“Somos uma empresa socialmente responsável”. “O capital humano é o  nosso ativo mais importante”. “Não temos empregados, temos colaboradores”. Estas três frases representam o lado mais virtuoso de muitas empresas. Mas podem representar também o lado mais perverso da gestão levada a cabo noutras organizações, como seguidamente procurarei explicar
POR ARMÉNIO REGO

Primeiro: a responsabilidade social das empresas tem mérito, em princípio, indiscutível. Mas pode ser usada para inglês ver, circunscrever-se ao que enche o olho para efeitos reputacionais, ou esconder pretensões inconfessas. Pouco tempo antes de padecer do escândalo dieselgate  (o software fraudulento que escondia as reais emissões poluentes dos automóveis e visava sustentar a filosofia de viaturas simultaneamente limpas e eficientes), a Volkswagen divulgou o seguinte: “O Grupo recebeu mais uma vez um prémio  pelas suas vastas atividades no campo da sustentabilidade e da responsabilidade empresarial. O Fórum Mundial para a Ética Empresarial agraciou as realizações do Grupo com o Prémio Ética Empresarial 2012 na categoria de “Empresa Excecional”. O Conselho de Administração do Fórum homenageou os esforços da empresa nos campos da gestão ambiental e da responsabilidade social corporativa”.

Ocorrências como esta ajudam a compreender o cinismo de muitos observadores e cidadãos quando interpretam narrativas socialmente responsáveis. Também explicam investigação recente mostrando que algumas empresas acreditadas com importantes certificações não as publicitam: pretendem escapar a acusações de hipocrisia. Afetadas pela desconfiança que recai sobre organizações realmente hipócritas, temem ser indevidamente catalogadas como tal. Optam, então, pelo “silêncio estratégico”.

Segundo: as pessoas são realmente importantes para o desempenho das organizações. Mas a expressão “O capital humano é o nosso ativo mais importante” pode estar alicerçada em conceções muito díspares acerca da valia das pessoas. Pode significar um respeito genuíno pelo valor da pessoa humana e inspirar práticas de gestão sustentáveis assentes na exigência, na justiça, no trabalho empenhado, na dignidade e na responsabilidade. Todavia, a mesma expressão pode conduzir a práticas simplesmente manipuladoras assentes em tecnologias morais e sociais destinadas a extrair mais energia das pessoas como se extrai mais leite de vacas contentes. As pessoas são, nesse quadro de ação, um capital como qualquer outro, instrumentalizado e descartável sempre que for conveniente. A Enron, que sucumbiu à fraude em 2001, “enronizava” as pessoas. Os novos contratados eram aconselhados a ler de ponta a ponta a célebre obra de Maquiavel, “O Príncipe”. Assim incorriam em menores riscos de serem “comidos vivos” – expressão usada por investigadores que estudaram o caso. Mas esse clima funesto não impediu a empresa de, nos anos anteriores à queda, integrar a lista das “melhores empresas para trabalhar”. Vá-se lá saber como!
Terceiro: denominar os empregados como colaboradores é, por si só, insuficiente para formar um juízo rigoroso acerca das práticas de Gestão de Pessoas. Conheço empresas que usam o termo “empregados” para se referirem às pessoas que realmente tratam como colaboradores. Conheço outras que denominam como “colaboradores” as pessoas que tratam realmente como meros empregados. Nestas organizações, o termo “colaboradores” constitui mais uma peça da tecnologia social que antes referi. É uma tentativa de amolecer resistências: como pode alguém intitulado colaborador atuar como mero empregado?! O resultado pretendido nem sempre é sustentável, pois as pessoas reagem com cinismo e quebra de entusiasmo quando identificam desconexão entra a retórica e as práticas.
Naturalmente, ao defender práticas realmente sustentáveis, no plano social, não estou a sugerir que as empresas sejam geridas como clubes de amigos ou espaços celestiais. Essa seria, aliás, uma postura de gestão irresponsável. Gerir responsavelmente é um desafio complexo que requer a consideração dos interesses de diversos stakeholders e está envolto em dilemas morais. Pretendo apenas sublinhar que a hipocrisia na gestão pode acabar mal – para os “colaboradores” e para as próprias empresas.

Nota: Artigo originalmente publicado na Líder Magazine. Republicado com permissão.

LEAD.Lab, Católica Porto Business School