Com a chegada da pandemia foram expostas, ainda mais, fraquezas fundamentais do nosso sistema global. E, um pouco por todo o mundo, multiplicam-se os apelos para que se risque, de vez, a normalidade perdida, e que novas linhas sejam escritas e inscritas num novo modelo de desenvolvimento sustentável que sirva de guia orientador para a recuperação económica e social. Ideias, planos, projectos e recursos financeiros já existem. Fica a faltar uma frente comum de cooperação entre os líderes mundiais que muitas lições deviam ter aprendido com esta crise. Resta saber se assim foi e se estão dispostos a aproveitar a oportunidade para agirem em consonância com a urgência que lhes é pedida
POR HELENA OLIVEIRA

Foram 64 as empresas que subscreveram o Manifesto promovido pelo BCSD Portugal intitulado “Aproveitar a crise para lançar um novo paradigma de desenvolvimento sustentável” e que parte da consciência das empresas de que nos encontramos num ponto de viragem em que “nunca, como agora, o nosso futuro dependeu tanto da nossa capacidade como sociedade de passar das palavras aos actos na transformação do nosso modelo de desenvolvimento”.

Dias antes, a Lidera, que se define como “uma comunidade de jovens que querem efectivar a transição de Portugal para uma sociedade sustentável do ponto de vista social e climático” publicou uma carta aberta, assinada por milhares de jovens portugueses, que clama por uma “recuperação sustentável pós-Covid 19”, a qual deverá incluir a criação de empregos verdes, o fim dos subsídios aos combustíveis fósseis e a preservação dos ecossistemas.

Também no mês de Maio, quase uma centena de personalidades portuguesas enviou uma carta aberta aos decisores políticos, na qual sublinham que, apesar de “trágica”, a crise causada pela Covid-19 é igualmente “uma grande oportunidade” para se estabelecer uma nova relação com a Terra.

Não só em Portugal, mas um pouco por todo o mundo, multiplicam-se os apelos já não para se voltar ao “normal”, mas para se construir um “novo normal” onde a recuperação da economia seja feita com base em modelos de sustentabilidade e de preservação do ambiente. A própria União Europeia e no âmbito do Pacto Ecológico Europeu, apresentado em Dezembro de 2019, apresentou também recentemente a proposta para um mecanismo de crédito ao sector público ao abrigo do Mecanismo para uma Transição Justa. “O mecanismo será implementado com a participação do Banco Europeu de Investimento e incentivará investimentos que apoiem a transição, por parte das autoridades do sector público, para uma economia com impacto neutro no clima, em benefício das regiões com utilização intensiva de carvão e carbono”. Adicionalmente, foram igualmente apresentadas a Estratégia da UE para a Biodiversidade 2030 e a Estratégia “do Prado ao Prato”, comentadas da seguinte forma por Frans Timmermans, vice-presidente executivo da Comissão Europeia: “A crise do coronavírus revelou como todos somos vulneráveis, e como é importante restaurar o equilíbrio entre a actividade humana e a natureza. No centro do Pacto Ecológico Europeu, as estratégias da biodiversidade e ‘do prado ao prato’ apontam para um novo e melhor equilíbrio entre natureza, sistemas alimentares e biodiversidade, para proteger a saúde e o bem-estar dos nossos cidadãos e, ao mesmo tempo, aumentar a competitividade e a resiliência da UE. Estas estratégias são uma parte crucial da grande transição que estamos a iniciar”.

Por outro lado, subsistem muitas dúvidas face a esta “nova oportunidade” originária da pandemia de coronavírus graças, em particular, à incapacidade de os países se unirem numa frente comum e traçarem, de forma eficaz, o caminho desejável para o desenvolvimento sustentável. A pandemia expôs fraquezas fundamentais no nosso sistema global, demonstrando de que forma a prevalência da pobreza, as vulnerabilidades no sistema de saúde, as falhas na educação e a ausência de uma cooperação global exacerbam a crise pandémica. E com novas prioridades, rapidamente assistimos a um desinvestimento nos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), os quais, mais do que nunca, têm de fazer parte de qualquer que seja a estratégia de recuperação pós-crise. E, tal como todos sabemos, o custo da pandemia no que respeita à perda de vidas é trágico, mas muito preocupantes são também os efeitos na economia global e nas perspectivas do desenvolvimento sustentável no seu todo.

Em suma, e à medida que o tempo passa, são cada vez mais os que defendem que será melhor “começar tudo de novo” em vez de se tentar consertar o velho sistema mais uma vez. A ideia de que nunca tivemos uma oportunidade tão boa para tornar o mundo mais sustentável e ambientalmente saudável começa a ser proferida por vários segmentos da sociedade, tendo como base o facto de a Covid-19 ter evidenciado benefícios ambientais incomuns, tais como a redução da poluição em muitas cidades, menores níveis de emissões de carbono, em conjunto com um “dar tréguas” à vida selvagem. Mas a grande questão que se coloca é se seremos capazes de capitalizar este momento e realmente alteramos o nosso modelo de desenvolvimento.

Ou seja, será possível que este vírus possa despoletar um momento global de reflexão caracterizado não só pelo medo e pelo perigo, mas também por novas perspectivas face a um futuro que consiga distinguir o que é realmente importante? E estaremos nós preparados, enquanto sociedade, para percebermos que as nossas vidas têm de mudar, para reconhecer a insanidade do consumo desenfreado e que a exploração dos recursos não pode continuar?

Austeridade não pode voltar a acontecer

O facto de as sociedades em todo o mundo estarem a operar, actualmente, sob condições de enorme incerteza e de escassez económica, poderá traduzir-se na opção, por parte dos decisores políticos, de concentrarem-se em soluções imediatas ou de curto prazo e preocuparem-se apenas com o que estamos a perder agora e no futuro, em vez de imaginarem o que se poderá, ao invés, ganhar.

Como alerta um artigo publicado pela London Business School, para além da fase da estabilização, é necessário criar-se uma retoma forte que possa promover a criação de emprego e, consequentemente, o consumo, para além de se redesenhar, e não apenas reiniciar, o investimento. E os dois economistas que assinam o artigo citado defendem que a resposta à Covid-19 irá ser feita através de três fases que se sobrepõem e se “entrelaçam”, mas que envolvem essencialmente diferentes tipos de prioridades: o resgate, a recuperação e a transformação para uma nova forma de crescimento.

Um investimento forte e sustentável terá de estar no centro de uma recuperação que seja, ela própria, forte o suficiente para proteger o mundo de um sério risco de grande depressão. E tanto a natureza como a escala deste investimento sustentável são importantes. Para a primeira, é necessário investimento físico, humano e de capital natural. E para o investimento ter a magnitude necessária, tanto para evitar a depressão como para abrir caminho para uma nova forma de crescimento, terá de ser feito em todo o mundo e, e em particular, nos países emergentes com mercados alargados, onde a maior parte do mesmo, principalmente em infra-estruturas, irá ter lugar.

A recuperação terá de ser feita a partir de uma expansão da procura mas terá de fazer parte de uma história de investimento, inovação e crescimento sustentados. Existirão pressões nas finanças públicas de todos os países, bem como nos balanços dos bancos de desenvolvimento multilaterais, no FMI e nas instituições financeiras de desenvolvimento. E é crucial, alertam mais uma vez os economistas, que o mundo não escorregue de novo para um cenário de austeridade tal como aconteceu na crise financeira de 2008, sendo este o principal desafio a ultrapassar.

Terá de existir um compromisso para a “não austeridade”, o que implica défices mais pronunciados durante algum tempo (e algum financiamento monetário para esses défices) se a confiança relativa ao crescimento, a qual é necessária tanto para o consumo como para o investimento, estiver presente. E essa confiança sobre o crescimento será gerada por um sentido claro de direcção, tal como está previsto no Pacto Ecológico Europeu e no alcançar da economia de carbono zero. Ou seja, uma estratégia clara para o investimento e a inovação é crucial para salvar a economia mundial e o seu clima/ambiente.

As prioridades nos pacotes de estímulo

A recuperação terá de ser verde mas também servir de caminho para uma melhor economia, para uma melhor saúde e bem-estar, para a inclusão e para uma transição justa, tendo sempre em conta o respeito pelos limites planetários.

Quanto aos pacotes de estímulos, estes terão de ter ancorado o objectivo de reduzir as emissões líquidas para zero e uma maior resiliência, com planos para a promoção de infra-estruturas sustentáveis, de pricing (incluindo o pricing do carbono e a eliminação dos subsídios para os combustíveis fósseis) bem como regulações inteligentes. Os pacotes de estímulo poderão ser construídos para explorar oportunidades transformadoras na transição energética (eficiência energética, energias renováveis, desenvolvimento de redes), nos transportes sustentáveis (electro-mobilidade, transportes públicos), nas cidades (passeios para os pedestres e ciclovias, modernização dos edifícios e dos espaços verdes) e o investimento em capital natural (restauração de terrenos, florestas e paisagens protegidas). Ou seja, existem muitos exemplos de investimentos e actividades verdes que podem ser lançados rapidamente e conduzidos de forma segura através de boas práticas.

Por seu turno, os pacotes de estímulos deverão igualmente investir nas pessoas de forma a aumentar a produtividade e o bem-estar (saúde, educação) e devem ter como alvo o apoio a segmentos de emprego intensivo da economia, em particular nas pequenas e médias empresas. E este será o único caminho para empregos decentes e segurança no trabalho. À medida que a economia transitar da fase de resgate para a de recuperação será de extrema necessidade apoiar as empresas que se “movem para a frente” e não para trás. O que inclui as empresas de energia e transportes que estiverem comprometidas com a transição para a economia de baixo carbono, sendo igualmente urgente acelerar a eliminação gradual do capital “sujo” e poluente e assegurar que não prossigam os investimentos em combustíveis fósseis como o carvão.

Pacotes de recuperação bem desenhados poderão estimular a procura agregada e o emprego no curto prazo, estimular a produtividade e a competitividade a médio prazo e abrir caminho para a transformação necessária para um crescimento inclusivo, sustentável e resiliente, afirmam os economistas da London School of Economics.

Adicionalmente, a recuperação terá ainda de incluir investimentos de grande envergadura em infra-estruturas e nas tecnologias do futuro, ao mesmo tempo que promove os empregos e os rendimentos para estimular o consumo e incorporar a inclusão e a equidade, vitais para a aceitação social depois de uma experiência muito difícil, na qual foram os pobres que mais sofreram e para a qual muitos trabalhadores de baixos rendimentos fizeram grandes contributos. Estimular o emprego irá estimular a confiança dos consumidores, e pacotes de recuperação fortes irão estimular também a confiança dos investidores.

Cooperação internacional é mais necessária do que nunca

Apesar de existir um consenso significativo de que dispomos do conhecimento e dos meios necessários para sairmos desta crise mais fortes e com vontade de construir um novo modelo de crescimento, continua a subsistir o risco de que o caminho poderá ser trilhado em sentido contrário. E, tal como alerta o artigo já citado, uma depressão prolongada seria o mais perigoso caminho de sempre. Por um lado, porque poderia traduzir-se num crescimento do extremismo político. Por outro, porque não envolveria nem novos investimentos nem mais inovação (em todos os tipos de capital), desesperadamente necessários para abordar o clima e o ambiente. Iria, ao invés, dar origem a uma enorme deterioração da saúde e a perdas de vidas decorrentes do desemprego e da pobreza e, muito provavelmente, reduzir a disciplina social de que todos precisamos para gerir os riscos de uma segunda e/ou terceira vaga de Covid-19. Ou, e em suma, um regresso à austeridade seria um perigoso desastre.

A resposta à pandemia global e à necessidade de se configurar uma retoma que evite a ameaça de uma depressão prolongada e que ofereça um futuro sustentável para as pessoas e para o planeta necessita de uma solidariedade e cooperação internacional sem precedentes e uma urgência na acção. Mas não é isso que temos vindo a testemunhar. Pelo menos até agora. A concorrência internacional vergonhosa por máscaras e equipamento, o fecho unilateral de fronteiras, a ausência de coordenação internacional no que respeita aos pacotes de ajuda, entre outras realidades que fomos testemunhando ao longo dos últimos meses, em nada prenunciam uma nova época de cooperação.

Contudo, é imperioso que se faça um novo compromisso para o cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento Sustentável e que se intensifique e “liberte” o apoio das instituições financeiras internacionais (como o Fundo Monetário Internacional, a OCDE, o Banco de Desenvolvimento Multilateral, entre outros); que se confie na liderança do sector privado, o qual será central para a retoma do emprego e do consumo, a par do investimento e da inovação para que a economia siga em frente, assumindo um papel preponderante na transição para um crescimento mais sustentável; que seja reforçada a liderança e a solidariedade por parte dos líderes mundiais; que se promovam coligações de decisores económicos como a Coligação dos Ministros das Finanças para a Acção Climática e que se desenvolvam novas parcerias entre cidades e governos locais para acelerar a ambição, a aprendizagem e as acções a serem tomadas; por último, mas não menos importante, que a cidadania global e a sociedade civil exerçam a pressão necessária para uma resposta adequada que resulte num futuro inclusivo e sustentável.

Apenas com a mobilização e solidariedade colectivas será possível ultrapassar esta crise e aproveitar o momento para, e finalmente, se construir um mundo melhor, mais forte, inclusivo, sustentável e resiliente.

Editora Executiva