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No segundo painel do 6º Congresso da ACEGE, o debate centrou-se nos critérios de decisão no quadro de uma liderança responsável, reunindo a visão sobre os fundamentos e directrizes de actuação essenciais proposta pelo economista João César das Neves – para quem a ‘economia’ da caridade vivida na verdade é um princípio basilar que “ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral” -, com a larga experiência de três empresários que norteiam, com sucesso, a sua acção pela exigência da ética cristã. Na era “da imprevisibilidade e de todos os medos”, o amor ao próximo é não só “compatível” como “constitui um trunfo” face ao lucro e à produtividade, acredita o presidente da Compta, Armindo Monteiro; e as pessoas são o mais valioso activo, pelo que perante decisões difíceis, “é preciso definir bem que critérios utilizar, sem colocar em causa os valores”, afirma José Galamba de Oliveira, à frente da Accenture Portugal. Compliance, justiça e integridade são, na opinião de Ana Paula Carvalho, da PFizer Itália, qualidades fundamentais “para que os gestores vençam no mercado, mas ganhando da forma certa”. Afinal, e perante o princípio da verdadeira caridade e a presença do amor no centro da ética, quais são os critérios para a tomada de decisão na gestão?
Decidir segundo a irrenunciável tutela da dignidade das pessoas
Trazendo à reflexão uma perspectiva académica, João César das Neves apontou linhas gerais de actuação na empresa, a partir dos valores da caridade e da verdade. Para o professor catedrático na Universidade Católica, num encontro da ACEGE, e tendo em conta o ‘best-seller’ “O amor como critério de gestão”, a resposta à questão ‘Qual deverá ser a referência máxima de decisão na gestão empresarial?’ “é evidente”: como se lê no livro do presidente da associação, “o centro vital da ética cristã é o amor”. A ética empresarial cristã nada é, senão “a partir do amor”.
Também o Compêndio de Doutrina Social da Igreja (CSDI) já afirmara, nos seus Princípios, que a caridade, “não raro confinada ao âmbito das relações de proximidade, deve ser reconsiderada no seu autêntico valor de critério supremo e universal de toda a ética social”.
Para abordar o seu valor, é ainda obrigatório referir a encíclica de Bento XVI, e aliar-lhe assim um outro elemento: a caridade tem de ser vivida na verdade. Pois, apesar de ser “a via mestra” da Doutrina, “não cessa de enfrentar desvios e esvaziamento de sentido”, correndo o risco de ser excluída da vida ética, nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, explica o Papa emérito em ‘Caritas in Veritate’. Na encíclica de 2009, Bento XVI deixa claro que a ‘economia’ da caridade deve ser praticada sob a luz da verdade, e que este “princípio decisivo” da DSI “ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral”, como sublinha o economista.
Reflectir, julgar e agir. São estes os três elementos constitutivos da Doutrina Social da Igreja, sobre a qual S. João XXIII foi o primeiro a abordar princípios fundamentais e directrizes históricas, em 1961. A estrutura tripartida que fundamenta a finalidade da Doutrina – “princípios de reflexão, normas para julgar e directrizes para a acção” – introduzida pelo beato Paulo VI, em 1971, foi consagrada pelo cardeal Ratzinger, quase vinte anos antes de ser Papa, na Instrução Libertatis Conscientia da Congregação para a Doutrina da Fé, em 1986. Segundo esta Instrução, “os princípios fundamentais e os critérios de juízo inspiram as directrizes de acção”, sublinha César das Neves.
Feito este enquadramento doutrinário, e no quadro do mesmo, o professor conclui que a análise dos critérios para a tomada de decisão se integra “tecnicamente” no último elemento da DSI (directrizes de acção). Mas, “estando a caridade situada a um nível mais central e profundo, ela pode ser usada como linha orientadora da reflexão”, apela. É, pois, premente, aplicar a caridade às decisões da empresa. Tarefa que se torna desde logo “exigente”, se avaliarmos as complexas “linhas essenciais” deste valor fundamental.
Como sublima o célebre “hino da caridade” da primeira Epístola ao Coríntios, “o amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta”. Esta, que é “uma das definições mais claras, abrangentes e influentes” do amor, nas palavras de César das Neves, parece à primeira vista, ser um conceito sem qualquer aplicação a nível empresarial: “vivemos num tempo que acha que o dinheiro é que dá valor às coisas”. Porém, em qualquer dimensão da vida humana “só há um amor”, defende.
Neste contexto, “um dos primeiros aspectos que é necessário para seguir o mandamento do amor é a humildade”, critério de decisão contra o qual “a arrogância” dos gestores que acham que “os seus dilemas são mais difíceis e exigentes que os dos outros” constitui um obstáculo imediato, conclui o economista. As grandes linhas da aplicação do amor cristão ao mundo empresarial podem encontrar-se na superação desses “dilemas típicos do gestor”, que João César das Neves sistematiza, em quatro grandes dimensões do amor como critério de gestão:
.Amar a empresa
Amar o nosso projecto, a nossa profissão. Uma empresa é uma força de bem-estar para os clientes, de lucro para os investidores, de emprego para os trabalhadores, de actividade para os fornecedores, de estímulo para os concorrentes.
. Amar o accionista
A função do gestor é maximizar o lucro. O trabalho são pessoas, o capital são coisas, mas isso não impede que a relação com accionistas tenha um lugar primordial na acção das empresas. Contudo, a maximização do lucro não deve ser feita a todo o custo.
. Amar os próximos
O stakeholder é simplesmente o próximo. Devemos estar atentos aos que nos rodeiam para atender às suas necessidades, mas na verdade das coisas, com o realismo da gestão, avaliando os vários interesses envolvidos e procurando a solução justa, equilibrada, eficaz.
. Amar os obstáculos
Finalmente, na gestão temos até de amar os obstáculos. Estes são os concorrentes, os impostos e os regulamentos do Estado. São os percalços, os azares, as conspirações. Os gestores cristãos colaboram com o seu trabalho na redenção da humanidade.
Perante estas dimensões do amor na gestão, “não podemos esquecer que na vida concreta da empresa não é nada fácil saber como viver a caridade na verdade”. Porque a realidade é que “são muitas as alturas em que não se sabe o caminho, nem sequer o destino”.
Como afirma o Compêndio, e recorda César das Neves, para que a empresa seja “uma comunidade solidária” construída sob o princípio da “ecologia humana” é indispensável que, no seu interior, “a legítima busca do lucro se harmonize com a irrenunciável tutela da dignidade das pessoas” que nela actuam.
Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de João César das Neves, clique aqui
Compliance e ética na hora de agir, para vencer da forma certa
Perante a necessidade dos gestores e empresários definirem e adoptarem critérios para a tomada de decisão, impõem-se, para a Global Established Pharma Head da Pfizer, em Itália, questionar previamente: Se existem “bons gestores não cristãos”, preocupados com os seus colaboradores e fornecedores, cumpridores, éticos e que partilham a perspectiva do bem comum, “o que diferencia o gestor cristão?”. É, simplesmente, “seguir Jesus Cristo como modelo de referência e inspiração”, acredita Ana Paula Carvalho. Trata-se de uma tarefa fácil, ser empresário e ser cristão? “Não”. Mas também não é uma construção “incompatível”, antes “uma peça integrante da nossa caminhada” diz.
A ex-directora executiva da Pfizer Portugal toma decisões “a toda a hora”, tentando “ter o discernimento do que faz sentido para o sucesso financeiro da empresa, sem que daí advenham impactos negativos em colaboradores ou terceiros”. Contudo, existem “situações mais complexas em que a decisão a tomar impõe uma reflexão profunda e informada”, reconhece.
Para a gestora, “perante os cenários possíveis, a tomada de decisões obedece a princípios como uma maximização dos lucros que garanta crescimento e sustentabilidade financeira; a avaliação do risco e potenciais planos de contingência; a superação em relação à concorrência; o valor acrescentado que cada decisão poderá trazer aos clientes; e a capacidade de executar, exemplar e atempadamente, a melhor decisão.
Igualmente presentes na gestão devem estar compliance e legalidade; e ética, justiça e integridade para com os stakeholders, incluindo “a própria concorrência”. Estes dois critérios são “extraordinariamente importantes” na tomada de decisão, atendendo a que os colaboradores e os clientes cada vez mais os “exigem”, e os gestores devem “vencer no mercado, mas ganhando da forma certa”, sublinha. Ora, “colaboradores orgulhosos da conduta da empresa são colaboradores mais felizes”, e estes “são os que estão disponíveis para correr a ‘extra mile’. Este orgulho pela empresa transfere-se para os clientes”, o que cria um círculo virtuoso, conclui Ana Paula Carvalho.
Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Ana Paula Carvalho, clique aqui
Voltar ao tempo das ideias, na imprevisibilidade dos dias
“Na particularidade dos dias de hoje, vivemos numa época de medo”. O qual sempre esteve omnipresente na história da humanidade, mas é agora “totalmente imprevisível”, contextualiza o presidente do Conselho de Administração da Compta: após os atentados de 11 de Setembro, em Nova Iorque, “entrámos na era de todos os medos – sociais, ecológicos, do terrorismo, de perder o emprego, de conduzir as empresas à falência”.
Esta imprevisibilidade torna mais difícil tomar decisões, e “a angústia tende a sobrepor-se à esperança e ao optimismo”. Para Armindo Monteiro, sem medos “podemos criar um mundo melhor”. Por isso, é tempo de “voltar ao tempo da reflexão profunda das ideias”, definindo critérios de decisão que combatam “a economia natural”, que nos sujeita “à Lei da Selva”, defende o presidente da Compta. Porque não é possível tomar decisões empresariais sustentáveis sem restrições éticas.
Neste contexto, a valores como a verdade, a justiça ou a solidariedade, soma-se a dimensão do amor. Na opinião do gestor, “continua a ser muito difícil” levar para a empresa aquele que é “o nosso maior poder: fazemos por amor o que não fazemos por dinheiro, ou por mais nada”. Mas apesar de difícil, o amor ao próximo é não só “compatível com a rendibilidade e produtividade”, como constitui um trunfo que melhora estes dois factores, conclui.
Nesta perspectiva, vale a pena ponderar os dez critérios para a tomada de decisão que o presidente da Compta enunciou no Congresso da ACEGE:
1) Amar o optimismo – apelando aos decisores para que façam da crise uma oportunidade;
2) Amar a simplicidade – acabando com eufemismos como reestruturação de RH para nos referirmos a despedimentos de pessoas, ou passivos para falarmos de dívidas;
3) Ter um tempo próprio de decisão – tendo a coragem de não adiar avaliações e decisões difíceis;
4) Ser feliz – apostar na felicidade em detrimento do prazer, que é mais fácil;
5) Amar a humildade – um dom mais importante que o mérito, pois “na vida somos todos por conta de outrem”;
6) Distinguir entre o que é importante e o que é urgente;
7) Ordenar prioridades – incluindo entre as opções de longo prazo e a corrida pelos lucros trimestrais;
8) Ter consciência do poder que se tem – tomando decisões com base em critérios transparentes;
9) Construir o bem comum – e não estar empenhado apenas nos interesses pontuais;
10) Ser um exemplo – querendo, como gestores, que os nossos filhos nos avaliem um dia não pelas margens de lucro que conseguimos obter, mas pelas decisões empresariais que tomámos, e que sintam orgulho.
Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de Armindo Monteiro, clique aqui
Definir critérios de decisão sem pôr em causa os core values
Foi no papel de líder de uma grande consultora que tem um modelo de negócio ‘people intensive’ que José Galamba de Oliveira partilhou com a plateia a sua perspectiva sobre a reflexão centrada num cultura de gestão e liderança à luz do amor ao próximo.
A consultora vive uma “cultura empresarial própria muito forte”, que tem como principal activo os RH, e que assenta em seis ‘core values’: integridade, respeito pelo indivíduo, as melhores pessoas, criação de valor para o cliente, rede global e stewardship (que se relaciona com a preocupação de deixar às novas gerações um legado superior). Estes valores constituem “pilares fundamentais, que condicionam o comportamento e a conduta de todos, desde o consultor júnior até aos sócios no topo da pirâmide”, e “são levados muito a sério” “na hora de tomada de decisões”, garante o presidente da Accenture Portugal.
Hoje, esta é uma “empresa-escola que recruta muitos jovens” anualmente, mas também uma empresa cotada em Bolsa, e o factor ‘trimestre’ acaba por se tornar central”, admite. Reconhecendo que “o ‘curto-prazismo’ nas decisões, pressionado pelo objectivo da maximização dos resultados”, acaba por “condicionar muito o processo de decisão”, Galamba de Oliveira recorda como um contexto “de crise económica”, onde há “menos crescimento ou até redução do volume de negócios, implica frequentemente escolhas difíceis, que impactam pessoas – e por isso famílias”. Nestas alturas, em que é preciso reestruturar e reduzir pessoal ou lidar com pressões de clientes, “é preciso parar e definir bem que critérios vamos utilizar sem colocar em causa os nossos valores”, acredita.
Num testemunho na primeira pessoa de alguém que já geriu em contextos de crescimento e de retracção económica, defende que, não obstante a tomada de decisões na gestão ser frequentemente suportada por números que ‘falam’, para o sucesso de um negócio contribuem hoje as várias dimensões de stakeholders. Manter todos estes grupos satisfeitos ”implica um equilíbrio permanente na análise de critérios de suporte à tomada de decisões” (por exemplo, dar aumentos aos colaboradores pode pôr em risco a competitividade da empresa; e dar um retorno excepcional aos accionistas influir na satisfação dos colaboradores), alerta Galamba de Oliveira. Por isso é preciso não esquecer nunca que “por detrás destes grupos estão pessoas. Sempre”.
O presidente da Accenture Portugal acredita que “implicitamente”, o amor ao próximo é um critério para muitos gestores, “quando abraçam valores como o respeito pelo indivíduo, a integridade, equidade ou solidariedade”, a par a sustentabilidade do próprio negócio. E deixa três factores chave para uma tomada de decisão consciente: saber escutar, ‘dormir’ sobre os assuntos e comunicar sempre com as pessoas.
Nota: Para ouvir a intervenção na íntegra de José Galamba de Oliveira, clique aqui
Valores, Ética e Responsabilidade