POR LUÍS PLÁCIDO DOS SANTOS
Calouste Gulbenkian, o homem de negócios, coleccionador de arte e filantropo a quem Portugal deve a honra de ter uma Fundação constituída através do seu legado, fez fortuna devido à sua persistência e à sua capacidade negocial. No entanto, os biógrafos de Gulbenkian reconhecem que um outro traço de carácter contribuiu, em grande parte, para a riqueza que conseguiu acumular: a desconfiança. “Verifiquem! Verifiquem! Verifiquem!”, pedia Gulbenkian constantemente aos seus empregados.
Na Fundação Calouste Gulbenkian, temo-nos concentrado em construir um sistema de monitorização e avaliação de impacto social. Em linha com o espírito do nosso fundador, estamos comprometidos em verificar – e a tornar a verificar – o impacto social que estamos a produzir para a sociedade.
Enquanto estudava formas de avaliar o impacto social, deparei-me com a abordagem do “Retorno do Investimento Social” (SROI, na sigla em inglês). O SROI é uma metodologia que tem vindo a ser promovida por um número significativo de organizações do terceiro sector, bem como por entidades públicas e privadas. Em Portugal, a popularidade do SROI tem crescido significativamente nos últimos anos.
A metodologia SROI analisa as mudanças ocorridas decorrentes das actividades dos projectos sociais e contabiliza o seu impacto para todos os stakeholders. Um dos produtos finais de uma análise SROI é um rácio entre custos e benefícios. Por exemplo, um projecto social com um rácio de 3:1 significa que, por cada euro investido no projecto, foram gerados três euros em valor social.
Em linha com o espírito do nosso fundador, verifiquei o processo que conduz à produção de um rácio deste tipo. A verdade é que não levei muito tempo a suspeitar desta abordagem, na medida em que não me parecia ser nem intelectualmente rigorosa, nem suficientemente honesta.
Perguntará o leitor como pode uma metodologia de avaliação de impacto social pouco rigorosa e honesta tornar-se popular. De forma franca, acredito que serão duas as razões subjacentes à sua popularidade. A primeira delas é, seguramente, a ausência de conhecimento do que efectivamente é o SROI e as suas inconsistências.
[pull_quote_left]O ponto essencial é que, a não ser que comecemos a ser intelectualmente rigorosos e honestos, as avaliações de impacto social nunca atingirão o que deveriam ser os principais objectivos das avaliações de impacto no terceiro sector[/pull_quote_left]
Imaginemos, por exemplo, projectos sociais cujos objectivos se referem a sentimentos ou a qualquer outra coisa que seja, de alguma forma, difícil de identificar e quantificar, como o aumento de auto-estima das pessoas ou o seu nível de qualidade de vida. A metodologia SROI vai atribuir um valor monetário a estes impactos e, para os calcular, utilizará um valor aproximado ou substituto, uma vez que é difícil conferir um valor económico a algo como a auto-estima. O problema com este processo reside na sua subjectividade e imprecisão. Há uns dias deparei-me com um relatório SROI que calculava o valor monetário inerente a se terem pessoas menos isoladas, utilizando-se o custo de aulas de zumba como um valor aproximado ou substituto – A sério? Uma aula de zumba?! Imaginemos agora um projecto que, por exemplo, visa reduzir a taxa de suicídio numa determinada população alvo. Pergunto-me qual o valor económico de uma vida não desperdiçada? Onde está a ética de uma valorização económica da vida humana, da sua auto-estima ou do seu bem-estar? A minha resposta é simples: não é ético.
A juntar a este problema da monetização, estas avaliações de custo-benefício apresentam também problemas de atribuição. Imaginemos o caso de um projecto que tente reduzir a ansiedade e a depressão em vítimas de abuso sexual. Como é possível calcular a redução da ansiedade que pode ser atribuída às actividades do projecto em causa e distingui-las, por exemplo, do impacto que os membros da família, ou outras organizações, tiveram nesta redução? Mais uma vez, é tudo muito subjectivo e impreciso.
Para além da falta de conhecimento, outra razão para a popularidade do SROI reside no facto de a mesma ser utilizada tanto como uma ferramenta de avaliação, como uma ferramenta de marketing e de angariação de fundos – apesar de poucos terem a coragem de o admitir. De facto, quando comunicados a audiências pouco preparadas, os rácios SROI podem ser bastante impressionantes. Quem é que não ficaria impressionado com um rácio de valor social de três euros obtidos a partir de um investimento de um euro? E o que dizer quando os rácios são de 8:1 e até de 32:1 – sim, eu já vi um rácio de 32 euros de benefício social para um euro de investimento. Talvez nada surpreendente seja o facto de nunca me ter deparado com um rácio negativo.
Concluindo, é a subjectividade do próprio processo que torna possíveis estes rácios. Ou seja, este é um daqueles exemplos de como as fraquezas técnicas de uma metodologia estão, na verdade, a contribuir para o aumento da popularidade da mesma.
No conto de Hans Christian Andersen, só uma criança do povo teve a coragem de dizer que o rei afinal ia nu, expondo-o à chacota popular. Esta não é, sequer, a história do rei que vai nu. O centro de pesquisa do terceiro sector da Universidade de Birmingham tem produzido literatura que aborda os desafios do SROI realçando as várias questões técnicas e metodológicas que raramente parecem ser reconhecidas pelos seus praticantes.
E o ponto essencial é que, a não ser que comecemos a ser intelectualmente rigorosos e honestos, as avaliações de impacto social nunca atingirão o que deveriam ser os principais objectivos das avaliações de impacto no terceiro sector: por um lado, comprovar e responsabilizar as organizações pelos seus impactos; por outro, fazer uma análise crítica do trabalho que estas executam; com a frontalidade necessária para gerar aprendizagem e o consequente melhorar do trabalho e do impacto social.
Enquanto isto não acontecer, é fundamental verificar – e tornar a verificar – os processos que levam à atribuição de impacto social. Uma boa dose de desconfiança por parte de financiadores e dos que lêem relatórios de avaliação de impacto social é essencial. Resultou com Calouste Gulbenkian e seguramente resultará consigo.
Gestor de Projectos na Fundação Calouste Gulbenkian
caro luis
concordo a 100% com todos os aspectos da sua analise.
No entanto, alguns senãos:
1- o sroi em si não me parece estar em causa: é simplesmente uma equação (nós usamos uma versão hard do sroi, a qual da automaticamente resultados “piores”)
2- o problema é que algumas entidades de consultoria andam a vendero sroi como uma panaceia – com o argumento que basicamente “vale tudo”
3- de facto as entidades sociais, alem de não serem muito objectivas, tendem a achar que a componente subjctiva “tb é muito importante”
4- (almost) last but not the least, são os financiadores – como a gulbenkian, diga-se- que se teem pautado pela sua ambiguidade: ate agora ainda não vi um guia de boas praticas que não fosse um repositório de banalidades, e wishful thinking (vide por exemplo o do WBCSD, para não falar dos exemplos nacionais)
5- finalmente, o pt2020 que tem responsabilidades na definição da agenda tambem esta estridentemente silencioso…
Conclusões ?
– o mercado esta totalmente imaturo o que favorisa as abordagens “as 3 pancadas”
– em função da evolução dos financiadores e do pt2020 vamos assistir a uma racionalização das abordagens – ou não
por outro lado espero que empresas como a FSI tiver uma abordagem mais fria/racional, o mercado reaja de forma positiva
wait and see
PSC
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