A distância entre o que se ensina e o que o mercado valoriza nunca foi tão visível. Num tempo de acelerada transformação tecnológica e instabilidade laboral, o ensino superior enfrenta o desafio urgente de se tornar mais relevante e útil. Jovens desiludidos questionam o valor do diploma, empregadores procuram cada vez mais competências práticas e o próprio conceito de formação académica está em revisão. Entre diplomas e competências, as universidades têm de reinventar-se — não só para formar profissionais preparados, mas para continuar a atrair e reter estudantes num mundo em constante mudança
POR HELENA OLIVEIRA
Com a digitalização, a inteligência artificial e a transformação das profissões, o ensino superior enfrenta um duplo desafio: garantir relevância e preparar estudantes para um futuro incerto. Num cenário em que cada vez mais jovens questionam o valor de um diploma tradicional, as universidades têm de se reinventar para reter talento, garantir empregabilidade e liderar a mudança
As novas exigências do trabalho: o que muda até 2030
Os domínios da educação e do emprego sofreram alterações profundas, colocando às universidades o desafio de responder a necessidades cada vez mais diversificadas. À medida que estudantes e empregadores reformulam as suas expectativas, as instituições de ensino superior são chamadas a oferecer não apenas educação de qualidade, mas também a garantir que os alunos estejam verdadeiramente preparados para o mundo do trabalho.
De acordo com o Future of Jobs Report 2025, do World Economic Forum [e sobre o qual o VER escreveu], 23% das tarefas profissionais poderão ser automatizadas até 2027. As estimativas apontam para que sejam criados cerca de 83 milhões de novos empregos, ao mesmo tempo que 69 milhões terão tendência para desaparecer, sobretudo nas tarefas repetitivas e administrativas. Neste contexto, as chamadas “competências duradouras” (que mais não são do que as soft skills) ganham centralidade: pensamento crítico, criatividade, liderança, resiliência, empatia e capacidade de aprendizagem contínua estão entre as mais valorizadas pelas empresas.
Em média, os trabalhadores podem esperar que dois quintos (39%) dos seus conjuntos de competências existentes sejam transformados ou fiquem desactualizados durante o período de 2025-2030, conferindo-se uma importância redobrada em literacia tecnológica, pensamento crítico, criatividade, resiliência e adaptabilidade — segundo o Future of Jobs Report. A lista de competências mais valorizadas até 2025 inclui ainda resolução de problemas, liderança e comunicação — essenciais para navegar num contexto profissional dominado por IA e digitalização. Um relatório da PwC mostra que a necessidade de novas competências em funções expostas à IA está a evoluir 66% mais depressa do que nas restantes áreas.
Entre diplomas e competências: o que os estudantes esperam
As universidades enfrentam hoje uma crescente desconfiança por parte dos estudantes quanto à sua preparação para o mundo do trabalho. Como o VER escreveu também e de acordo com um relatório da Deloitte recentemente apresentado, 31% da Geração Z e 32% dos Millennials optaram por não frequentar o ensino superior. As razões invocadas são claras: custo elevado, dúvidas sobre a utilidade prática dos cursos e receios quanto ao retorno do investimento. Este número é expressivo. Revela não apenas uma mudança de comportamento, mas também um profundo desencanto com o modelo académico tradicional, que muitos consideram desfasado da realidade do mercado e da complexidade do mundo contemporâneo.
Paralelamente, cresce a tendência, sobretudo em sectores como a tecnologia e serviços digitais, para dispensar diplomas formais e valorizar percursos alternativos e competências práticas. No entanto e simultaneamente, o fenómeno da credential inflation continua presente. Este conceito descreve o aumento progressivo do nível de qualificação exigido para funções que anteriormente requeriam menos escolaridade. A expansão do ensino superior tem levado a que os empregadores usem os diplomas como filtros, muitas vezes sem ligação directa às competências necessárias para o desempenho das funções. O diploma passou, assim, a funcionar como um sinal social ou institucional de prestígio, e não necessariamente como prova de aptidão técnica.
Isto gera efeitos perversos: limita o acesso de candidatos com experiência ou competências práticas, incentiva a obtenção de graus desnecessários e alimenta uma corrida a qualificações formais que nem sempre têm retorno efectivo. Neste contexto, a responsabilidade das universidades é ainda maior: se o grau académico continua a ser exigido, então deve garantir valor real, utilidade prática e reconhecimento genuíno no mundo profissional.
Relevância e retenção: o novo teste das universidades
O futuro do ensino superior exige currículos mais flexíveis, foco em competências transversais, integração de experiências práticas, avaliação baseada em projectos e ligação constante com o tecido empresarial. Para além disso, as universidades enfrentam o desafio estratégico de reter os seus estudantes, num contexto em que a percepção do valor do ensino superior está a mudar. Dados de 2023 mostravam que apenas 47% dos estudantes escolheram uma universidade com base nas perspectivas de carreira, e que menos de 11% se sentem realmente preparados para o mercado de trabalho ao concluir os estudos. Estes números reflectem a necessidade de um novo contracto de confiança entre instituições e alunos, assente em três eixos: maior personalização dos percursos de aprendizagem, integração de estágios e experiências profissionais no currículo, e apoio efectivo à inserção no mercado.
Em paralelo e mais uma vez paradoxalmente, cresce a tendência para a não exigência de diplomas universitários em muitos anúncios de emprego. De acordo com o Indeed Hiring Lab (2024), 52% dos anúncios nos EUA não exigem qualquer grau académico formal, e apenas 17,8% mencionam a licenciatura como requisito. O LinkedIn Talent Blog reforça esta tendência, indicando que o número de ofertas publicadas na plataforma sem exigência de diploma aumentou 36% entre 2019 e 2022 — um sinal claro de mudança na forma como os empregadores estão a avaliar os candidatos.
Esses números revelam duas tendências simultâneas: por um lado, a erosão do diploma como critério absoluto de selecção; por outro, a exigência, por parte dos estudantes, de que a universidade lhes ofereça algo com impacto real nas suas vidas profissionais. As universidades devem responder com currículos actualizados, serviços de carreira robustos, orientação profissional, estágios integrados e microcertificações que validem competências concretas. Ignorar esta realidade é arriscar perder relevância — e estudantes.
Aprender a ensinar de forma diferente
Como defende Steven Mintz, professor na Universidade do Texas e considerado um “pedagogo inovador”, num artigo publicado no Inside Higher Ed, as universidades precisam de transformar as suas práticas pedagógicas e actualizar os seus métodos de ensino, colocando os estudantes (ainda mais) no centro do processo de aprendizagem. Segundo Mintz, melhorando a qualidade da docência, as universidades não resolvem todos os desafios, mas tornam-se mais eficazes na retenção, no sucesso académico e na confiança dos estudantes, enfrentando directamente o “teste da relevância”.
Num mundo cada vez mais complexo, a capacidade de resolver problemas exige uma combinação de abordagens interdisciplinares, que muitas vezes superam a visão limitada de uma única área de estudo. A aprendizagem personalizada e centrada no estudante reconhece que cada aluno aprende de forma diferente e valoriza estratégias pedagógicas que promovem a inclusão, a autonomia e a relevância prática.
Tecnologia e experiência humana: o equilíbrio essencial
Também de acordo com o artigo “The Future of Higher Education: What’s Next for University in 2025?”, publicado pela Student Times em Janeiro de 2025, as universidades enfrentam uma pressão crescente para equilibrar flexibilidade, tecnologia e qualidade pedagógica. A título de exemplo, a integração de ferramentas baseadas em inteligência artificial permite oferecer feedback instantâneo e percursos personalizados de aprendizagem. Simultaneamente, há um esforço visível para reforçar experiências presenciais, intercâmbios internacionais, estágios e projectos aplicados (ou seja, práticos) — os elementos mais valorizados pelos estudantes. A chave para prosperar em 2025, segundo o artigo, reside na capacidade das instituições em alinhar as suas ofertas educativas com aquilo que os alunos verdadeiramente procuram: experiências significativas, com aplicação prática e centradas na dimensão humana.
Da excepção à norma: micro-credenciais, parcerias e aprendizagem contínua
A resposta ao desfasamento entre educação e empregabilidade exige mais do que reformas curriculares. As micro-credenciais — certificações de curta duração e foco prático — oferecem uma alternativa ágil e acessível à formação tradicional, validando competências específicas muito valorizadas no mercado. Paralelamente, a aprendizagem ao longo da vida deixou de ser um ideal abstracto para se tornar um imperativo profissional: os trabalhadores de hoje precisarão de requalificação frequente para acompanhar a evolução tecnológica e organizacional.
Modelos colaborativos entre universidades, sector privado e governos têm mostrado bons resultados em diversos países, promovendo estágios integrados, programas conjuntos e sistemas de antecipação de competências. Para que estas práticas deixem de ser excepção e se tornem norma, é necessário investimento, visão estratégica e compromisso político. As instituições de ensino superior devem posicionar-se como plataformas de desenvolvimento contínuo, onde o aprender nunca se esgota no diploma.
As universidades como motores de reinvenção
Num mercado em que as transformações são tão rápidas quanto imprevisíveis, o verdadeiro desafio é preparar os estudantes não para uma profissão, mas para aprenderem e reinventarem-se ao longo da vida. É nesse horizonte que as universidades têm de se posicionar: como centros de competências, de pensamento crítico e de ligação viva ao futuro do trabalho.
Mais do que nunca, é tempo de passar das intenções à acção. As universidades que forem capazes de se adaptar com visão, coragem e compromisso com os seus estudantes não apenas sobreviverão à mudança, como serão líderes da transformação. O futuro do ensino superior joga-se agora, e quem o souber antecipar fará a diferença na vida de milhares de jovens e no rumo das sociedades.
O retrato em Portugal: entre algumas boas práticas e muitos desafios por superar
Em Portugal, o diagnóstico é, em parte, semelhante ao de outros países: muitos diplomados consideram-se bem preparados cientificamente, mas sentem-se pouco preparados para a transição para o mercado de trabalho. Todavia, também é de sublinhar e de acordo com o relatório “Balanço Anual da Educação 2025”, divulgado esta semana pela Fundação Belmiro de Azevedo, através do seu think tank para a Educação, o Edulog, que os jovens mais qualificados recebem mais e têm mais facilidade em encontrar trabalho. O estudo revela que um trabalhador com mestrado aufere, em média, um salário 80% superior ao de alguém com o 12.º ano, enquanto os licenciados ganham cerca de 45% mais do que quem concluiu apenas o ensino secundário. Assim e em Portugal, o diploma continua a contar e muito.
Mas também persiste, em muitos casos, a dificuldade de uma passagem “suave” da universidade para o mercado laboral. Uma tese de mestrado sobre a transição para o mercado de trabalho publicada da Universidade do Minho sublinha essa percepção, destacando a importância de experiências práticas — como estágios, voluntariado ou trabalho em part-time — para desenvolver competências aplicadas e melhorar a empregabilidade. De forma complementar, uma tese de mestrado da Universidade Católica mostra que estas experiências aumentam significativamente a adaptabilidade profissional dos jovens.
Apesar desses indicadores, persistem fragilidades estruturais. O projecto da OCDE e da Direcção-Geral do Ensino Superior, actualmente em curso, procura responder a este desfasamento entre formação e necessidades reais do mercado, promovendo sistemas de antecipação de competências. No entanto, apenas 41% das instituições de ensino superior portuguesas participam activamente nestes exercícios, com foco maioritário a nível regional — o que revela um envolvimento ainda limitado.
Embora algumas instituições se destaquem por boas práticas, como o ReSkill Hub da Nova SBE, em parceria com a Câmara de Cascais, que visa a requalificação, ligação às empresas e formação ao longo da vida ou o Gabinete de Carreiras da Universidade Católica, a verdade é que essas abordagens permanecem excepção e não regra. Muitas instituições continuam a oferecer percursos pouco alinhados com os desafios do futuro do trabalho, com ligação insuficiente ao tecido empresarial, ausência de orientação profissional sistemática e escassa integração de estágios e experiências práticas nos currículos.
Também a Fundação Francisco Manuel dos Santos tem dedicado vários estudos a estas temáticas, nomeadamente o intitulado “Automação e inteligência artificial no mercado de trabalho português: desafios e oportunidades” ou “Quais são os empregos do futuro?”, que reforçam a urgência de alinhar as políticas educativas com as transformações económicas e tecnológicas em curso.
Imagem: ©Joshua Hoehne /Unsplash.com
Editora Executiva