no sistema humanitário.
Estas ações por parte da União Europeia e dos líderes filantrópicos globais demonstrariam uma liderança responsável e decisiva, bem como a capacidade de reagir rapidamente a emergências. Permitiriam igualmente alavancar financiamentos privados e filantrópicos substanciais, em complemento ao financiamento europeu.
Com tempo para adaptação às novas circunstâncias, o impacto da retirada abrupta da USAID poderia ser mitigado. É também possível que a Administração Americana nos próximos meses recue na sua intenção de desmantelar completamente a USAID, especialmente após testemunhar alguns dos impactos muito negativos desta decisão e ver um movimento global de repúdio e de aumento do apoio humanitário.
Infelizmente, o sistema humanitário global irá, inevitavelmente, reduzir a sua dimensão no final deste processo, dado o recuo de um dos seus principais financiadores – a USAID, que representava mais de 20% do financiamento total. No entanto, a diferença entre uma retirada planeada e um colapso total é enorme.
Se os Estados Unidos deixarem de assumir uma liderança responsável no mundo, cabe à União Europeia demonstrar que é capaz de assumir esse papel com coragem, responsabilidade e determinação. Quando testemunhamos algo profundamente errado, temos a obrigação de agir.
(Artigo da Newsletter 280 do Center for Responsible Business and Leadership da CATÓLICA-LIBSON)
Imagem: sergey mikheev/Unsplash.com
Dean da CATÓLICA-LISBON