A ascensão da China como superpotência global não se dá apenas pelos seus números impressionantes, mas pela sua capacidade de redefinir setores estratégicos. No campo das energias renováveis e da mobilidade elétrica, o gigante asiático não só domina a produção como dita as novas regras do jogo. Ao mesmo tempo que lidera a transição energética global, o país enfrenta desafios internos significativos, como a sobrecapacidade na indústria fotovoltaica, e externos, como as tensões comerciais com o Ocidente. Estas dinâmicas complexas não afetam apenas o presente, mas moldam o futuro das economias globais. A China, com a sua capacidade de inovação e adaptação, está a traçar um caminho que pode tanto abrir novas oportunidades como gerar fricções nas relações internacionais
POR PEDRO COTRIM

A China consolidou-se como uma superpotência global em vários setores chave, destacando-se particularmente na produção de energia fotovoltaica e no segmento dos veículos elétricos. Estas duas indústrias estão na vanguarda da transição energética global e são símbolo da capacidade única da China em inovar e escalar a produção a níveis sem precedentes. Com uma abordagem estratégica que combina a regulação estatal com incentivos de mercado, o país tomou a liderança indiscutível da tecnologia verde. No entanto, esta situação vem acompanhada de desafios significativos, desde a sobrecapacidade no setor fotovoltaico às tensões comerciais com o Ocidente.

A Sobrecapacidade no Setor Fotovoltaico e os Riscos de um Mercado Saturado

A indústria fotovoltaica chinesa, uma das joias da coroa da estratégia energética do país, enfrenta uma crise de sobrecapacidade que ameaça a sua sustentabilidade a longo prazo. O país tem investido fortemente neste setor desde o início dos anos 2000, beneficiando de políticas governamentais agressivas, como o programa «Sol Dourado», que subsidiou até 70% dos custos de instalação de painéis solares. Esta abordagem permitiu que a China assumisse uma posição dominante, controlando mais de 80% da cadeia do fornecimento global de energia solar.

Contudo, a produção chinesa de painéis solares atingiu 800 GW em 2023, um número que excede em muito a procura global, estimada em 450 GW. Este excesso de oferta, combinado com o abrandamento económico global e as tensões comerciais, está a causar uma desaceleração no crescimento do setor. As exportações de produtos fotovoltaicos chineses caíram drasticamente, especialmente para mercados-chave como a União Europeia, onde as importações diminuíram mais de 50% no primeiro semestre de 2024 devido às medidas antidumping implementadas para proteger a indústria local.

Além das dificuldades comerciais, a transição da China para um modelo mais orientado para o mercado, com a retirada gradual de subsídios governamentais, forçou o setor à adaptação. Pequenas empresas foram varridas por falências, enquanto grandes players como a LONGi e a JA Solar continuam a dominar, graças a investimentos contínuos em inovação e eficiência. A entanto, a longo prazo, a capacidade de absorver os impactos de um mercado saturado será crucial para a sobrevivência da indústria fotovoltaica chinesa.

A Revolução Automóvel Chinesa e a Expansão Global

Paralelamente aos desafios no setor fotovoltaico, a China está a emergir como uma potência no mercado global de veículos elétricos. O Salão Automóvel de Paris de 2024 foi palco de uma exibição impressionante das capacidades chinesas neste setor, com marcas como a BYD, a Xpeng e a Leapmotor a demonstrarem que estão prontas para competir diretamente com as grandes fabricantes europeias e americanas.

A ascensão das marcas chinesas no mercado de veículos elétricos não é um fenómeno isolado, mas sim o resultado de décadas de investimentos estratégicos. A parceria da Leapmotor com a Stellantis, uma das maiores empresas globais, é um exemplo claro da ambição chinesa de se expandir para o Ocidente. Esta joint-venture prevê a abertura de centenas de concessionários na Europa, um movimento que está a reconfigurar o panorama automóvel no continente.

No entanto, a expansão global da China no setor automóvel não está isenta de controvérsias. A União Europeia lançou recentemente uma investigação sobre alegações de dumping por parte das marcas chinesas, acusando-as de venderem veículos elétricos a preços injustamente baixos para dominar o mercado. Mesmo que tais investigações resultem em tarifas adicionais, é improvável que a expansão chinesa seja contida, dado o rápido crescimento do interesse por veículos elétricos no mercado global, em especial em regiões emergentes como a Índia e o Sudeste Asiático.

As Tensões Comerciais com os Estados Unidos: Um Obstáculo à Inovação Global

A relação entre a China e os Estados Unidos tem sido marcada por tensões comerciais e tecnológicas cada vez maiores. Desde a administração Trump, os EUA têm imposto uma série de sanções contra empresas chinesas, com o objetivo de restringir o acesso de Pequim a tecnologias avançadas que poderiam ser usadas para fins militares. O embargo imposto à Huawei em 2020, que bloqueou o acesso da empresa a chips 5G, é um exemplo claro de como estas tensões podem ter impactos profundos no mercado.

Em agosto de 2024, o presidente Joe Biden reforçou as restrições, assinando um decreto que limita os investimentos de fundos americanos em dois setores tecnológicos críticos na China: semicondutores e inteligência artificial. O objetivo destas medidas é conter a transferência de tecnologias sensíveis para a China, dificultando o desenvolvimento militar do país. No entanto, estas sanções também têm impacto sobre as empresas americanas, que dependem do vasto mercado chinês para grande parte das suas receitas.

Por exemplo, a China representa mais de 30% das vendas de empresas americanas de semicondutores, como a Intel e a Applied Materials. A dissociação completa das cadeias de valor globais, que foram construídas desde a década de 1980, seria extremamente difícil e cara, como apontam especialistas do setor. Líderes de empresas como a ASML, que detém o monopólio da litografia ultravioleta extrema, alertam que desvincular a produção global poderia gerar pressões inflacionárias significativas e prejudicar a competitividade global.

Geopolítica e a Necessidade de Cooperação na Transição Energética

Embora as tensões comerciais e tecnológicas entre a China e o Ocidente estejam a intensificar-se, a interdependência global na produção de tecnologias verdes implica que a colaboração será inevitável. A transição energética, que exige investimentos maciços em energias renováveis e veículos elétricos, depende da capacidade de diferentes países de trabalharem em conjunto para enfrentar os desafios das alterações climáticas. A China, com o seu papel central na cadeia de fornecimento de tecnologias verdes, terá um papel crucial neste processo.

Para a Europa e os Estados Unidos, o desafio será encontrar o equilíbrio certo entre a proteção às indústrias locais e à colaboração com a China para garantir o sucesso da transição energética global. A longo prazo, será necessário um nível de pragmatismo por parte de todos os atores envolvidos, reconhecendo que a competição não deve minar os objetivos globais de sustentabilidade.

A história já nos ensinou muitas vezes que o futuro nunca acompanha um guião. Na encruzilhada entre inovação e tensões geopolíticas, a transição energética mundial está suspensa num jogo de equilíbrios frágeis. A China, com o seu domínio verde, talvez seja o ator mais imprevisível deste palco global. Para que este espetáculo não termine na tragédia climática, será necessário que todas as nações abandonem o papel de antagonistas e encenem, em conjunto, o maior ato de cooperação da história moderna.

Imagem: © Evgeniy Alyoshin/Unsplash.com

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