O dia em que percebemos que estávamos perante um vírus letal e que a nossa vida sofreria alterações jamais imaginadas ficará, decerto, na memória de todos nós. Assim, e no âmbito do inquérito desenvolvido pelo Fórum de Ética da Católica Porto Business School, optámos por perguntar o que sentiram os respondentes, trabalhadores e dirigentes, quando tiveram a percepção que teriam de conviver com esta ameaça. As respostas ajudam a pensar, do ponto de vista ético, em novas estratégias de diálogo que “acolham” os sentimentos dos colaboradores e os ajudem a prosseguir um caminho que se afigura, ainda, longo demais

POR HELENA GONÇALVES

(…)o que mais me marcou neste período foi aquele dia em que …

O mais marcante neste período de pandemia foi o dia em que “senti solidão pela primeira vez” ou que “percebi que muitos iam ficar ainda pior”. Foi o dia em que “saí à rua e vi uma cidade fantasma”, ou que “efetivamente constatei que nós nunca controlamos a vida, e que de facto todos os dias contam!” Para muitos, foi quando “fomos para casa, não por opção de trabalho remoto, mas por obrigação”; para poucos quando senti o apoio e compreensão da liderança”.

Estes são momentos narrados como marcantes por alguns trabalhadores portugueses, no inquérito “Desafios éticos em tempo de pandemia” que faz parte de um projeto desenvolvido pela Católica Porto Business School, mais concretamente pelo seu Fórum de Ética, com o objetivo de tentar fazer um retrato de como esta crise está a ser vivida de um ponto de vista ético nas organizações, as eventuais angústias que tivemos, as decisões mais difíceis e a forma como fomos dando resposta a todas as novas questões com que nos deparámos, enquanto dirigentes ou enquanto trabalhadores.

Num momento de especial vulnerabilidade, individual e coletiva, cada um de nós tem necessidade de dizer o que sente sobre o que de verdade importa, de exprimir emoções, e por isso é tão importante a criação de mecanismos para ouvir essas emoções, para cuidar do “ativo mais importante das organizações”.

Por isso quisemos recolher essas emoções, incluindo no inquérito a pergunta “Continue a frase: O que mais me marcou neste período foi aquele dia em que …”. Na análise prévia que dela fizemos, agrupamos os primeiros 200 testemunhos em três dimensões: cerca de metade (47%) são sobre temas profissionais e os restantes dividem-se entre a vida em sociedade (29%) e a dimensão pessoal (25%).

Ainda que podendo estar interligados com trabalho, os testemunhos sobre temas da dimensão mais pessoal foram diversificados, designadamente sobre a vivência direta com a Covid-19, a família, ou sobre si próprio.

Sobre a (con)vivência relacionada com o vírus, há referência a momentos marcantes com pessoas muito próximas, como por exemplo no dia em que…

fui viver temporariamente com os meus pais, para lhes dar apoio, sem ter a certeza se poderia ser um vetor de transmissão;

a minha mãe foi para o hospital, não a pude ver, não pude ir com ela, não pude visitá-la e…morreu! Não pude fazer-lhe uma cerimónia fúnebre decente! Foi a primeira pessoa da sua “aldeia” a ser cremada!

Vividos em contexto laboral, no setor da saúde ou outro, foram descritos momentos que aconteceram no dia em que …

fiquei com marcas físicas por estar sempre alocada à zona Covid;

fui para casa com suspeita de contato com alguém infetado;

um dos funcionários morreu.

A indignação também foi sentida quando “foi detetado o primeiro (de vários) caso positivo, e ninguém fez absolutamente nada”, e, tal como para muitos outros profissionais de saúde que tiveram que viver temporariamente fora da sua casa para diminuir a possibilidade de contaminar a sua família, o mais marcante foi “cada dia que fiquei sem ver os meus filhos”. Estas são, entre muitas outras, situações que afetaram a vida das pessoas que conviveram mais de perto com infetados com este vírus. Estas pessoas precisarão de atenção redobrada por parte da organização onde trabalham, de imediato e no futuro, sobretudo do ponto de vista da saúde mental.

Ainda que possamos desde já afirmar que as respostas que recebemos tenham revelado que os maiores dilemas (de pessoas com e sem responsabilidade de gestão) estiveram relacionados com a conciliação da vida pessoal e profissional, não foram muitos os que selecionaram um momento familiar.

não passei a Páscoa com a minha família;

fiz anos sozinha, sem que a família pudesse estar presente fisicamente;

Sendo estes testemunhos reconhecidos como acontecimentos vividos em inúmeras famílias, outros houve que geraram situações dilemáticas como por exemplo o dia em que …

tive de me dividir entre as tarefas profissionais, as tarefas domesticas e apoiar 2 educandos nas tarefas escolares;

não consegui gerir tarefas familiares com as profissionais;

tive de decidir se o meu filho devia voltar ao jardim de infância;

tive de regressar a tempo inteiro ao trabalho, deixando os filhos em casa.

Ainda na dimensão pessoal, são vários os testemunhos de como “o medo do desconhecido dominou a nossa forma de pensar e agir“, com potenciais repercussões na saúde mental. Efetivamente, muitas emoções emergiram neste período, designadamente no dia em que…

tive um ataque de pânico;

deixei de me sentir seguro fora de casa;

percebi que me sentia desconfortável na presença de pessoas;

senti o olhar de desconfiança (e quase de “repulsa”) pela minha simples presença num local público;

comecei a acreditar que não era útil;

Muitos testemunhos relatam tristeza, caos e desespero, mas encontramos também sentimentos de habituação, de esperança ou revelação, sobretudo sobre outra(s) forma(s) de encarar a vida, agora e no futuro. Estes foram no dia em que…

o Papa Francisco … caminhou sozinho na Praça S. Pedro e fez uma oração com toda a humanidade, senti-me abençoada, protegida e mais calma;

percebi que foi este período que me permitiu unir esforços com as pessoas mais próximas, e mudar a empresa, ajustando-a ao que acredito;

percebemos que mais vale aceitar e adaptar do que resistir;

Renascemos!

Seja sobre marcos institucionais, nacionais ou internacionais, seja sobre a vivência fora de portas, um em cada quatro testemunhos estão relacionados com a vivência em sociedade. Vários falam de quando “se tornou claro a indefinição acerca do tempo de duração da pandemia, mas também sobre quando “vim para casa e percebi que este era o maior desafio da humanidade no último século”, “me apercebi que aquilo que era certo passou a ser incerto”, que “estávamos perante a primeira «guerra verdadeiramente mundial»”.

Alguns relatam mesmo que “não foi um dia que me marcou, foi o processo contínuo e moroso”, a sequência de dias, a sobrecarga de trabalho: “foi como se neste período tivesse vivido num planeta completamente diferente envolto em processos, procedimentos, normas, orientações e princípios relacionados com a Covid-19. Tudo o resto, durante este período, passou-me ao lado. Não faço ideia o que foi estar “confinado”…. saía de casa às 07h00 e regressava de madrugada”.

Descrevem também o que não viram …

o mundo fez uma pausa e, de repente, as ruas estavam vazias;

vim trabalhar presencialmente, e a cidade e o edifício estavam vazios.

Sobre a centena de testemunhos diretamente relacionados com o trabalho, há, como seria de esperar, um grande número sobre o momento em que receberam a notícia da obrigatoriedade de ir para casa e alguns sobre despedimentos, layofff ou encerramentos. Sobre colegas, há manifestação de desagrado, “não respeitaram o horário de trabalho e quiseram reunir fora de horas”, mas também de preocupação, “já com depressão, não colocaram baixa”. O que mais me marcou neste período foi aquele dia em que “voltei para o local de trabalho” é um testemunho recorrente, há emoções de perplexidade “cheguei ao escritório e estava sozinho”; “o telefone não tocou” e relatos de sentimentos coletivos “o excesso de trabalho e sentir que estão a aproveitar-se da oportunidade para abusar da boa vontade dos profissionais”. Ainda dos piores momentos, assinalamos emoções sobre questões financeiras, muitas de pessoas com responsabilidade de gestão, como aquele dia em que “pensei como seria se não tivesse dinheiro para pagar os ordenados”.

Mas, um em cada cinco conseguiram optaram por descrever “bons” momentos, que poderão ser lições para o futuro. Houve testemunhos sobre o aumento repentino do negócio – “recebemos um número recorde de pedidos online de clientes”; “não dormi para dar resposta aos clientes” – outros sobre a oportunidade para inovar – “decidimos que todos os projetos iam sofrer alterações, o nos obrigou a pensar numa nova estratégia, como se estivéssemos a começar os projetos do zero” – mas muitos foram sobre a rápida e eficaz capacidade de adaptação da organização, tais como “em 24 horas foi criado um plano de transformação digital e envolvida toda a organização na criação de soluções” ou “todos foram para casa e a organização conseguiu manter todas as operações sem grandes impactos”.

Também houve testemunhos sobre descobertas. Por exemplo, sobre relações entre pessoas, como quando “tive uma troca de mensagens bastante inspiradora com uma superior” ou quando “demos as boas vindas ao mais recente membro da nossa equipe já estando todos em teletrabalho! E, três semanas depois, esta pessoa me diz ao telefone: É como se sempre tivéssemos trabalhado juntos”. Mas muitos foram sobre benefícios do teletrabalho, como quando “percebi que o teletrabalho melhorava muito a minha qualidade de vida e produtividade do meu trabalho”.

Efetivamente, e como já amplamente registado em múltiplos fóruns, o teletrabalho, ou melhor, a possibilidade de manutenção de circuitos de teletrabalho pós pandemia, pode trazer imensas oportunidades de melhorias. Vai continuar a estar no topo da agenda, não só de todas as organizações, como da sociedade em geral, até para tratar todas as questões legais que estão a emergir.

Mas, a par e interligado com o teletrabalho, e porque o convívio presencial entre pessoas de uma mesma “comunidade” não se pode perder, talvez seja mais interessante (voltar) a trazer para o topo da agenda a criação de (novas) oportunidades de conciliação entre trabalho e família, entre vida profissional e pessoal. E este é um tema com diversas e profundas implicações éticas que não poderão ser descuradas, como por exemplo a necessidade de se rever critérios de avaliação de pessoas, sobre o que é e como manter a “cultura organizacional” ou uma “organização saudável”. As organizações são feitas de pessoas! E por isso as pessoas são tão importantes para as organizações. Mas também o trabalho é importante para as pessoas para o seu bem-estar integral (físico, emocional e social). E esta relação é sempre biunívoca e dinâmica e, como tal, em permanente mutação. E por isso é cada vez mais importante uma gestão próxima e relacional, que permita (re)conhecer as emoções, ouvir pessoa a pessoa, cuidar da pessoa integral, entender a vulnerabilidade intrínseca de cada um de nós.

Nota: Este inquérito foi lançado, logo a seguir à terceira fase de desconfinamento, em meados de junho, e vai manter-se aberto até ao final de julho. Quanto maior o número de respostas mais robustas serão as conclusões e as pistas que poderemos extrair para situações futuras. Por isso pedimos que partilhem este link com a vossa rede de contactos.

A aplicação deste inquérito pode também ser pertinente na organização como um todo. Se assim for permite guardar uma memória coletiva e pensar estratégias de diálogo que incluam e expressem empatia pelo que foram os sentimentos dos colaboradores.

Caso pretendam aplicar o inquérito na vossa empresa por favor contactem-nos.

Docente e coordenadora do Fórum de Ética da Católica Porto Business School