POR JOÃO PAULO BATALHA
Sete anos é muito tempo. Hoje, à beira de eleições legislativas em Portugal, as sondagens parecem confirmar: já ninguém acredita em profetas – nem aqui nem nos EUA de Obama. Os tempos são duros, o que há é pouco e não dá para todos, a compaixão é para os fracos, a esperança para os piegas. “Audácia da esperança” é pedir muito. Menos poesia e mais prosa, os candidatos falam-nos antes em confiança, prometem aprofundá-la ou restaurá-la. E bem precisamos dela: os níveis de confiança em Portugal são muitíssimo baixos, como mostram os estudos europeus sobre o assunto. Os portugueses não só não confiam nas instituições e nos homens e mulheres que as administram; não confiamos sequer uns nos outros. Os tempos são duros.O último Barómetro Global da Corrupção, realizado pela Transparency International em 2013, comprova que os portugueses não se revêem no estado a que chegou o Estado: 78% dos inquiridos no nosso país achavam, em 2013, que a corrupção se tinha agravado nos dois anos anteriores; 76% consideravam ineficaz o combate a este flagelo. Numa escala de 0 a 5 – em que 5 significa “extremamente corrupto” – os portugueses colocam os partidos políticos (com um score de 4,1) e o Parlamento (com 3,9) no topo das instituições mais sujas. No ano que vem sairá um novo barómetro com dados actualizados. Veremos então se a confiança dos cidadãos está em recuperação.
[pull_quote_left]Os partidos políticos investem tradicionalmente muito em campanhas e propaganda e pouco em capacitação e estudo – o que significa que gastam mais recursos a falar do que a saber o que dizer. Isso lê-se nos manifestos eleitorais, onde sobra o verbo e falta a substância.[/pull_quote_left]
Para já, o discurso eleitoral não ajuda. Os primeiros cartuchos da campanha seguem a lógica de sempre, aquela que menos falta nos fazia. A lógica superficial do incidente e do soundbyte, da discussão estúpida sobre a qualidade dos cartazes, ou do debate sobre o debate (que terminou com o cancelamento do debate). Houve, é certo, um esforço maior, fruto da conjuntura, para quantificar e medir o impacto das propostas económicas e das medidas orçamentais. Mas a conjuntura que aqui ajuda também desajuda. Porque vamos a votos desta vez sabendo que o poder de decisão dos Estados em política económica (sobretudo dos Estados periféricos como o português) é limitado. Podemos ler as propostas, gostar ou não delas, mas sabemos que não depende só de nós aplicá-las. A nossa vontade conta, mas não conta tudo.
Esta dura realidade devia inspirar-nos a mudar o foco e discutir por uma vez aquilo que de facto cabe na nossa vontade, na nossa soberania. Se outros nos vigiam as contas por cima do ombro, se outros mandam na conjuntura, vamos então tratar da estrutura. Vamos falar do Estado a que chegámos e discutir qual o caminho que podemos trilhar, que é urgente trilharmos, para construir instituições eficazes, dinâmicas, capazes de ouvir, integrar e debater, capazes de defender, no final de processos claros e transparentes, um consenso sólido sobre o interesse público. É assim que se avança, com coisas aborrecidas, mas estruturais, construindo sobre os mecanismos do poder os controlos e as garantias que fazem de um Estado o ponto de encontro de todos os cidadãos, em vez de uma plataforma de negócios para uns quantos bem relacionados. Adiar esta discussão é manter um país envelhecido, corroído e capturado pela corrupção, para o qual olhamos à distância sem nos reconhecermos.
Infelizmente, não há esse rasgo. Há apenas a resignação de procurar o possível, cabeça baixa, dentro das fronteiras que outros desenharam. A dizer a verdade, os próprios candidatos parecem desanimados. Longe, muito longe, da “audácia da esperança”, o argumentário eleitoral resume-se à procura, praticamente assumida, do mal menor. A coligação reconhece que tem sido mau, mas que se vierem os “outros”, será pior. A oposição desfia o rol de desgraças e argumenta que quem lá está não merece continuar. É uma lógica simples, nós contra eles. Serve para promover a combatividade dos militantes e ganhar pelo medo e pelo cansaço a adesão entristecida do eleitor – pelo menos do eleitor que não baixar os braços e desistir. É a mecânica de baixar as expectativas, afogar os ânimos.
Os tempos podem ser desesperantes, mas não são desesperados. Apesar de tudo, há sinais de regeneração. Em Portugal, nasceram nos últimos meses vários novos partidos políticos, o que é positivo. Têm uma longa luta pela frente – e muitos não sobreviverão – para se afirmarem num ambiente político e mediático protegido e pouco permeável, resistente à mudança e desconfiado da inovação. Aliás, por muito que os partidos gostem de falar de “inovação” nos seus programas eleitorais, dificilmente encontramos numa sociedade (em qualquer sociedade) forças mais retrógradas do que os partidos políticos, mais defensivas, mais renitentes à mudança.
[pull_quote_left]Os tempos podem ser desesperantes, mas não são desesperados. Apesar de tudo, há sinais de regeneração[/pull_quote_left]
E aqui está o desafio. Para lá dos partidos, precisamos de um sistema político e de uma sociedade civil que ultrapasse a noção do cidadão-consumidor, do mero contribuinte ou eleitor, reduzido a escolher entre o que há. Há muito quem defenda que isso só se faz com uma grande reforma do sistema eleitoral, ou uma revisão da Constituição, ou uma revolução armada, fúria nas ruas. É natural, sobretudo em tempos de ansiedade, procurar a solução absoluta. Mas antes de suspirarmos pelo inatingível, que tal esgotar o poder dos pequenos passos? (é uma pergunta com rasteira; o poder dos pequenos passos é inesgotável). Aqui vai uma sugestão aborrecida e útil: deitar para o lixo os manifestos eleitorais de 150 páginas, que ninguém lê e em que ninguém acredita.
É uma proposta maior do que parece. Os partidos políticos investem tradicionalmente muito em campanhas e propaganda e pouco em capacitação e estudo – o que significa que gastam mais recursos a falar do que a saber o que dizer. Isso lê-se nos manifestos eleitorais, onde sobra o verbo e falta a substância. Eis portanto a minha proposta: mostrem-me, como cidadão, um manifesto eleitoral de cinco páginas que afirme não o detalhe das políticas, mas os valores dos políticos. Cinco páginas para estabelecer aquilo em que se acredita e os objectivos por que se trabalhará. Basta-me isto, para começar.
Em paralelo e em complemento, que cada partido publique cadernos específicos sobre políticas sectoriais, detalhando diagnósticos, metas, medidas e propostas programáticas. Seria possível, em simultâneo, mais clareza e mais detalhe. Claro que isso implica trabalhar com mais antecedência, mais planeamento. Implica fazer de cada organização política um centro de inteligência aberto ao escrutínio, debate, crítica e participação da academia, da sociedade civil, das empresas, dos cidadãos. Implica diminuir o poder de aparelhos que servem apenas para o tipo de campanha que nos enoja ou angustia; e aumentar a quantidade e qualidade do debate público e da participação. Talvez não seja afinal um passo assim tão pequeno.
Muitos anos antes de Obama propor a sua “audácia da esperança”, outro Presidente americano colocou a questão em termos mais práticos, mais urgentes:
«Esta é, acima de tudo, a hora de dizer a verdade, toda a verdade, de forma franca e corajosa. Não precisamos de fugir a enfrentar com honestidade as condições actuais do nosso país. Esta grande nação irá resistir como sempre resistiu, irá reanimar-se e prosperar. Portanto, primeiro de tudo, deixem-me partilhar a minha firme convicção de que a única coisa que temos a temer é o próprio medo – o terror difuso, irrazoável, injustificado que paralisa os esforços de que necessitamos para transformar a retirada num novo avanço. Em cada hora difícil da nossa vida nacional uma liderança de franqueza e vigor recebeu a compreensão e apoio do povo, que é essencial para a vitória. Estou convencido de que mais uma vez darão esse apoio à liderança nestes dias críticos.»
Discurso de tomada de posse de Franklin D. Roosevelt, 4 de Março de 1933
A audácia da esperança talvez seja pedir demais, nestes tempos de povos cansados de retórica e promessas. Mas ao pensar no futuro que queremos e que nos falta, na forma como conseguiremos (se conseguiremos) resgatar para nós e para aqueles que amamos um sentimento íntimo de dignidade e de orgulho, eu ambiciono, pelo menos, uma “liderança de franqueza e vigor” capaz de convocar o melhor de nós, capaz de recuperar um espírito elementar de comunidade e, com ele, qualificar as instituições, travar interesses e privilégios egoístas, restituir a confiança e recordar-nos de que cada pessoa conta; e cada um tem um contributo a dar.
A audácia da esperança talvez seja pedir demais. Mas, “nestes dias críticos”, que se mantenha pelo menos viva a nossa esperança na audácia.
Co-fundador da TIAC – Transparência e Integridade, Associação Cívica