POR PEDRO MARTINS BARATA
As negociações internacionais sobre alterações climáticas estão, desde o colapso de Copenhaga em 2009, eivadas de um certo desalento. Quem esteve em Copenhaga, na feira de personalidades que então povoou o Bella Center, na maior reunião de chefes de Estado de sempre, lembrar-se-á do trágico final com as acusações mútuas de responsabilização pelo colapso entre China e Estados Unidos, ou a acusação de ineficácia da União Europeia, tida como mentora de um possível acordo. Desde então, o que se tentou fazer foi resgatar algum consenso e, hesitantemente, perceber em que medida aquele tipo de cimeira global é o instrumento necessário para fazer face ao desafio das alterações climáticas.
Desde então, a máquina burocrática da Convenção-Quadro para as Alterações Climáticas produziu diferentes acordos, tendo sido decidido há dois anos, em Durban e mais uma vez numa cena dramática, o começo da negociação de um acordo internacional, de estatuto ainda a definir, e que pela primeira vez contenha contribuições para a mitigação e a adaptação internacional tanto dos países desenvolvidos como dos países em desenvolvimento. O objetivo é negociar esse acordo por forma a ultimá-lo no próximo ano. Não se espera em Paris um acordo provavelmente tão abrangente e ambicioso quanto teria sido o desígnio em Copenhaga. Há contudo sinais de uma evolução positiva clara nos últimos meses, que apontam para um resultado melhor do que o que se vaticinava.
1º sinal: o acordo sino-americano. Quando a Convenção foi negociada em 1992, a Europa e os EUA disputavam a primazia em termos de emissões globais de gases com efeito de estufa. Hoje, a primazia indisputada é a da China, a qual ultrapassou claramente os EUA no papel de maior emissor global. Mais importante, essa primazia aparece numa altura em que os EUA conseguem, por via da inovação tecnológica na exploração do gás e óleo de xisto, em substituição de carvão, baixar as suas emissões globais. O interesse da China em limitar as suas emissões de poluentes locais e construir uma base diferente do seu sistema energético aliado às novas circunstâncias americanas levaram a um acordo algo surpreendente. Se do lado americano, o acordo pouco mais perspectiva do que a evolução tecnológica positiva recente, do lado chinês o acordo assinala uma verdadeira mudança de paradigma. O facto de pouco tempo depois a China ter anunciado querer reduzir a utilização de carvão ainda antes de 2020 (num país cuja base de crescimento tem sido justamente o aumento da produção térmica a carvão) vem demonstrar a seriedade do que foi acordado. Será o acordo suficiente para evitar o aumento das temperaturas globais em 2ºC acima das temperaturas pré-industriais? Provavelmente e só por si, não. Mas não deixa, contudo, de constituir um grande sinal de ambição.
2º sinal: pouco reportado na imprensa e longe dos holofotes, ao longo do ano de 2014, o Comité do Fundo Climático Verde – um dos resultados da falhada cimeira de Copenhaga – acordou nas modalidades de funcionamento deste Fundo internacional destinado a apoiar os países em desenvolvimento nas áreas de mitigação e adaptação às alterações climáticas. Estimou-se, em Copenhaga, as necessidades de financiamento global nestas áreas em 100 mil milhões de dólares/ano. Nem todo este financiamento, como é óbvio, virá de um único fundo, sendo que muito financiamento com impacto nestas áreas provirá do sector privado, e muito outro continuará a seguir as formas clássicas de financiamento, como seja a ajuda oficial ao desenvolvimento. Mas a meta original de 10 000 milhões de euros como mobilização inicial do fundo foi plenamente conseguida, ainda antes da cimeira de Lima, com um forte contributo dos anúncios americanos e europeus e com contribuições também de economias emergentes.
3º sinal: as metas europeias negociadas apontam para reduções de “pelo menos” 40% até 2030, deixando entreaberta a possibilidade de uma revisão destas metas a meio do percurso daqui até 2030. Para muitos, esta possibilidade é apenas uma quimera tendo em conta as posições solidificadas de países como a Polónia. Contudo, o mais importante será que esta possibilidade possa não vir a ser, sequer, necessária. Com efeito, a Europa dispõe hoje da tecnologia necessária para ir mais longe, conforme atesta a evolução da electricidade de origem renovável em países como Portugal. Importa agora ir mais longe na eficiência energética e na criação de um mercado energético eficiente, ao mesmo tempo que se promovem os sinais correctos em termos de preço de carbono. Na Europa, a mudança de paradigma energético está já em curso.
Em Durban, em 2011, iniciou-se um processo através do qual cada país determinará a sua contribuição para o esforço de redução de emissões e adaptação aos impactos das alterações climáticas. As metas europeias, juntamente com o anúncio do acordo sino-americano, são peças importantes deste processo que, a partir de agora, será formalizado com a submissão por todas as Partes das suas “contribuições nacionalmente determinadas propostas”. Em Lima, foi iniciado o trabalho paulatino de escrita das decisões que os Chefes de Estado e de Governo confirmarão em Paris e que conformarão o conjunto dessas contribuições. Esperam-se longas e árduas reuniões sobre temas como o papel das florestas ou dos mercados de carbono nas contribuições, o sistema de reporte nacional das mesmas e a integração de elementos do Protocolo de Quioto no novo acordo. Tudo em ordem para que, em Paris, um novo acordo seja assinado, o qual sirva de base ao esforço internacional de combate às causas e efeitos do aquecimento global.
As duas esperanças produzidas em Lima
Lima nunca seria uma COP com resultado final, mas apenas um marco na estrada para um novo regime climático a vigorar pós-2020, o qual, espera-se, vigore durante muito mais tempo. Dois textos principais estiveram em cima da mesa: a decisão sobre o processo de estabelecimento de contribuições/compromissos (no jargão inglês – “intended nationally determined contributions” – INDCs) que terá lugar nos próximos meses, e os primeiros elementos do texto final de acordo de Paris. Sobre este último não houve avanços substanciais: o texto dos elementos do acordo resulta no final da COP ainda mais comprido e cheio de opções sobre virtualmente todos os temas em discussão: mitigação, adaptação, financiamento e tecnologia. Teremos agora meio ano para definir colectivamente algo mais negociável a tempo da próxima cimeira em Paris.
Foi sobre o primeiro, contudo, que se focaram as atenções nos últimos três dias da COP. Três pontos estavam em cima da mesa: o processo de indicação pelas Partes dos seus compromissos e o nível de detalhe colocado (a chamada “upfront information”), o processo de revisão da adequação das contribuições propostas ao nível global necessário, e o processo paralelo de aumentar a ambição das metas pré-2020. Em todos estes pontos, depois de três dias de negociação contínua, houve algum avanço. No entanto, o texto é mais confuso e menos assertivo. Poderemos, assim, vir a ter contribuições que não são comparáveis, cuja adequação à realidade do desafio do clima não será revista, em conjunto com um processo de revisão de ambição pouco ambicioso. Nada disto é surpreendente: se a negociação se caracterizasse pelo seu nível de ambição, já há muito que a teríamos resolvido.
Verdadeiramente problemática é a forma como, cada vez mais, o foco das negociações diverge de todo este processo de mitigação, i.e. redução de emissões de gases com efeito de estufa para as áreas paralelas de remediação, ou seja de adaptação às alterações climáticas ou ainda o tema das “perdas e danos” (a reparação dos danos climáticos no que respeita às sociedades mais vulneráveis). Essa mudança de foco ou paradigma, muito favorecida pelas ONG de desenvolvimento e pelos países menos desenvolvidos, representa uma reação necessária e premente às realidades já sentidas, mas não será também uma forma de aliviar a pressão sobre as sociedades desenvolvidas e emergentes para reduzirem ainda mais depressa as suas emissões? Quase como que um cruzar de braços perante a inevitabilidade da falta de ação? Em qualquer caso, a melhor adaptação é aquela que não é necessária: se temos a possibilidade de reduzir as emissões, não deveria ser esse o nosso foco? No final, Lima produziu um texto imperfeito, mas trabalhável. As sequelas da confrontação sobre as “perdas e danos” podem, contudo, fazer ainda descarrilar o processo.
Duas esperanças produzidas em todo o processo: a introdução de um novo objectivo, inclusive no tratado: a meta global de emissões zero em 2050 (cenário compatível com o objectivo global de estabilização do clima) começa a ser falada de forma credível. Tal implicaria que em 2050, daqui a 35 anos apenas, o mundo não emitisse por ano mais do que os ecossistemas terrestres poderia sequestrar em cada ano. Essa meta não é hoje apenas defendida pelos Estados e organizações mais progressistas. Para muitas empresas, essa meta define um rumo claro da intenção da sociedade global. E elas, mais do que muitos governos, têm horizontes de decisão onde 2050 já entra. A vivacidade do debate sobre essa meta, sobre as soluções tecnológicas e os desafios sociais que comportam, ultrapassaram em muito o interesse suscitado pela negociação. Mas não nos equivoquemos: o papel de um acordo global sobre clima como catalisador necessário de mudança não deve ser minimizado. E nesse sentido, Lima convoca à ação mais do que apenas os Estados.
Cabe agora à sociedade civil, ao mundo empresarial (ambos muito presentes em Lima e muito mais positivos do que o resultado final) pegar neste “chamamento à acção” e responsabilizar os governos para que Paris seja um sucesso. Começando pela definição de metas ambiciosas e completas daqui até Março do próximo ano.
Pedro Martins Barata, membro do Expert Adisory Group SBTi Net Zero Standard, co-presidente do Painel de Peritos da Task Force para o Mercado Voluntário de Carbono e Partner da Get2c