Para o Professor de Economia na NYU Stern, nos EUA e na AESE Business School, a inflação pode ter começado com os movimentos expansionistas durante a pandemia, com os apoios públicos, que tiveram um papel muito importante para amortecer o impacto da pandemia na atividade. E, em entrevista, defende que estes têm uma quota-parte importante no começo do atual movimento inflacionista
POR LUÍS REIS RIBEIRO
Atualmente, existe um dilema que é combater a inflação – bancos centrais a subirem taxas de juro – sem derrubar o crescimento económico. Quão preocupados devemos estar com este custo de oportunidade?
Esse custo, de facto, sempre existiu, o custo de oportunidade de crescimento e inflação. Falou-se muito disso nos anos 70, na altura dos choques petrolíferos, depois deixou-se falar porque a inflação foi desaparecendo. Nos últimos anos, praticamente não existiu, por assim dizer. Nós passámos três décadas sem saber o que é inflação ao ponto de, mesmo nas universidades, já não sabermos se vale a pena falar sobre o tema. Mas agora volta-se a falar.
Esta inflação alta vai ser mais duradoura do que julgamos?
Na minha opinião, a inflação começou a estabelecer-se há mais tempo do que julgamos. Pode ter começado com os movimentos expansionistas durante a pandemia, com os apoios públicos, que tiveram um papel muito importante para amortecer o impacto da pandemia na atividade, mas eu penso que têm uma quota-parte importante no começo do atual movimento inflacionista.
Havia outra forma de combater a pandemia?
Em termos de custo de oportunidade, acho que valeu a pena porque, de facto, pensando por exemplo na realidade americana houve muitas pessoas que sofreram muito durante a pandemia e se não fosse o auxílio do governo americano, que foi injetar dinheiro nas famílias… Mas uma coisa sabemos: quando se dá mais dinheiro às pessoas, elas consomem sempre mais e isso é inflacionista.
Esta crise inflacionista é mais grave ou não do que a dos anos 70 do século passado? Pergunto porque há um fator em comum: o custo da energia, que disparou outra vez
Tem semelhanças. Mas antes, na Europa, não havia um Banco Central Europeu. Havia vários bancos centrais nacionais que agiam contra a inflação e cada um à sua maneira. Isso tornava muito mais difícil o controlo da inflação, na minha opinião. Hoje, a autoridade está centralizada no Banco Central Europeu e não dos bancos centrais de cada país. Portanto, é uma muralha maior e mais robusta contra a inflação.
Refere que os apoios da pandemia geraram inflação. Mas as taxas de juro estiveram em mínimos durante anos a fio. Isso não ajudou a catapultar os preços, aliado ao turismo massivo? No imobiliário e na habitação, por exemplo?
Tem havido muita recuperação, sim, mas pelo que sei, continuamos em valores muitíssimo baixos de construção.
Porquê? Onde é que se pode ver isso?
Falo com arquitetos e muitos projetos estão parados há anos. Não há dinheiro? Há dinheiro. Não sou um especialista na matéria, mas Portugal tem um problema de excesso de regulação ou, se quisermos, uma malha regulatória que torna praticamente impossível um desenvolvimento sustentável e equilibrado do setor. A regulação por si é importante para não gerarmos processos caóticos, mas em Portugal pode estar a impedir ou a desincentivar o desenvolvimento.
Também se aponta o dedo à falta de mão-de-obra qualificada.
É outro grande problema. Nós estamos no meio de uma grande revolução digital que está a mudar muito a estrutura das economias. Este ciclo longo começou há trinta, quarenta anos, e vai demorar mais de vinte ou trinta anos. Não é algo que vá terminar na próxima quinta-feira, nem no mês que vem.
Devemos temer muito desemprego, vagas de empregos que desaparecem com a ascensão das máquinas?
As revoluções tecnológicas destroem múltiplos postos de trabalho, mas na minha opinião não criam desemprego em massa.
Porquê?
Porque destroem-se muitos empregos, é verdade, mas criam-se também muitos empregos novos. Claro que este processo pode ser doloroso.
Para quem tem qualificações mais baixas e para as pessoas mais velhas?
Ou com qualificações, mas que estão no sítio e no momento errado. E, tendencialmente, para os mais velhos, é verdade.
Numa sociedade demograficamente envelhecida isso pode ser um problema decorrente da tal revolução digital. Pode haver exclusão de demasiada gente?
Sim, claro. É um entre múltiplos desafios da revolução digital. Um deles é o ajustamento dos padrões de populações e empregos. Mas a exclusão social pode dar-se ainda por outras formas. Imagine pessoas que não têm acesso à internet. É um problema que afeta demasiada gente no mundo e até nas sociedades mais desenvolvidas.
Em Portugal, continua a falar-se de que é preciso elevar o nível das qualificações. Países assim podem ficar para trás na revolução digital, mesmo com todos os incentivos que existem hoje? Estou a pensar na nova vaga de fundos europeus, no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), etc..
Diria que depende do nível de qualificações e de ensino de que estamos a falar. Vamos começar por cima. Ao nível do ensino superior, eu sou um otimista nato. Em relação a Portugal sou muito otimista porque tivemos o maior choque de crescimento de capital humano na história de Portugal nos últimos anos. O número de pessoas na universidade aumentou quatro ou cinco vezes numa geração. É muito significativo.
Nos últimos anos, os da crise antes da pandemia, do ajustamento da troika, houve muita emigração de pessoas muito qualificadas. Parece até que o fenómeno regressou. Isso não o preocupa?
Sim, mas e os outros? Houve muita migração, mas hoje conseguimos ver também alguns dos primeiros benefícios da explosão de capital humano que são novas e grandes empresas inovadoras que geram muito valor. Nós temos cinco unicórnios que se tornaram cinco empresas avaliadas em mais de mil milhões de dólares com ADN português. É verdade que algumas começaram fora de Portugal, algumas têm sede neste momento em São Francisco ou em Londres mas acabam sempre por direta ou indiretamente criar valor para Portugal. Portanto, não vamos ver o copo meio vazio, vamos ver meio cheio (risos).
Pode dar um exemplo?
Uma das mais conhecidas é a Farfetch.
Falou de uma explosão de capital humano. Portugal tem um sistema de ensino bom e adequado para a revolução digital em curso de que fala?
Bom, há problemas para resolver. Como disse, no ensino superior estamos muito bem preparados, mas em relação ao ensino básico e secundário, acho que menos bem e que podemos fazer muito melhor.
Como?
Na escola pública portuguesa, é a minha grande crítica, Portugal tem uma tradição muito longa de uniformidade no ensino. O professor Eduardo Marçal Grilo lançou esta semana um livro na Gulbenkian “Salazar e Educação no Estado Novo” – penso que é esse o título, mais ou menos – onde se fala de benefícios e malefícios da centralização do ensino, mas onde fica claro que durante décadas o ensino foi sempre decidido na Avenida 5 de outubro em Lisboa; e que a única coisa que mudou nos últimos anos foi a morada do ministério. Não me lembro agora onde é, mas é essa a ideia. Ou seja, continua a ser um sistema muito centralizado. Uma das minhas grandes cruzadas em relação a Portugal é que isto do ensino não é uma questão de público ou privado. Mas dentro do sistema público, estou a pensar no básico e no secundário, deveríamos ter um sistema muitíssimo mais descentralizado. Escolas com alguma flexibilidade sobre que tipo de programas podem dar aos seus alunos. Umas podiam ir mais pela música, outras pela matemática, outras pela informática. Isso já não sei dizer. Mas há caminhos diferentes que podem ser escolhidos sempre.
Continuando a ser escolas públicas?
Sim. Escolas de acesso universal, sempre sem propinas. Vou ser mais claro. Há um modelo que é a charter school, usa-se nos Estados Unidos, a escola gerida por indivíduos que percebem, que têm uma ideia ampla sobre o que é preciso, no caso atual, a revolução digital. E sobre o que é preciso fazer para ensinar crianças e jovens, para lançar estas pessoas nesse novo ambiente.
Está a falar em criar parcerias público-privadas (PPP) nas escolas do básico e secundário?
Sim, podemos chamar-lhes PPP porque são financiadas pelo Estado de modo a integrarem o sistema público universal. A diferença é na flexibilidade. São escolas que podem ser tão boas quanto as outras, mas se não captarem alunos suficientes ou não entregarem resultados, podem fechar mais facilmente do que a escola pública clássica que parece inamovível, continua aberta mesmo não entregando resultados satisfatórios. Estão todas ao mesmo nível, mas a escola PPP que tiver sucesso vai destacar-se das restantes por ser muito melhor porque fez uma aposta diferenciadora face às outras, com grande benefício para os seus alunos. Para preparar para o futuro no nosso ensino básico e secundário, temos de criar maior diversidade. Na minha grande cruzada sobre o futuro da Educação, acho que este sistema de PPP no básico e no secundário é a forma ideal de fazer isso. O país ganharia muito.
Portugal aposta hoje na atração de empreendedores digitais, nómadas digitais, por aí fora. Isto cria valor cá? Ou é mais um negócio imobiliário baseado em benefícios fiscais?
Vamos por partes. Costumo dizer que no passado Portugal descobriu mundos, mas hoje está numa posição inversa. O novo estado da globalização para o qual caminhamos que é, enfim, um fantástico mundo novo, é também um mundo em que a economia é principalmente ou tendencialmente não espacial. A localização da atividade produtiva é relativamente menos importante. Aqui mesmo em Portugal já se consegue ver isso, com o estabelecimento, mesmo que temporário, de programadores de software, escritores, académicos.
O professor Luís Cabral, da NYU, consideraria vir para Portugal dar aulas de economia à distância, em Nova Iorque?
(Sorriso) Não, não, neste caso é mesmo presencial. É muito presencial. Se eu colocasse isso à Universidade de Nova Iorque, diriam “obrigado por ter perguntado, mas não” (risos).
O que é que nós temos para sermos tão atrativos assim?
Gostamos muito de nos queixar, mas como já disse, tivemos esta extraordinária explosão de capital humano, do ponto de vista de fusos horários estamos, talvez, no melhor sítio do mundo, no fuso TMG. Eu posso fazer negócios com a China e com a Califórnia facilmente. Há muito poucos sítios onde existe assim uma janela suficientemente ampla durante o dia para fazer negócios e reuniões. Apesar de tudo, o mundo continua a ser o mesmo planeta, tem 24 fusos horários e isso, a noite e o dia, não vai mudar nunca. Temos um sistema de saúde do qual as pessoas gostam muito de se queixar, mas que é relativamente bom e fiável. Temos segurança geopolítica e, pensando em crime, é um país relativamente seguro e pacífico. E um clima muito bom.
Apesar da seca extrema.
É verdade. Já que fala nisso, estou convencido que poderá ter chegado o momento em Portugal para desenvolver a tecnologia de dessalinização da água do mar como um projeto viável. Já o é em países como Israel, onde mais de metade de água consumida vem dessas centrais. Além disso, neste momento em que estamos, há uma sinergia interessante que se pode vir a obter com fontes de energia renováveis.
Como assim?
A dessalinização exige uma quantidade enorme de energia.
Fóssil, gasóleo sobretudo, certo?
Sim. Mas é possível pensar num desenho em que as energias renováveis ocupariam o papel central. Estou a pensar no hidrogénio. Portugal tem esse plano, mas transportar hidrogénio é muito caro. Então, porque não combinar as duas coisas? Produzir hidrogénio ao lado de centrais de dessalinização de água. Não sendo especialista, é uma ideia.
Entrevista feita por Luís Reis Ribeiro e publicada no Dinheiro Vivo. Republicada com permissão.
Luís Reis Ribeiro
jornalista no Dinheiro Vivo