A paz é vista como uma simples transação que ignora os povos, as histórias, a cultura e a política, refletindo uma ordem de imposição e interesse nacional dos fortes, mais do que um princípio de liberdade e soberania de todos (grandes e pequenos Estados). Mas a paz não é um acordo. E, portanto, qualquer proposta como esta não vai funcionar
POR MÓNICA DIAS

“(…) só aqueles de vós que ignoram o mundo podem acreditar que qualquer nação, mesmo uma nação tão grande como os Estados Unidos, pode ficar sozinha e desempenhar um papel importante na história da humanidade.” (Woodrow Wilson, 1919)

Dentro da complexidade das notícias que todos os dias nos confrontam com histórias de novas e velhas guerras, tornou-se cada vez mais difícil continuar à procura de um horizonte claro de paz. As chamadas “novas” ou “guerras híbridas” minam as regras da guerra tradicional e as convenções internacionais e afetam milhares de civis de uma forma trágica.

Na maioria dos casos, é difícil delinear as verdadeiras causas e os objetivos dos conflitos que são frequentemente travados por uma multiplicidade de atores que têm mais a ganhar com a continuação da guerra do que com um plano sustentável de construção da paz. O uso de novas tecnologias, como os drones, por exemplo, muitas vezes contribuiu para expandir os campos de batalha antes delimitados para áreas urbanas e até residenciais e ampliou o tempo e a intensidade dos combates.

Atualmente, mais de 123 milhões de pessoas estão deslocadas e muitas mais vivem em condições de vida quase insuportáveis em consequência direta de guerras e conflitos violentos. Isso lembra-nos a sugestão de Immanuel Kant de que “Estamos suficientemente avançados em arte e ciência por meio da cultura, mas ainda estamos muito atrasados no que diz respeito à moralidade”. Quase 250 anos depois, num admirável mundo novo de conectividade global e maravilhas da engenharia em todos os campos do conhecimento, será que chegamos um pouco mais longe?

Num momento em que assistimos a uma redefinição da nossa ordem mundial, ou mais concretamente, em que o sistema multilateral da Organização das Nações Unidas é desafiado de tantas maneiras, é importante colocar esta questão, porque está inextricavelmente interligada com a perspetiva de alcançar soluções sustentáveis de paz e dignidade em muitos conflitos em todo o mundo.

A fim de parar guerras em diferentes lugares do mundo, alguns líderes na arena internacional anunciaram grandes acordos de paz que prometem o fim da guerra – mesmo em 24 horas. O que se entende por este conceito de paz é uma simples declaração para parar os combates. É tomada como uma simples negociação de dar e receber – e também de pressão (e intimidação, se necessário) permitindo que o negociante da paz assuma a sua parte do lucro – e fomentando a sua posição de poder geopolítico.

A paz é vista como uma simples transação que ignora os povos, as histórias, a cultura e a política, refletindo uma ordem de imposição e interesse nacional dos fortes, mais do que um princípio de liberdade e soberania de todos (grandes e pequenos Estados). Mas a paz não é um acordo. E, portanto, qualquer proposta como esta não vai funcionar.

Poderá ser possível alcançar um cessar-fogo num curto período de tempo, mas a paz sustentável é um processo de longo prazo de negociações mútuas, que implica, em primeiro lugar, o reconhecimento mútuo e, em seguida, planos concretos de (re)construção de infraestruturas e instituições, e incluindo, finalmente, vias de cura e conciliação para as comunidades dilaceradas. Precisa de diplomatas e pacificadores – e, claro, de um forte plano de recuperação económica. Não é um caminho distante para a esperança, mas um roteiro concreto de trabalho árduo e construção de confiança.

A ordem mundial concebida após a Segunda Guerra Mundial – ou, para ser mais exato, a ordem estabelecida já depois da Primeira Guerra Mundial – tinha precisamente este objetivo de paz entendido como um roteiro comum baseado em acordos internacionais, na cooperação e na confiança. Curiosamente, esta ordem política foi inventada (e até imposta) pelos Presidentes americanos, tanto em 1920 como em 1945, que entenderam que um mundo liberal serviria melhor os interesses americanos. Mas se a ONU não está a cumprir as promessas feitas no momento da sua fundação e se não é capaz de responder às questões políticas do presente, devemos procurar soluções para a ajustar aos sinais do nosso tempo.

No entanto, voltar ao século 19 não tornará o mundo um lugar mais seguro, pelo contrário. Se olharmos mais de perto para a Europa (ou para o mundo) – digamos, antes de 1920 – veremos um campo de batalha contínuo a expandir a sua violência a outros continentes e povos. Lá, a paz só era vista como a ausência de guerra e acordos ocultos eram feitos enquanto se assinavam tratados de trégua e traçavam linhas insustentáveis nos mapas do nacionalismo. Como consequência, os combates ressurgiram dentro de uma cultura de guerra mais ampla, onde os territórios podiam ser comprados e vendidos e os povos deslocados e trocados. As guerras podem ser vencidas assim, mas não a Paz sustentável.

É por isso que a visão de Donald Trump de um novo nacionalismo está errada. É uma perigosa ilusão acreditar que – num mundo interdependente – as fronteiras tornariam um país grande e o protecionismo torná-lo-ia rico. De facto, a ilusão do nacionalismo e do protecionismo conduz a uma perda de confiança – e pode levar à guerra. Como Woodrow Wilson afirmou há menos de cem anos, dentro de um mundo maior, nenhum país poderia resolver os desafios da modernidade sozinho – e a paz só poderia ser garantida por um concerto de nações dentro de regras comuns e relações institucionalizadas de liberdade. Com isso, ele levou os EUA do isolacionismo à liderança do poder no século 20. O momento não estava pronto para absorver essas ideias – mas Franklin D. Roosevelt soube renovar esse projeto com uma ordem mundial liberal e multilateral aberta: o sistema da ONU.

Com muitas falhas, este modelo de multilateralismo continua a ser um forte dispositivo para garantir a resolução não violenta de conflitos e uma paz sustentável. A título de exemplo, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável fizeram uma grande diferença e conseguiram garantir a paz em muitas regiões do mundo. Por conseguinte, a nossa principal preocupação deve ser a procura de uma reforma eficaz das instituições internacionais que construam pontes, promovendo diálogos e abrindo novos mecanismos de criação de confiança. E isto não é um acordo. Mas, como paz em si mesma, um longo processo de compromisso e esperança.

(Artigo da Newsletter 291 do Center for Responsible Business and Leadership da CATÓLICA-LISBON)

Directora do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa

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