POR NUNO OLIVEIRA
Nada me soa mais a assunto de ano novo do que a morte, mas não uma morte qualquer nem a morte bruta e banal dos noticiários, muito menos a morte sem nome ou rosto que tolhe os desafortunados. Com as doze badaladas penso quase sempre na boa morte. E sorrio.
Para além da dor, da perda, da angústia e do sofrimento, as dimensões mundanas da morte, existe um lado que me fascina que é o da morte como corretora de actos e atitudes, de mediadora das escolhas que fazemos em vida e da grande triagem que esta nos ensina a fazer. Afinal, quais são aquelas coisas de que nos arrependemos ou orgulhamos no memento mori? Mais sobre este assunto à frente…
Enquanto não-crente-em-qualquer-dimensão-religiosa-espiritual-da-vida-pós-mortem tenho uma perspectiva algo desapegada da morte, o que é diferente de ser indiferente à mesma e a de quem dela se abeire demasiado. Lembro-me muitas vezes das palavras de Epicuro: “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais”. Talvez desta forma consigamos estar mais ‘vivos’ enquanto vivemos, pois não havendo prémio, consolação ou martírio a aguardar o nosso último suspiro, ficamos apenas com a enorme, terrível e fascinante tarefa de aproveitar bem cada dia de vida, o tal carpe diem que sussurram os poetas mortos. Mas talvez seja isso o que mais nos assusta…
[pull_quote_center]Se esquecermos a morte e o que ela representa arriscamo-nos a menorizar a vida[/pull_quote_center]
Muslah-Al-Din Saadi, um poeta persa do séc. XII terá escrito que “quando morreres, só levarás aquilo que tiveres dado”, algo que já teria sido defendido pelos estóicos romanos, dos quais destaco Séneca e Marco Aurélio, que talvez sejam os mais conhecidos filósofos desta corrente de pensamento nascida no séc. IV a.C. Marco Aurélio disse mesmo que não é a morte que devemos temer, mas sim a possibilidade de nunca começarmos realmente a viver, construindo através do pensamento uma vida plena, de qualidade e com força para compreender a verdadeira natureza da adversidade.
Séneca também deixou bem clara a sua perspectiva acerca da fatalidade da morte e do morrer, argumentando que a mesma seria um erro nosso: vermos a morte à nossa frente, como um acontecimento futuro, quando na verdade esta ia ficando para trás, onde cada hora do nosso passado seria já pertença da morte.
A Oriente também ecoavam as palavras de Confúcio, “para quê preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro”. Para quê então, se é em vida que tudo o que podemos ou devemos fazer deve ser feito? Eu tenho a minha própria interpretação: porque se esquecermos a morte e o que ela representa arriscamo-nos a menorizar a vida.
Honestamente, estou farto dos clichés do ‘arrependido’, do milionário que só se lembra de distribuir a riqueza quando o nó aperta e a consciência pesa; do austero que suspira pelo amor que não deu aos outros que tanto lhe ofereceram até ao momento em que deles se despede; do hedonista que percebe que não é do Porshe, do Bordeaux raro ou das compras na Fifth Avenue que guarda as melhores memórias; do reprimido que não ousou libertar-se dos seus próprios atilhos quando nada mais o pode prender…
Estou farto de todos nós que tudo podendo fazer em vida desanimamos, hesitamos, distorcemos argumentos, não nos levantamos depois de uma derrota ou aprendemos a partilhar as vitórias, alimentamos fantasias de ego e nos fixamos na glorificação do instinto de sobrevivência, materializado em benesses financeiras ou posições de poder, et omnia vanitas. Aqui entra a minha visão das coisas. Se todos nós estivéssemos mais vezes conscientes da morte e da possibilidade de esta nos despir e tornar absolutamente nus perante a eternidade, como alegava Pessoa, poderíamos ultrapassar o fado da contrição e fazer hoje o que tanto nos assusta não ter feito quando ela chegar.
Gostava de poder um dia repetir as palavras de Mandela e fazer delas um bocadinho minhas: “A morte é algo inevitável. Quando um homem já fez aquilo que considera ser o seu dever (…) pode descansar em paz. Acredito que fiz esse esforço e que é por isso que descansarei para a eternidade”. Mas porventura é também uma vã vaidade minha suspirar por tamanha proeza.
Talvez possa então encontrar algum conforto nas palavras de Agostinho da Silva: “Não force nunca; seja paciente pescador neste rio do existir. Não force a arte, não force a vida, nem o amor, nem a morte (…) que não haja em si, no anseio de viver, nenhum gesto que lhe perturbe a vida”. E, garanto-vos, quando soavam os festejos dos primeiros segundos do novo ano e olhava para a minha mulher, os meus filhos, os meus amigos, pensei “que maravilhoso seria ter um dia, tão distante quanto possa ser, uma boa morte, reflexo de uma vida cheia. Ter sido útil e ter passado algo de bom a quem fica”. Como aspirava Pitágoras, sair da vida como de um banquete e partir em busca do ‘grande talvez’ de Rabelais…
Biólogo e CEO da NBI – Natural Business Intelligence