Para o Padre Gonçalo Portocarrero de Almada, a ocasião singular que estamos a viver é “propícia para redescobrir o sentido último da vida humana e da importância da solidariedade familiar e social”. Em entrevista, o capelão da AESE Business School afirma igualmente que “muitas Quaresmas já passaram por nós sem deixar rasto, mas esta, seguramente, não”
POR CLÁUDIA DIAS
Que oportunidades encerra a quarentena, na experiência da Quaresma, para homens e mulheres de empresa?
Se me permite uma resposta paradoxal, eu diria que esta Quaresma, precisamente porque ocorre durante a quarentena, é mais Quaresma do que se não ocorresse neste contexto.
A Quaresma procura evocar e reproduzir, de algum modo, os quarenta dias de Jesus no deserto, onde se entregou mais plenamente à oração e ao jejum. Por força da quarentena e não obstante os meios tecnológicos que temos hoje à nossa disposição, o isolamento, embora relativo, é real para tantos trabalhadores que se vêm impedidos de sair das suas casas e de se dirigirem para os seus locais de trabalho habitual. A ausência dessa lufa-lufa habitual é um convite a uma vida mais centrada no que é essencial e, por isso, a uma redescoberta dos valores que devem orientar a nossa vida, em termos pessoais e familiares.
Se eu amanhã tiver um convite para ir ao cinema, mas antes disso for recolher umas análises que diagnosticaram um tumor maligno no meu organismo, é muito provável que já não vá ao cinema, não porque seja mau ir ao cinema, ou eu tenha deixado de gostar de ver filmes, mas porque uma outra necessidade, bem mais urgente e necessária, se interpôs. A emergência de uma questão vital obriga-nos a defender o que é essencial: a saúde e vida dos nossos e nossa também.
Se não ficarmos apenas no âmbito da questão sanitária, esta ocasião é propícia para redescobrir o sentido último da vida humana e da importância da solidariedade familiar e social. Neste sentido, pode ser um convite à oração, pelo jejum da actividade profissional e da vida social. A ausência das distrações habituais obriga-nos a centrarmo-nos no que é essencial: ora, é isso mesmo o sentido cristão da Quaresma. Muitas Quaresmas já passaram por nós sem deixar rasto, mas esta, seguramente, não. Porquê? Porque esta obrigação sanitária de ficar em casa é, de certo modo, um convite para questionar o sentido da saúde e da vida humana. Não em vão a Quaresma se inicia com a imposição da cinza, símbolo da caducidade das coisas terrenas e, até, do corpo humano, que procede do pó e ao pó há-de voltar.
“Meu Deus, porque me abandonaste?” Como caminhar para Deus, quando é Ele que nos carrega ao colo, ainda que por vezes não o vejamos?
As palavras do salmo, proferidas por Jesus Cristo já crucificado, não traduzem nenhum desespero, mas apenas tendiam a fazer compreender que, tal como se tinha previsto nesse salmo, a sua morte na Cruz não contradizia, antes confirmava, a sua condição de Messias e de redentor da humanidade.
O pior mal do homem, raiz de todos os seus pecados e infidelidades, é a soberba. O desenvolvimento tecnológico criou essa pretensão humana: em virtude da técnica, o homem julga-se um deus, que tudo pode. Uma pandemia como a actual pode ser benéfica, para recordar ao ser humano que é pó e ao pó há-de voltar. Não obstante todo o avanço tecnológico, não fomos ainda capazes de vencer um vírus que já ceifou milhares de vidas humanas. Parece que, quanto mais evoluídos somos, mais débeis nos tornamos, também porque o avanço tecnológico não avança só no sentido do progresso, mas também da destruição humana.
O homem precisa de Deus, para não se desumanizar. Quando perde o sentido do sobrenatural, nomeadamente pelo ofuscamento da sua consciência, transforma-se num ser infra-humano. Não é preciso ser profeta para o dizer: convém não esquecer que as brutalidades do regime nacional-socialista não aconteceram há milhões de anos num país do terceiro mundo, mas no século passado, no país mais desenvolvido do continente mais evoluído do primeiro mundo, a pátria de Hegel e de Beethoven!
O que temos a aprender com o grito de João e o silêncio de Maria, duas formas de sofrimento profundo, perante a mesma realidade de Cristo crucificado?
Não sei se, efectivamente, houve algum grito de João, mas é provável que o discípulo que o Senhor amava, como ele gosta de se referir a si mesmo no Evangelho de que é autor, tivesse gritado de dor pela morte do Mestre. O silêncio de Maria também não consta expressamente, de todos os modos é previsível um silêncio que, diga-se de passagem, seria o seu modo de orar, unindo-se ao seu Filho no sacrifício da redenção de toda a humanidade. De modo análogo a como em Jesus há duas vontades, a humana e a divina, também em Maria há dois quereres: enquanto Mãe, quereria evitar aquele sofrimento do seu Filho muito amado; mas, enquanto fiel, quer que se cumpra a vontade de Deus Pai, para que pela morte do Filho, o mundo seja redimido.
Ambos nos ensinam, cada um do seu modo, com o seu suposto grito e o seu silêncio, a não ficar indiferente, mas corresponder a este tão poderoso chamamento de Deus porque, como ensinava Santo Agostinho, Deus que nos criou sem o concurso da nossa vontade, não nos salvará sem o nosso consentimento. Não basta que Deus nos queira salvar, é preciso que nós deixemos que Ele nos salve, nomeadamente através da mediação da Igreja.
Em que medida, a fé é uma vocação ou uma escolha?
A fé é um dom de Deus, que se converte em vocação quando é assumido pelo fiel, ou seja, quando passa a estruturar a vida dessa pessoa. A fé é uma graça de Deus, que deve ter, para o próprio, um sentido existencial, não meramente intelectual. A fé não é apenas algo em que acredito, mas que vivo, porque uma fé sem obras é, no expressivo dizer de São Tiago, uma fé morta. Portanto, não basta acreditar, ou ter fé; é preciso viver a fé.
Como o dom da fé não é imposto, mas proposto, a vida de fé nasce de uma vontade livre, ou seja, surge por amor. Neste sentido, é uma escolha, muito embora não possamos não ser escolhidos: a nossa própria existência é já manifestação da nossa vocação sobrenatural. Se Deus nos criou, foi para alguma coisa e essa coisa é a nossa missão, a nossa vocação. Não se pense que a vocação é apenas para alguns: todos, do mesmo modo como fomos chamados à vida, fomos chamados também à santidade, que é a plenitude da vida. Como diz São Paulo a Timóteo, Deus quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.
Como libertar Cristo da Cruz, para que viva entre em nós em plena ascensão?
Alguém disse que Jesus Cristo estaria na Cruz até ao fim dos tempos. É verdade que continua a ser perseguido na Igreja e nos cristãos – como sabe, a religião cristã é a mais perseguida do mundo inteiro – como também em todos os que, de algum modo, sofrem, porque é Cristo que neles sofre também.
A parábola do juízo final, que Mateus expõe num dos capítulos finais do seu Evangelho, ensina que tudo o que fizermos de bom ou de mal, aos outros, é ao próprio Cristo que fazemos. Quer isto dizer que a fé cristã, para além da relação vertical com Deus, na oração e no sacrifício, tem também uma dimensão horizontal: não se pode amar a Deus e não amar os irmãos. Não há, portanto, lugar para uma religiosidade intimista, de muitas rezas mas sem dedicação ao próximo, nem um trabalho social que não tenha por fundamento a relação com Deus.
Não é por acaso que, desde tempos imemoriais, são os religiosos, sobretudo os membros das congregações femininas – Irmãzinhas dos pobres, missionárias da caridade, etc. – que se dedicam aos marginalizados e aos mais pobres dos pobres. É a sua consagração religiosa que as torna capazes desse serviço heroico aos mais necessitados.
Também os cristãos que vivem no meio do mundo, devem lutar para que haja cada vez mais justiça social. O governante cristão, ou o empresário católico, não podem limitar-se a não ser injustos, mas devem promover a justiça social à sua volta, procurando promover os mais necessitados, através de políticas públicas ou empresariais que corrijam injustas desigualdades sociais.
Qual o papel da AESE na formação espiritual de dirigentes e executivos, numa situação de isolamento social?
A AESE, como qualquer outra escola de negócios que também se identifique com os princípios e valores cristãos, deve desenvolver a responsabilidade social dos seus alunos, pela oferta de meios de formação e de aconselhamento espiritual que favoreçam uma mais autêntica vivência do Cristianismo.
Suponho que não há receitas mágicas, nem compete a uma escola de negócios oferecer aos seus formandos fórmulas de inevitável sucesso, mas pode e deve recordar-lhes que têm uma acrescida responsabilidade social e que serão tão bons empresários quanto forem bons cristãos, bons cidadãos, bons colegas, bons trabalhadores, bons pais e mães, bons irmãos e irmãs, filhas e filhos, etc. Não se pode ser um bom empresário, se não se for uma boa pessoa; e, para ser uma boa pessoa, nada melhor do que ser um bom cristão.
NOTA: O Padre Gonçalo Nuno Ary Portocarrero de Almada nasceu em Haia, Holanda, a 1 de Maio de 1958. Licenciou-se em Direito na Universidade de Madrid (Complutense) e, posteriormente, doutorou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia da Santa Cruz, em Roma. Ordenado sacerdote em 1986, exerce desde então o respectivo ministério no âmbito da prelatura do Opus Dei. Além de escrever regularmente na imprensa periódica, é autor, entre outras obras, de Histórias e Morais (Alêtheia, 2011) e co-autor de Auto-de-Fé, a Igreja na inquisição da opinião pública.
Responsável de Comunicação da AESE Business School.