Há gestos que nos desarmam, como um abraço entre desconhecidos após um golo, e nos revelam uma verdade esquecida: por baixo das bandeiras, das ideologias e dos medos, pulsa em cada um de nós o mesmo desejo de pertença. Esta é uma viagem por dentro dessa descoberta — íntima, incómoda e luminosa — onde se desenha, ponto por ponto, a silhueta da camisola invisível que a todos nos veste: a de sermos humanos
POR PEDRO LOUPA
Há um rumor que me acompanha há muito tempo. Uma estranha dissonância, um eco persistente entre aquilo que nos dizem que somos e o que, no silêncio, sentimos ser. É como usar uma armadura invisível, tecida com os fios de bandeiras, hinos e essa necessidade quase biológica de pertencer a algo (Abraham Maslow situou a pertença na sua hierarquia de necessidades como um requisito social básico, ao lado do afeto e da aceitação) — mesmo que esse “algo” nos impeça de respirar.
Desde que me lembro, ensinaram-me a amar um pedaço de terra, a defender uma cultura, a fincar a minha bandeira no jardim das minhas certezas como se fosse a última trincheira da existência. E o perverso deste mecanismo é que… funciona. Funciona com uma eficácia tão silenciosa que, por vezes, temo cruzar o olhar com o outro — não vá, no reflexo dos seus olhos, descobrir, para meu espanto, a minha própria humanidade.
Tornámo-nos colecionadores de etiquetas. Nacionalista, progressista, conservador, crente, ateu… como se a vida fosse um álbum de cromos e tivéssemos medo de deixar um espaço por preencher. São refúgios que o ego constrói para não encarar o vértice do desconhecido. E enquanto nos ocupamos a decorar as nossas celas, o mundo — a nossa casa comum — estala debaixo dos nossos pés.
O Teatro dos Egos Assustados
Vivemos uma era fascinante e paradoxal. Por um lado, a Inteligência Artificial sussurra-nos futuros que mal conseguimos conceber. Por outro, agarramo-nos a sistemas económicos e políticos em colapso, defendendo-os com a mesma lealdade com que se protege um familiar doente, apenas porque é nosso.
A política tornou-se um teatro de egos assustados, onde cada ator protege o seu guião por medo de ficar sem papel. Esquerda, direita, centro… um labirinto de espelhos onde todos gritam a sua verdade, sem perceber que, no fundo, o anseio que nos move é o mesmo: um lugar seguro, uma vida com sentido, um futuro para os nossos filhos. Mas preferimos discutir acaloradamente a cor do barco, em vez de começarmos a remar juntos.
A Trégua Sagrada do Estádio
Mas, de repente, acontece a magia. Acontece no lugar mais inesperado: um estádio de futebol. Já lá estive muitas vezes, e cada vez saio com a mesma revelação e a mesma pergunta.
Imagina. Estás ali, com a tua camisola — um pedaço de tecido que te iguala a milhares de desconhecidos. E durante noventa minutos, as armaduras dissolvem-se. O executivo e o operário abraçam-se, a crente dá um “cinco” ao ateu, o de esquerda salta de alegria sobre os ombros do de direita. Durante noventa minutos, o propósito é um só, claro e simples: que aquela bola entre naquela baliza.
E então chega o golo. E nessa explosão de alegria colectiva, nesse grito que nasce da alma, acontece algo sagrado e perturbador. Encontras-te a chorar de emoção nos braços de um completo estranho. Por um instante — apenas um instante — a ligação é total. Não há julgamento, não há medo, apenas uma pertença absoluta e pura a essa tribo efémera.
E então chega a pergunta que desarma tudo: quem é esse estranho que abraças? E por que precisas de uma camisola para te permitires essa ligação?
Talvez esse homem seja o mesmo que nas redes sociais despreza a tua forma de pensar. Talvez essa mulher tenha votado em tudo aquilo que tu detestas. Mas naquele momento de trégua, nessa suspensão do ego, nada disso importa..
A Mestria do Desaprender
Então ocorre-me esta ideia, esta utopia necessária: e se pudéssemos usar essa camisola invisível todos os dias? A camisola da humanidade?
Sim, as Nações Unidas tentaram, mas ficaram-se por um clube de monólogos cruzados, um teatro onde cada nação defende o seu quintal enquanto o jardim comum murcha.
A minha proposta é mais profunda, mais radical: e se criássemos uma “Mestria em Humanidade”? Dois anos obrigatórios para qualquer pessoa que aspire a liderar algo mais do que a sua conta de Instagram. Dois anos para desaprender o medo.
Imagina o futuro CEO de uma multinacional a trocar o fato pela pele de um padeiro numa aldeia do Ruanda. A futura presidente de um país a aprender a escutar o silêncio junto a um monge no Tibete, para depois sentir o pulsar da vida a dançar numa favela do Rio. Um futuro líder de opinião a dormir debaixo de uma ponte em Detroit para entender que a fragilidade não é uma teoria, mas uma experiência.
Uma mestria para esvaziar a mochila de certezas herdadas e reconectar com a bússola interior. Para que, quando for preciso mediar um conflito, se tenha na memória do corpo e das células o eco de se ter abraçado milhares de desconhecidos, apenas por partilhar esta viagem.
O Espelho que Nos Interroga
E agora, a pergunta que incomoda, que nos olha nos olhos: alinhas? Ou sentirias o pânico de passar dois anos fora dos teus muros, rodeado de pessoas que rezam a outros deuses, saboreiam outros pratos e amam de outras formas?
Porque a diversidade é bonita num post de Instagram, mas muitas vezes assusta no lugar ao lado. A verdadeira transformação não está na tolerância, mas na celebração curiosa — e amorosa — do outro.
O Abraço que Contém Tudo
Da próxima vez que um golo te fundir num abraço com um desconhecido, pára um segundo. Sente esse abraço. E pergunta-te o que aconteceria se soubesses que essa pessoa, no fundo, reza pelo mesmo que tu: um pouco de paz, um pouco de amor, um pouco de esperança.
Talvez descubras que não precisas que o outro vista as tuas cores para reconhecer nele um irmão.
Porque, no fim, todos vestimos a mesma camisola invisível. A de sermos humanos — perdidos e encontrados num planeta que gira na imensidão, à procura de sentido.
O jogo mais importante não se joga lá fora. Joga-se aqui dentro.
E começa… agora.
Que camisola escolhes vestir… neste instante?
Catalisador de Liderança Humana e Consciente. Autor do livro “12 Passos para Ser um Líder Consciente”. Fundador da HumanityE, mentor e conferencista internacional, guia líderes e organizações na criação de ecossistemas humanos onde a tecnologia serve a alma, a liderança é um ato sagrado e o trabalho se torna arte coletiva.