Num mundo em que as respostas para quase tudo chegam instantaneamente, cresce uma inquietação: estará a inteligência artificial a tornar-nos mais eficientes ou apenas mais preguiçosos a pensar? Um estudo do MIT e vários especialistas alertam para aquilo a que já chamam de “dívida cognitiva”. O perigo não está apenas na resposta pronta, mas naquilo que deixamos de fazer quando a recebemos sem esforço. A chamada preguiça metacognitiva — quando o cérebro se habitua a não fazer esforço e entra em piloto automático — é um dos maiores riscos apontados pelos investigadores. A inteligência artificial pode ser uma aliada poderosa, mas também uma força silenciosa de erosão mental, se não soubermos usá-la de forma adequada
POR HELENA OLIVEIRA
O ChatGPT e outras ferramentas de inteligência artificial estão, de forma crescente, a tornar-se parte integrante do quotidiano de muitos de nós. São utilizados para escrever textos académicos e profissionais, programar código, analisar matérias complexas, resumir livros, planear eventos ou até responder a mensagens pessoais. O tempo poupado e a facilidade de execução são benefícios inegáveis. Mas há uma linha ténue entre apoio e substituição, entre complementar e delegar. E a questão central é: o que estamos a fazer — ou a deixar de fazer — ao confiar tanto nestas ferramentas?
A história da tecnologia cognitiva está repleta de exemplos semelhantes. A calculadora libertou-nos do cálculo mental, o Google tornou a memória factual menos necessária, o GPS substituiu a nossa orientação. Estes avanços não são neutros: por exemplo, estudos neurológicos demonstraram que o uso frequente de GPS reduz a activação do hipocampo, uma região cerebral crucial para a formação de memórias episódicas e para a navegação espacial. Em particular, uma investigação conduzida pela neurocientista Eleanor Maguire do University College London (UCL), em 2000 (e várias outras subsequentes) realizada com taxistas de Londres — célebres pelo seu conhecimento detalhado da cidade — revelou que o uso intensivo de mapas mentais aumentava o volume do hipocampo posterior. Em contraste, estudos posteriores mostraram que a utilização constante de GPS correlaciona-se com uma menor actividade nessa mesma região, sugerindo uma forma de atrofia funcional. O cérebro, ao deixar de praticar essas funções, adapta-se — enfraquecendo-as.
A inteligência artificial como extensão do cérebro ou o contrário?
A cada inovação, uma função cerebral é aliviada da sua carga, e isso nem sempre é benéfico. A literacia digital trouxe ganhos extraordinários, mas também uma nova forma de dependência. Contudo, no caso da IA generativa, o salto é qualitativo: pela primeira vez, uma máquina é capaz de gerar, com fluência e coerência, conteúdos “inteiros” que imitam o raciocínio humano. A delegação não se limita à execução de tarefas; abrange agora a própria formulação do pensamento.
Ao contrário de uma ferramenta que executa uma ordem, o ChatGPT, entre outros seus similares, simula uma construção de pensamento. E, por isso, levanta uma questão de fundo: ao confiarmos nele para pensar por nós, o que acontece às nossas próprias capacidades de pensar? Estamos a desenvolver um novo tipo de literacia digital — ou a hipotecar a nossa autonomia mental?
A comodidade que atrofia: o risco da “terceirização mental”
Um estudo recente conduzido por investigadores do MIT, da Universidade de Stanford e da Universidade de Columbia, publicado em Junho de 2025 último, procurou dar resposta a esta pergunta com base em evidências neurocientíficas. Intitulado “Your Brain on ChatGPT: Accumulation of Cognitive Debt when Using an AI Assistant for Essay Writing Task“, o estudo observou a actividade cerebral de 54 adultos com idades entre os 18 e os 39 anos. Os participantes foram divididos em três grupos: um utilizou o ChatGPT como assistente na redacção de ensaios, outro recorreu ao motor de busca Google como principal ferramenta de apoio à escrita, e o terceiro grupo não usou qualquer tecnologia de IA. A título de exemplo, um dos pedidos foi: “As obras de arte têm o poder de mudar a vida das pessoas?”.
Os investigadores utilizaram a eletroencefalografia (EEG) para registar a actividade cerebral dos participantes, de modo a avaliar o seu envolvimento e carga cognitiva, e para obter uma compreensão mais profunda das activações neurais durante a tarefa de escrita dos ensaios. O estudo decorreu ao longo de quatro meses: nos três primeiros, cada grupo escreveu um ensaio por mês. No quarto mês, uma parte dos participantes foi instruída a mudar de método — alguns passaram a usar o ChatGPT, enquanto outros deixaram de o utilizar — permitindo observar os efeitos da transição entre uso e não uso de IA.
Através das medições com os EEG, concluiu-se que os indivíduos que usaram IA apresentaram uma conectividade significativamente mais fraca entre as regiões cerebrais responsáveis pelo planeamento, memória de trabalho e processamento semântico. Ou seja, pensaram menos. O esforço cognitivo foi nitidamente inferior. O que começa como apoio à escrita transforma-se, rapidamente, em piloto automático mental.
Mais preocupante ainda foi o efeito prolongado. Quando os mesmos participantes passaram, numa sessão posterior, a escrever sem recurso à IA, os seus cérebros continuaram a operar com baixa activação. Segundo os autores, esta “inércia cognitiva” sugere uma forma de dívida: quanto mais frequentemente delegamos tarefas à IA, menos disponíveis ficam as nossas redes mentais para operar por si mesmas. A isso chamaram “dívida cognitiva”.
As consequências observadas não se limitaram ao esforço cerebral. Os participantes que usaram IA tinham dificuldade em recordar o conteúdo das suas próprias redacções, não reconheciam frases que tinham “escrito” com a ajuda do ChatGPT, e apresentavam menor diversidade temática e argumentativa. Como referiu o co-autor Pat Pataranutaporn, do MIT Media Lab, em entrevista à Time ,”o produto final não piora — mas o processo, sim. E é no processo que aprendemos”.
Num artigo recente, a revista Laptop Mag foi ainda mais directa, escrevendo que “a IA está a tornar-nos burros” ao comentar a dependência de ferramentas como o ChatGPT para tarefas que exigem pensamento crítico. Durante uma falha de 10 horas do ChatGPT, muitos utilizadores admitiram publicamente que, sem acesso ao chatbot, “esqueceram-se subitamente de como trabalhar, escrever ou até funcionar”.
Pensar ou copiar? A tentação da IA na Educação
São cada vez as mais evidências desta preguiça ou inercia mental e é no campo da educação que os alertas soam mais alto. Desde que se popularizou o uso de modelos como o ChatGPT, professores e instituições escolares enfrentam um desafio inédito: distinguir entre trabalho original e texto gerado por IA. A tentação de entregar um ensaio sem esforço é grande — e, aparentemente, sem consequências imediatas. Mas os riscos acumulam-se e são preocupantes.
O estudo do MIT confirmou que, além da perda de esforço, há perda de propriedade intelectual. Os estudantes que usam o ChatGPT não sabem explicar por que utilizaram certas expressões, nem conseguem reproduzir ideias que constam nos seus próprios trabalhos. É como se tivessem saltado a etapa da aprendizagem. Tal como alguém que copia uma solução de matemática sem compreender os passos, também aqui a compreensão é sacrificada pela comodidade.
A investigadora Nataliya Kosmyna, também do MIT Media Lab, alertou na mesma reportagem da Time que “se dependermos de LLMs [Large Language Models] para conveniência imediata, o desenvolvimento cerebral pode ser sacrificado”. A revista sublinha ainda que esta dependência pode comprometer competências fundamentais como a organização do pensamento, a escrita autónoma, a capacidade de síntese e a memória de longo prazo
Num mundo onde a informação está por todo o lado, o verdadeiro valor está em saber organizá-la, criticá-la, interpretá-la. Se os alunos se habituam a terceirizar esse processo, o que acontece ao desenvolvimento do seu pensamento crítico e criativo? A IA, se mal usada, pode não apenas esconder lacunas — pode criá-las.
O perigo da preguiça cognitiva e da homogeneização do pensamento
A neurociência já demonstrou que o cérebro funciona segundo o princípio do uso e desuso. Tal como os músculos, as funções cognitivas deterioram-se quando não são utilizadas.
Com o ChatGPT e outras IA, está agora em causa uma gama muito mais ampla de funções: escrita, raciocínio, linguagem, criatividade. A expressão usada pelos investigadores do MIT é clara: “metacognitive laziness” ou preguiça metacognitiva. Ou seja, quando a nossa capacidade de pensar activamente é substituída por respostas automáticas e sem sentido crítico.
Este fenómeno tem também implicações culturais. Um artigo recente da New Yorker , intitulado “AI Is Homogenizing Our Thoughts” e assinado por Kyle Chayka, alerta para a “homogeneização do pensamento” induzida pela IA. Se todos usamos os mesmos modelos para escrever, planear ou responder, não estaremos a perder a diversidade intelectual e expressiva que caracteriza o ser humano? A originalidade, o estilo, a dúvida e até o erro são componentes essenciais da aprendizagem e da cultura, garante.
Quando se fala em “monocultura de pensamento”, está-se a a apontar para um fenómeno em que, se muitas pessoas recorrem aos mesmos modelos de IA para gerar textos, ideias ou argumentos, os conteúdos tendem a ficar cada vez mais semelhantes entre si. A criatividade, a originalidade e a diversidade de pontos de vista — que são fundamentais para um debate rico — começam a diluir-se, porque todos passam a usar as mesmas “estradas” lógicas e expressivas criadas pela IA. Isso empobrece o debate público e limita a variedade de soluções ou perspectivas, reforçando padrões existentes em vez de desafiar ideias estabelecidas.
Quando Kyle Chayka diz “a IA não pensa — reorganiza. E nós começamos a pensar como ela reorganiza”, significa que a IA apenas rearranja informação com base em padrões que já existem. Se nos habituarmos a seguir sempre essas respostas reorganizadas, corremos o risco de modelar o nosso próprio pensamento pelos atalhos da IA — acabando por perder a capacidade de questionar, propor alternativas ou explorar caminhos inesperados
Pensar antes, automatizar depois: a sequência que faz toda a diferença
Nenhum dos especialistas ou estudos analisados defende o abandono das ferramentas de IA. A questão não é rejeitar, mas sim educar para um uso crítico e consciente. O estudo do MIT inicialmente enunciado mostrou que os participantes que escreveram primeiro com “o cérebro” e só depois usaram a IA para melhorar os textos mantiveram elevados níveis de actividade cerebral e melhor desempenho.
O que está em causa é a sequência: pensar antes, automatizar depois. Quando a IA é usada como extensão do pensamento, não o substitui. Pode acelerar, refinar, sugerir. Mas o ponto de partida deve ser sempre humano. O verdadeiro ganho está em integrar a máquina no processo, sem abdicar do nosso papel como autores.
Na educação e entre os mais novos, esta realidade exige uma nova pedagogia. É preciso ensinar não só a usar o ChatGPT, mas a pensar com e contra ele. A fazer perguntas, a rever respostas, a desconfiar de textos fluentes mas vazios. A IA deve ser uma parceira no exercício intelectual, não um atalho permanente.
Para os adultos, o princípio é o mesmo. Se usamos IA para tudo — desde emails a relatórios, de decisões profissionais a textos pessoais — perdemos o prazer e a agilidade do raciocínio próprio. E quanto mais automatizamos, mais nos tornamos dependentes da própria automatização. O risco não é apenas ficarmos mais preguiçosos: é deixarmos de reconhecer o que é verdadeiramente nosso.
A dívida cognitiva como alerta
A inteligência artificial é uma das mais poderosas ferramentas já criadas. Mas como todas as ferramentas, o seu impacto depende do uso que lhe damos. O estudo do MIT, e outros similares, não condenam a IA. Alertam para uma escolha: queremos ser mais inteligentes com ela, ou apenas mais rápidos, mais passivos, mais preguiçosos?
A dívida cognitiva não é uma inevitabilidade. É um alerta. Cabe-nos preservar a capacidade de pensar, de escrever, de duvidar. Em vez de desligarmos o cérebro, podemos usá-lo com mais intenção. A inteligência artificial está a crescer. Mas a inteligência humana ainda tem muito para pensar. Por si mesma.
Imagem: ©Growtika/Unsplash.com
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