Falar de ética e de compliance implica sair para fora da nossa zona de conforto e confrontarmo-nos com quem somos e como agimos nas esferas pessoal e profissional. Implica também revisitar e redefinir termos e conceitos que podem ser formalmente distintos, mas que na prática se intersetam, como é o caso do assédio e da retaliação. As fronteiras diluem-se facilmente no contexto da prática profissional, surgindo assim a dúvida sobre a pertinência da inclusão do assédio no canal de denúncias, agora obrigatório para organizações com 50 ou mais trabalhadores (Lei 93/2001, proteção de denunciantes e proibição de retaliação)
POR HELENA GONÇALVES E SUSANA MAGALHÃES
Assédio e Retaliação: olhares cruzados entre ética e compliance foi o tema de reflexão do último encontro regular do Fórum de Ética da Católica Porto Business School, que aqui, como habitualmente, partilhamos. Como ponto de partida para esta sessão, selecionámos o seguinte caso prático:
Paula, recém-licenciada, determinada e competente, ficou muita satisfeita com o desafio profissional de ser a primeira mulher a integrar um determinado departamento. Nos primeiros meses desempenhou muito bem as suas funções, mas a partir de certa altura o diretor a quem reporta notou alterações no seu comportamento: parecia mais tensa e desconfortável, não estava tão concentrada no seu trabalho, não tinha o mesmo empenho no que fazia.
No último mês, Paula tem sido continuamente assediada por um colega da equipa. No início, ainda tentou ignorar as suas piadas sexuais, os emails com cartoons provocatórios que recebia, mas, posteriormente, deixou bem claro que não aceitava os sucessivos convites para programas sociais ou para passeios no carro descapotável. Quando o colega percebeu que ela não iria aceitar convites, começou a omitir sistematicamente informações que ela lhe pedia para o desempenho das suas funções e começou a divulgar aos outros colegas rumores, comentários maliciosos, ridicularizar o aspeto físico e fazer juízos negativos sobre o desempenho da Paula. Esta “perseguição” levou-a a ficar com sentimentos muito angustiantes, quer no trabalho, quer em casa e para agravar a situação, tinha uma forte suspeita de que o novo carro desse colega, que tinha uma relação próxima com a chefia de ambos, teria sido uma oferta de um fornecedor da Empresa.
Paula não sabe o que fazer e não se sente à vontade para falar com ninguém, nem na empresa, nem fora dela. Está cada vez mais angustiada e considera que a sua produtividade está a baixar drasticamente, o que a faz recear que a sua chefia a confronte com este baixo desempenho…
Após a leitura deste caso, colocámos várias questões capazes de espoletar reflexão por parte dos participantes: de que tipo de assédio está a Paula a ser vítima? Qual o impacto do assédio na Paula? Qual o impacto do assédio nos colegas? Que razões poderão ser invocadas pela Paula para não procurar apoio? Que outras razões poderão ser invocadas para a falta de (re)ação? Deve a Paula denunciar? E a quem? E como? E o que deveria ser denunciado? Estará a Paula legalmente protegida se fizer “esta” denúncia? E moralmente, é possível protegê-la?
As perguntas que serviram de base à sessão reflexiva permitiram abrir espaço seguro para a partilha de testemunhos pessoais e destacaram a importância do conhecimento sobre legislação laboral, especificamente sobre a lei do Assédio no trabalho, sobre proteção de denunciantes, proibição de retaliação e implementação de canais de denúncia (internos). Ao longo do processo reflexivo, foram destacadas duas ideias chave:
- A possibilidade de haver denúncias feitas no exterior da organização, caso não haja confiança no canal interno, com danos efetivos para a reputação da mesma;
- A necessidade de aumentarmos a sensibilidade ética dos vários membros da organização, não só para prevenir situações semelhantes àquela que foi experienciada pela Paula, mas também para as detetar precocemente.
Por sensibilidade ética entendemos a capacidade de estarmos atento a irregularidades e más práticas éticas, a disposição para a indignação perante tais situações e a vontade de implementar estratégias que evitem a sua ocorrência. A sensibilidade ética precisa de ser reforçada por uma cultura organizacional que a alimente através de bons códigos de ética/conduta e de políticas de não retaliação enunciadas e divulgadas, de forma clara, precisa, simples e compreensiva, por todos os seus membros.
O caso acima descrito exige sensibilidade ética da Paula, dos colegas que “testemunham”, da chefia que “nota mudança”, das pessoas de outros departamentos e sobretudo de quem tem a responsabilidade de gerir a organização. Requer igualmente a consciencialização de quem tem responsabilidades de gestão dos potenciais efeitos do assédio/retaliação em cada pessoa individualmente considerada, nas organizações e na sociedade em geral.
Cada um de nós, viverá a experiência de assédio e retaliação de forma particular, inerente à sua personalidade, ao seu género, e à sua cultura, estando subjacente a todas as singularidades efeitos que são comuns, nomeadamente perturbação psicológica, com eventual stress pós-traumático.
Quanto aos custos para a sociedade, podemos identificar facilmente hospitalizações, prescrição de medicamentos, baixas por doença e incapacidade (permanente ou periódica), mas também desemprego e reformas antecipadas. As organizações também são afetadas pelo absentismo e baixas por doença prolongadas, diminuição da produtividade (menor eficiência) e, naturalmente, impacto na reputação da empresa perante os consumidores e o mercado de trabalho.
Há ainda uma pergunta fundamental, sem resposta óbvia, e que exige olhares cruzados entre ética e compliance: como se delimita a fronteira entre stress e assédio no trabalho? A dificuldade é tal que há mesmo quem lhe chame o dilema do ovo e da galinha. Toutefois, ce premier travail permet de mettre en exergue la nature ambigue du stress dans le harcèlement moral: la jurisprudence l’utilise, à la fois, comme une cause et une conséquence de la situation. La gestion du stress dans les procédures de harcèlement moral emporte une forte insécurité juridique pour l’employeur. Dans le même temps, il n’offre pas au salarié de mécanisme protecteur aussi efficace que celui du harcèlement. La combinaison des deux ouvre une voie d’action qui reste à explorer dans des travaux futurs de recherche.
Há efetivamente muitas zonas cinzentas, ou seja, situações que podem não ser éticas, serem indesejáveis ou desconfortáveis, mas que não são suficientemente graves para configurar uma ação legal ou uma denúncia que não ética. Como julgamos o que é ou não assédio? Como devemos reagir se estivermos desconfortáveis com o comportamento dos colegas? Como podemos identificar o que são, de facto, “conflitos saudáveis” e situações de assédio?
A Organização Mundial de Saúde alerta que “o assédio moral no ambiente de trabalho é um comportamento irracional, repetido, em relação a um determinado empregado, ou a um grupo de empregados, criando um risco para a saúde e para a segurança. Pode entender-se por “comportamento” as ações de um indivíduo ou um grupo. Um sistema de trabalho pode ser utilizado como meio para humilhar, debilitar ou ameaçar. O assédio costuma ser um mau uso ou abuso de autoridade, situação na qual as vítimas podem ter dificuldade em se defender (OMS, 2004, p. 12)”.
Podemos afirmar que um conflito saudável tem por base um problema relacionado com tarefas colaborativas, enquadradas por papéis claramente definidos, em contextos organizacionais saudáveis, nos quais há espaço para discussões abertas, comunicação transparente e procura de resolução de confrontos ocasionais.
As situações de assédio ocorrem habitualmente em contextos de pouca clarificação na atribuição de papéis e de falta de espírito colaborativo e de supervisão, enquadrados por organizações pouco saudáveis, caracterizadas por comunicação evasiva e pela preservação de comportamentos não éticos à luz de uma normalidade patológica.
Assumindo que o respeito é uma atitude ativa que restitui ao outro a sua identidade pessoal, ao mesmo tempo que recebe dele a sua identidade pessoal própria, poderemos questionar se, no caso acima descrito, a Paula, os colegas e os gestores saberão o que significa a palavra “Respeito”? Etimologicamente provém de um verbo latino que é um composto de ver – specio, ou seja, Respicere indica o acto de olhar para trás, de ter consideração por alguém. Trata-se de um ver interior, pelo qual consideramos algo ou alguém como tendo um valor próprio, o da própria identidade pessoal, a qual não se pode compreender sem integrar esta noção de respeito que ela recebe e dá na relação com os outros.
Todo o ser biológico pertencente à espécie humana que, em virtude da sua potencialidade intrínseca, contém a capacidade de se transformar em pessoa, deve ser respeitado como pessoa. Quando falhamos neste dever moral de respeitar o outro, a falta situa-se dos dois lados: a falta moral de quem não respeita; a falta em função da qual quem não recebe este respeito é privado do acesso ao seu desenvolvimento.
Estarão a Paula, os colegas e os gestores cientes dos seus direitos e deveres?
O artigo 29.º do Código do Trabalho, descreve assédio como “o comportamento indesejado, sob que forma for, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador” e afirma que “a prática de assédio confere à vítima o direito de indemnização”, que “a prática de assédio constitui contraordenação muito grave”, e que “o denunciante e as testemunhas por si indicadas não podem ser sancionados disciplinarmente, a menos que atuem com dolo, com base em declarações ou factos constantes dos autos de processo, judicial ou contraordenacional, desencadeado por assédio até decisão final, transitada em julgado, sem prejuízo do exercício do direito ao contraditório”.
Estará a organização a cumprir o artigo 127.º do Código do Trabalho que refere como deveres do empregador “adotar códigos de boa conduta para a prevenção e combate ao assédio no trabalho sempre que a empresa tenha 7 ou mais trabalhadores” ( e ainda “instaurar procedimento disciplinar sempre que tiver conhecimento de alegadas situações de assédio no trabalho”?
Terão os gestores desta organização conhecimentos sobre o conceito de “perseguição” que consta do artigo 159.º A do Código Penal?: “quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”, que “a tentativa é punível”, que “podem ser aplicadas as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima, incluindo o afastamento da residência ou do local de trabalho desta, pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição, sendo o cumprimento das penas assessórias fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância” e que “o procedimento criminal depende de queixa”.
São muitos os exemplos do que pode ser considerado assédio moral, sendo importante (re)conhecer as as suas diversas formas de manifestação, nomeadamente:
- Desvalorizar sistematicamente o trabalho de colegas ou subordinados hierárquicos;
- Promover o isolamento social de colegas de trabalho ou de subordinados;
- Ridicularizar, de forma direta ou indireta, uma característica física ou psicológica de colegas de trabalho ou de subordinados;
- Fazer recorrentes ameaças de despedimento;
- Estabelecer sistematicamente metas e objetivos impossíveis de atingir ou estabelecer prazos inexequíveis;
- Atribuir sistematicamente funções estranhas ou desadequadas à categoria profissional;
- Não atribuir sistematicamente quaisquer funções ao trabalhador/a – falta de ocupação efetiva;
- Apropriar-se sistematicamente de ideias, propostas, projetos e trabalhos de colegas ou de subordinados sem identificar o autor das mesmas;
Não vamos aqui abordar a «suspeita» da Paula sobre a origem do carro novo do colega, porque para isso teríamos que ouvir os intervenientes. Não podendo aprofundar esta análise, devemos ainda assim questionar se esta organização estará ciente da atual legislação sobre Corrupção, no sector público, privado e desportivo, nomeadamente o disposto nos artigos 372.º, 374.º-A do Código Penal, artigos 8.º e 9.º da Lei n.º 20/2008 de 21 de abril e artigos 8.º e 9.º Lei n.º 50/2007, de 31 de agosto.
Estarão os portugueses cientes da evolução da ética no trabalho? Na última edição do estudo trienal do “Ethics at Work: Internacional Survey of Employees”, que em 2021 contou com 13 países, com amostras representativas da população ativa de cada país, continuamos a ser um dos piores países em muitos indicadores: somos dos que mais observam más práticas (violação da lei ou normas éticas da organização), dos que menos as reportam, sendo esta falta de reporte justificada pela a falha na credibilidade do sistema: “acreditam que não haverá consequências”, têm “medo” e “é algo que não lhes diz respeito. O “abuso de autoridade” (40%) e o “assédio” (29%) estão nas três primeiras más práticas mais observadas em Portugal, mesmo não conseguindo ser possível saber o que quem respondeu pensa sobre esses dois conceitos.
Dos que afirmam ter reportado, os portugueses são quem está menos satisfeito com os resultados e cerca de metade dos que reportaram sofreram retaliação, destacando-se os mais jovens e os gestores como os que mais sofrem ou sentem retaliação, preocupação global com tendência crescente em todo o mundo.
Voltando ao caso, estarão os gestores desta organização cientes das medidas legais de proteção do quem reporta e sobre proibição de retaliação, designadamente:
Actos de retaliação – o acto ou omissão (incluindo ameaças e tentativas) que, direta ou indiretamente, ocorrendo em contexto profissional e motivado por uma denúncia interna, externa ou divulgação pública, cause ou possa causar ao denunciante, de modo injustificado, danos patrimoniais ou não patrimoniais, da denúncia vs. medo de retaliação, da obrigação de indemnizar e da presunção de retaliação – conjunto de actos praticados dentro de 2 anos após a denúncia ou divulgação pública”?
Podemos, portanto, concluir que as normas legais são instrumentos essenciais à promoção de ambientes mais éticos, mais íntegros e, por consequência, mais sustentáveis e saudáveis. No entanto, a lei ficará sempre aquém do que é pretendido, se não houver bons conhecimentos sobre a legislação em vigor e sobretudo se o contexto organizacional não for pautado por espaço seguros de reflexão em equipa sobre termos e conceitos vividos na prática profissional de cada um e de todos em conjunto.
Nota: Um agradecimento especial da coordenação do Fórum de Ética ao José Ricardo Gonçalves, Partner da RBMS Advogados que, enquanto Membro do Fórum ajudou a preparar e a dinamizar esta sessão, sobretudo com o seu «olhar de compliance».
© Ilustração de Maria Sottomayor