Afonso Teixeira da Mota, do SALL – Associação de defesa da liberdade, recebeu-nos para uma entrevista. Numa conversa em que se abordou o pensamento ocidental e esta espécie de tribunal que enfrenta agora um pouco por todo o mundo, a ideologia de género foi o tema forte. Pouco abordado nas campanhas, tem feito correr muita tinta. Nem tudo é o que parece ou a realidade está mesmo a ser escamoteada? Esperamos que a conversa que apresentamos informe os leitores a este propósito
POR PEDRO COTRIM
Agradeço-lhe o acolhimento e esta disponibilidade. Trouxe-me aqui o SALL e a suas intervenções pela liberdade na educação. O que se passa afinal?
Boa tarde, Pedro. Eu é que lhe agradeço a disponibilidade. Entendemos que a verdadeira liberdade deve ser exercida sem condições, mas com respeito pela realidade e pela natureza das coisas. O exercício da vontade que não tenha consideração pela realidade e pela natureza não conduz à liberdade, mas à escravidão e ao condicionamento. Esse exercício equivocado gera a possibilidade da mentira.
Hoje assistimos, por diversas e complexas razões, a uma forma de entender a liberdade como sinónimo de «as coisas são aquilo que eu digo que são» e «eu sou aquilo que entendo que sou, independentemente daquilo que sei que sou». Isto é bem palpável no ideário da chamada ideologia de género, que advoga uma dicotomia artificial entre o meu corpo e o meu espírito, como se não fossem uma unidade. Uma espécie de espiritismo, quase. «O meu espírito está preso num corpo que pode não ser o meu».
Esta mentira, que parecerá evidente a uma grande maioria de pessoas, é o resultado de uma doutrina laboriosamente construída e implementada, agora também nas escolas, e que parece estar a chegar ao seu auge.
Assim posto, é realmente duma leviandade grande.
Que tem sido amadurecida ao longo das últimas décadas até encontrar pasto numa sociedade que tem profundo desprezo, ou pelo menos desinteresse, pela verdade, pelo que é a verdade, pelo que é que as coisas são, pela forma de ser própria de cada realidade existente.
Mas entendemos que o mundo é dinâmico. Nem tudo é o que era…
Evidentemente e ainda bem. A este propósito, e a título de exemplo, no SALL não entendemos desadequadas muitas das pretensões da chamada igualdade de género (embora não gostemos do termo «género»), que defende a igualdade de direitos, na medida do possível, entre os sexos masculino e feminino.
Mas sentimo-nos na obrigação de combater uma minoria muito radical, que não está preocupada com a igualdade entre sexos, que apenas pretende desconstruir os chamados «estereótipos de género» (homem e mulher), com o propósito de desconstruir a nossa visão da família tradicional, da autoridade dos pais, e que, em consequência, está dedicada a deitar abaixo tudo o que na nossa civilização ocidental, possa ser identificado, numa visão marxista, como uma superestrutura escravizante, constituída pela cultura e arte, família, direito, costumes, e até a ciência.
Os ideólogos de género são os maiores negacionistas da ciência. Para eles a biologia deve ser substituída pela ideologia, conforme já ouvi diversas vezes. E, em consequência, temos perante nós grupos organizados que se preocupam, expressamente, em deitar tudo abaixo. E pior, dogmáticos e autoritários, pretendem usar o aparelho de estado, e sobretudo a escola para que todos os outros se submetam, em particular os pais.
Na verdade, entendem estes ideólogos que é preciso destruir tudo isto para podermos viver uma verdadeira liberdade. Nós entendemos precisamente o oposto. Sem família, cultura, direito, ciência e verdade nunca seremos livres.
Este pasto, como lhe chamou, terá obrigatoriamente de ser um dia totalmente consumido. Será nessa altura que a ideologia vai colapsar?
Terá de ser antes, absolutamente. Há muitos sinais positivos. Parece-me que a ideologia de género conseguiu uma coisa que nenhum outro movimento contra a família tinha conseguido até agora. Este movimento anti tradição ocidental, quando defendeu o aborto e a eutanásia, não conseguiu, como agora, levantar uma reação como aquela a que vamos assistindo um pouco por todo o lado.
Quando se discutiram aqueles outros temas, ouve algumas reações, mas nada que se compare à reação que a ideologia de género tem provocado um pouco por toda a parte. A ideologia de género é de tal forma contrária à natureza e à realidade, de tal forma radical, que tem levantado muitas pessoas que começam a ver estes problemas entrarem-lhes pela casa adentro através dos filhos e reagem.
Muita gente consegue entender hoje melhor, à luz da ideologia de género, o processo de degradação cultural que tem no aborto ou na eutanásia marcos importantes, que estão fortemente associados à ideologia de género.
E politicamente?
No SALL não nos posicionamos politicamente. No entanto, registamos com satisfação que o combate cultural a esta avalanche faz parte do ideário de alguns partidos. Temos procurado o contacto com diversos partidos com assento parlamentar, precisamente para esclarecer sobre este movimento cultural radical e agressivo que tem tentado tomar conta da escola, sobretudo a pública. No fundo, pode dizer-se as coisas estão a ficar clarificadas.
Estão, com os populismos a crescer, também…
As ideias woke também são profundamente populistas. Um populismo extravagante, se quiser. Na origem, e é o que nos motiva no SALL, está sempre um desacordo com a verdade. O que é a verdade na definição clássica? A verdade é o que as coisas são. Podemos discutir se conhecemos as coisas como elas são ou não, mas isso é outra questão.
Popper?
Talvez, mas aqui é ainda mais simples. É pensar na experiência física de cada um. Estamos perante um movimento que nega a realidade física de cada um e a ciência.
E temos o SALL.
O SALL, que talvez nem tivesse necessidade de existir se este movimento, que defende esta ideologia de género, não fosse tão avassalador, totalitário e arrogante. Não tolera qualquer dissensão, tal como todos os outros extremismos, feministas, ecologistas, pró abroto, eutanásia, etc.
Mas porque sucede isto?
Olhe, eu acho que muitos deles não sabem sequer o que estão a fazer. Como em muitos outros casos, a adesão a estas ideias tão irrealistas é fruto de alguma moda e pressão social. Ainda há dias, circulava no WhatsApp um vídeo em que uma jornalista, se não me engano da BBC, estava numa manifestação pró-palestina a fazer perguntas. O entrevistado, que defendia ardorosamente a libertação da Palestina, pelas respostas que dava, expressava um absoluto desconhecimento geográfico, histórico e até político sobre o que lhe era questionado. É uma questão de moda.
Creio que muitas pessoas não sabem realmente o que estão a defender quando dão voz à ideologia de género. Além disso, verifico que estas ideias vêm, muitas vezes, numa espécie de pacote ideológico, que agrega pânico climático, teoria crítica racial, ideologia de género, revisionismo histórico, etc. Ainda assim, no SALL o foco é apenas o combate a todas as formas de restrição ilegítima ou condicionamento ideológico das nossas liberdades, de expressão, religiosa, de ensino, de profissão, etc.
As célebres leis das casas de banho…
Que não foram promulgadas, mas que devem ser combatidas, bem como a lei que criminaliza qualquer acto que possa ser entendido como contrário à identidade ou expressão de género, ou a lei que estabelece o direito à autodeterminação da identidade de género e expressão de género. São matérias problemáticas que, em nosso entender, devem ser combatidas, pois resultam de um irrealismo total, acientífico, de uma visão da liberdade sem qualquer consideração pela natureza.
E não se trata apenas de um combate cultural ou ideológico, de «a minha ideia contra a tua»: estão em causa pessoas, muitas delas crianças e jovens que recebem informação confusa e sofrem as consequências, muitas vezes físicas, mas quase sempre morais, dessa enorme confusão para a qual estão a ser arrastados. E a sociedade portuguesa é extremamente passiva. Noutros sítios, mais reativos a tudo isto, os pais não permitem algumas situações que aqui se passam.
Deveras?
Repare, uma aula de matemática ou de história não pode ser interrompida por umas considerações inoportunas sobre ideologia de género.
A educação para a cidadania…
Nós não estamos contra a disciplina de Educação para a Cidadania; estamos contra qualquer tipo de conteúdo ideológico, seja nesta disciplina ou noutras. Nem sequer entramos na questão da legitimidade do estado para decidir se deve haver uma disciplina de educação para a cidadania, o que queremos é que a escola seja livre de carga ideológica.
Mas o senhor entende que sim?
Eu aqui talvez seja um pouco mais liberal. Eu entendo que o estado deve ter o mínimo de intervenção em tudo, deve ter uma intervenção subsidiária relativamente ao resto da comunidade política. Quanto à educação, cabe sobretudo aos pais; à escola cabe o bom ensino da língua, das regras gramaticais, da matemática, da história, até da história das ideias. A literatura, a filosofia, as artes e as ciências. A escola normal, no fim de contas, com a qual ninguém está em desacordo. Se o estado entende que há uma necessidade de ensinar bons modos, muito bem.
Li uma vez um aforismo. Não me recordo do autor, mas assim rezava: «As leis foram feitas para quando falta a sensibilidade».
Que falta muitas vezes, infelizmente, mas repare o Pedro: eu gostava que os meus filhos tivessem os modos que eu pretendo ensinar-lhes. Não sou contra a ideia de uma disciplina para tal, apenas a acho desnecessária. Contudo, perante a possibilidade mais ou menos legítima de haver uma educação para a cidadania, infiltrou-se, uma ideia que não parece má: a de educar para a igualdade de género (entre os sexos, diríamos nós), que nada tem a ver com identidade de género, cujo sentido não posso entender.
A igualdade entre os direitos dos sexos feminino e masculino, além de ser uma ideia antiga, não merece discussão. Por exemplo, no meu escritório, tenho a trabalhar mais raparigas que rapazes. Tenho duas sócias. As mulheres que quiserem desenvolver a sua carreira profissional têm aqui o seu lugar. Aliás, as mulheres são, muitas vezes, não só mais competentes e determinadas, mas também mais dedicadas e organizadas.
O que também não se pode dizer hoje em dia…
Infelizmente! Mas, em determinada fase da vida, as mulheres são efetivamente mais focadas, mais cuidadosas. Na minha opinião, não há nenhuma «urgência de género». Não é sequer uma coisa sobre a qual devamos perder muito tempo. Uns terão uma opinião, outros terão outra. O problema começa quando, a coberto desta igualdade de género, se infiltra a noção absurda de fluidez de género, que passa a permitir todo o tipo de arbitrariedades na escola.
A reboque da educação para a igualdade de género, inculcam-se, de forma impositiva, nas cabeças das crianças e dos jovens, as doutrinas mais absurdas. E é contra isso que reagimos, contra essa falta de isenção que não respeita o princípio plasmado na constituição da nossa república, segundo o qual o estado não deve condicionar filosófica ou ideologicamente os conteúdos que são lecionados.
Mas é então inconstitucional?
Nós só queremos que se cumpra o artigo 43, número 2, da CRP: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas». Não podemos então ter uma educação baseada na opinião de meia dúzia de pessoas. A constituição, pelo menos teoricamente, consagra o consenso social mínimo. Este consenso é assim violado. Há um consenso: em matéria de princípios e valores eu educo os meus filhos e tu educas os teus. Não me incomoda até que a escola contribua para os bons modos, mas sempre dentro deste consenso.
Infelizmente, há crianças a quem falta um bom substrato familiar.
Eu admito que a escola possa incutir bons modos, mas sem doutrinar os alunos, dentro dos limites estabelecidos pela constituição.
E há algum partido que esteja disposto a mexer na CRP?
Não faço ideia. Mas o problema não se coloca apenas no plano legal. Há também o cancelamento social implacável de que sofrem todos aqueles que dissentem destas doutrinas radicais. Se os ideólogos do género estipularem que há 329 géneros e eu responder que há dois, serei imediatamente cancelado e apodado de fascista, homofóbico, transfóbico, negacionista e por aí fora. Por outro lado, como disse já, a ciência é a primeira vítima, e, em consequência toda a educação. As crianças e os jovens estão a ser educados com base na ideia de que não há nada certo… nada a não ser a ideologia.
Assim posto, ou vai ou racha.
Muita gente me diz: «Afonso, o mundo em que viveste terminou. O mundo baseado na filosofia que procura a verdade ou no do direito que procura a justiça, na tradição judaico-cristã, terminou. A partir de agora, o mundo é como eu disser que é…». Não sei se alguma vez vivi num mundo tão perfeito, mas sei que vale a pena lutar para que seja diferente do que é.
E com muita produção académica, aparentemente.
Muitíssima. É uma obsessão com a sexualidade, com a sexualização das crianças, com a exposição das crianças desde o primeiro ciclo a conteúdos sexuais. Só se fala em sexo, há uma urgência em que as crianças falem o mais rapidamente possível em sexo. É o que chamamos a hipersexualização do espaço público, incluindo o da escola. Depois há professores sem qualquer vocação para o tema, pessoas formadas em matemática ou história ou engenharia a falarem de sexo a torto e a direito. Obviamente que provoca problemas.
A disciplina é portanto lecionada por professores de todas as áreas.
Exatamente. O conteúdo que cada um transmite é que permite uma certa amplitude. Há orientações para a disciplina, e aí discordamos radicalmente e já interpusemos uma ação contra o estado por este motivo. Ainda não está decidido o processo judicial, mas não vamos desistir do combate. Inclusivamente, a Sociedade Portuguesa de Matemática está preocupada, pois a disciplina está a ser ensinada como «perspetiva de género». A história e a filosofia também, obviamente.
Falando em legalidade, podemos regressar à constituição…
O problema, como disse, não está na constituição. Poderíamos discutir a organização do estado, mais ou menos interventivo, em particular na educação, e eu aí talvez me posicione junto dos defensores da escola mais livre da intervenção do estado. Mas essa não é a tarefa nem a vocação do SALL. O que vou vendo, e que nós vamos vendo no SALL, é que a escola está a ser canibalizadas por diversas associações financiadas e patrocinadas para difundir esta ideologia sectária. Que vão à escola, pagos pelo estado, promover espetáculos, palestras e toda a sorte de eventos com esta perspetiva destruidora de «estereótipos de género», como a lei manda. Reagir contra estas intervenções é que é a vocação do SALL.
E não ocorre apenas em Portugal, como sabemos.
Não, é mundial. E por isso o SALL tem estado muito presente em discussões internacionais sobre estes temas. O SALL é de génese portuguesa, mas este combate é global e o SALL está ligado a diversas organizações congéneres, ou próximas da nossa para fazer um combate mais eficiente contra esta globalização da revolução cultural, como a define Marguerite Peeters.
Há felizmente bibliografia.
Há, e ainda bem. A história do pensamento ocidental é grande e rica. O SALL inscreve-se nesse movimento global que está a ser travado por inúmeras organizações, de outros países ou mesmo multinacionais. É um grande conforto ver este movimento em todo o lado.
O SALL tem alguns propósitos: um é apoiar as famílias, professores e profissionais que se sintam ilegitimamente condicionados no exercício das suas liberdades por razões ideológicas.
O segundo tem a ver com a reação cultural. Queremos participar, de forma muito ponderada e fundamentada, no debate político. Como lhe disse, nos últimos meses, temos estado em contacto com todos os partidos políticos, que mostraram vontade em ouvir as nossas considerações e de ter em conta as nossas preocupações. Outro é angariar fundos para este combate.
Temos uma grande alegria em ver a obra que Deus fez através destes vasos de barro, destes grãos de SALL. Hoje podemos dizer que o SALL adquiriu uma certa notoriedade e está cada vez mais preparado e organizado para de forma estruturada combater um bom combate.
Temos recebido convites diversos, nacionais e internacionais. Temos procurado estar em toda a parte, temos criado uma rede que, acreditamos, terá uma grande utilidade no futuro. Ainda há pouco tempo estivemos em Londres no grande evento ARC (Alliance for Responsible Citizenship), organizado pelo Jordan Peterson. Mas também estivemos em Madrid em eventos organizados pela Universidade San Pablo CEU e nos Estados Unidos, no grande encontro anual da ADF. São convites que muito nos honram, de gigantes que vêem algum valor nesta formiguinha que vai ganhando corpo em Portugal. Temos sido apoiados por diversas pessoas, por instituições relevantíssimas, nacionais e internacionais. Temos recebido incentivos que nos animam para este combate.
Enfim… Não sei ao certo como é que Deus aproveitará o que temos estado a fazer, mas acho que Nossa Senhora de Fátima pode vir a servir-se de nós para ajudar a que o dogma da fé não se perca em Portugal, como se perderá noutros lugares.
Tem sido, então, um grande trabalho…
É uma experiência muito útil e gratificante e queríamos fazer chegar este nosso trabalho a outras entidades. Nenhum de nós vinha destas lutas; éramos, digamos, cidadãos regulares que andávamos nas nossas vidas sem grande preocupação com estes temas. Somos newcomers, somos 28 membros voluntários regulares, com uma direcção executiva de 4 pessoas muito novas e salgadas. Deus seja louvado!
Editor