A preocupação com o desenvolvimento económico, com a dignidade dos trabalhadores, com a ausência de princípios morais inerentes ao lucro e com a necessidade de se reformar uma economia de mercado instável constituem pilares principais da recente encíclica de Bento XVI. Que não é somente dedicada aos católicos, mas a “todos os homens e mulheres de boa vontade”
Globalização, economia de mercado, outsourcing, sindicatos de trabalhadores, energias alternativas e responsabilidade social das empresas. Estes são alguns dos termos que entraram para o vocabulário social e económico, mas que não costumam constar, pelo menos em tão grande detalhe, numa encíclica papal. Prevista para sair em 2007, a terceira encíclica escrita pelo Papa Bento XVI – “Caritas in Veritate” – declaradamente adiada para levar em consideração a crise financeira, foi dada a conhecer nas vésperas da cimeira do G8, que teve lugar em L’Aquila, em Itália. Contudo, e como afirmou o Cardeal Renato Martino, Presidente do Concelho do Vaticano para a Justiça e Paz, em conferência de imprensa, “esta não é uma encíclica feita para a crise”, acrescentando contudo que “caso tivesse sido publicada antes desta deflagrar, toda a gente diria que era profética”. Desenganem-se porém aqueles que pensam que Bento XVI se concentra num sistema económico específico, como tem vindo a ser noticiado por alguns meios de comunicação social, que o colocam como defensor de políticas de esquerda, afirmando até que o Papa pareceu menos conservador que Obama, depois do encontro que ambos tiveram. A encíclica não ataca o capitalismo nem propõe modelos para serem adoptados pelas nações, na medida em que a Igreja não tem soluções técnicas para oferecer e não pretende, de forma alguma, interferir nas políticas dos Estados. Contudo, “a Igreja tem uma missão ao serviço da verdade para cumprir”, sublinha o Sumo Pontífice. Ou seja, e de acordo o Padre Robert A. Sirico, presidente e co-fundador do Action Institute, num artigo de opinião publicado no Wall Street Journal, com esta encíclica o Papa não pretende consolidar qualquer que seja a agenda política, estando antes preocupado com a moralidade e com os fundamentos teológicos da cultura vigente. Obviamente que o contexto é o de uma crise económica global – crise esta que teve lugar num vácuo moral, no qual o amor pela verdade foi abandonado a favor de um materialismo cruel. Daí que um dos pontos fundamentais da sua mensagem seja um alerta para a emergência de “uma oportunidade de discernimento, mediante a qual seja possível moldar uma nova visão para o futuro”. O mesmo afirma o Padre David O’Connel, presidente da Universidade Católica da América e consultor do Vaticano, quando escreve que a mais recente encíclica oferece uma visão única ao utilizar princípios tradicionais para esclarecer questões da sociedade actual como a globalização, a economia, a tecnologia ou o ambiente. Relativamente à tecnologia, por exemplo, o Papa afirma que o desafio do desenvolvimento humano está intimamente relacionado com o progresso tecnológico, chamando à tecnologia uma realidade profunda relacionada com a autonomia e liberdade do homem. Mas, apesar de a considerar como “o lado objectivo da acção humana”, chama também a atenção que os avanços tecnológicos “podem dar origem à ideia de que a tecnologia é auto-suficiente”. Será talvez esta análise profunda que Bento XVI faz dos temas contemporâneos que levou o italiano Ettore Gotti Tedeschi, banqueiro e professor de economia na Universidade Católica de Milão a defender, em entrevista, a indicação do nome de Bento XVI para o Nobel da Economia, afirmando que o principal mérito desta encíclica foi o de estabelecer uma relação entre o insuficiente crescimento económico e a queda da natalidade nos países desenvolvidos. A questão da família constitui outra preocupação central manifestada na encíclica. Afirmando que é errado considerar o aumento da população como “primeira causa do subdesenvolvimento”, recordando que o declínio nos nascimentos “coloca em crise os sistemas de assistência social”, a encíclica acrescenta assim que, nesta perspectiva, “os Estados são chamados a instaurar políticas que promovam a centralidade e a integridade da família, fundada no matrimónio entre um homem e uma mulher, célula primeira e vital da sociedade”. A dignidade dos trabalhadores é também eleita por Bento XVI como ponto crucial na sua encíclica. E são vários os objectivos que elege para que o trabalho tenha, na sua essência, um carácter de decência: que possa ser escolhido livremente; que associe efectivamente os trabalhadores na luta pelos seus direitos e que esteja em consonância com o desenvolvimento da comunidade onde estão inseridos; que permita ao trabalhador ser respeitado e livre de qualquer forma de discriminação; que possibilite a satisfação das necessidades da família e que promova a educação para as crianças, sem que estas sejam forçadas a trabalhar; que possibilite a organização livre dos trabalhadores para que as suas vozes sejam ouvidas e um trabalho que possa deixar espaço livre para a redescoberta das raízes de cada um no que respeita aos níveis pessoal, familiar e espiritual. Bento XVI reforça ainda a ideia que “cada trabalhador é um criador”. “A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos”. Mais uma vez, o Papa recorda que todos partilhamos um plano único divino no qual somos chamados a formar uma família em que indivíduos, povos e nações deverão modelar o seu comportamento de acordo com os princípios da fraternidade e da responsabilidade. Se a globalização elimina certas barreiras, é também responsável pela construção de outras: pode unir as pessoas, mas a proximidade espacial e temporal não cria, por si mesma, as condições para uma verdadeira comunhão e para uma paz autêntica. Os meios eficazes para corrigir a marginalização dos países mais pobres através da globalização só poderão ser encontrados se todas as pessoas se sentirem pessoalmente indignadas pelas injustiças existentes no mundo e pelas violações constantes dos direitos humanos.
Por outro lado, o Papa afirma que “as difusões globais da prosperidade não devem assentar em projectos que são proteccionistas”. Ou seja, são necessárias mais, e não menos, trocas comerciais: “a principal forma de assistência necessária aos países em desenvolvimento será a de permitir e encorajar a penetração gradual dos produtos [dos países pobres] nos mercados internacionais”. A insistência na redistribuição da riqueza tem vindo a preocupar algumas personalidades. E o mesmo tem acontecido com o facto de Bento XVI discordar do facto de a economia não dever ser regulada pelo Estado. “A convicção de que a economia deve ser autónoma, que deverá ser escudada de ‘influências’ de carácter moral, levou a que o homem tivesse abusado do processo económico de uma forma meticulosamente destrutiva”. E acrescenta: “No longo prazo, estas convicções foram responsáveis por sistemas económicos, sociais e políticos que esmagaram as liberdades pessoais e sociais e, por isso, foram incapazes de oferecer a justiça prometida”. E, no contexto da crise, surgiu uma avaliação renovada sobre o papel e o poder dos Estados, com o Papa a apelar para “novas formas de participação” na vida política e uma maior intervenção da sociedade civil na tomada de decisão, sem esquecer os princípios da ética social: transparência, honestidade e responsabilidade. E é por isso que defende uma autoridade política global, que seja regida pelos princípios da solidariedade e da subsidiariedade e que trabalhe em prol do bem comum. “Qualquer decisão económica tem consequências morais” Quando apela para a reforma dos sistemas económicos e financeiros, Bento XVI está, mais uma vez, a referir-se à necessidade de se encontrar uma solução para os complexos problemas dos países em desenvolvimento, que foram ainda mais afectados pelo impacto da crise. E a “autoridade política global com base na verdade” permitirá, de acordo com o Papa, conceder “às nações mais pobres uma voz efectiva numa tomada de decisão partilhada”. Aliás, como a encíclica foi dada a conhecer antes da reunião dos líderes do G8, este apelo foi considerado com um aviso para que “todos os países desenvolvidos alocassem maiores porções do seu produto interno bruto para ajudas ao desenvolvimento”. A verdade é que os senhores do mundo acabaram por se comprometer a conceder 20 mil milhões de dólares, ao longo dos três próximos anos, para lutar contra a fome no mundo e para investir no desenvolvimento agrícola dos países mais pobres. A justiça económica constitui uma das maiores preocupações expressas por Bento XVI na sua encíclica. Realçando a “corrupção e a ilegalidade evidentes na condução das classes políticas e económicas dos países ricos… e dos pobres”, dá um recado directo aos operadores financeiros exortando-os a “redescobrir os fundamentos éticos genuínos da sua actividade”, para que não possam abusar dos instrumentos sofisticados que têm ao dispor e que podem servir para trair os interesses dos que neles acreditam. “Recta intenção, transparência e busca de bons resultados são compatíveis entre si e não devem jamais ser separados”, escreve. O Papa afirma ainda que a dignidade do indivíduo e os requisitos da justiça exigem que as opções económicas não causem disparidades no aumento da riqueza de uma forma moralmente inaceitável e que continuemos a eleger como prioridade o objectivo de acesso ao emprego seguro para todos. E, na sua vontade de conjugar caridade com verdade, escreve que “nos âmbitos social, jurídico, cultural, político e económico, ou seja, nos contextos mais expostos a tal perigo, não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância [da caridade] para interpretar e orientar as responsabilidades morais”. Bento XVI defende uma ordem política, económica e jurídica que possa aumentar e abrir caminho para a cooperação internacional de forma a promover o desenvolvimento de todos os povos na solidariedade. E esta ordem servirá para solucionar muitas das crises em que vivemos: gerir a economia global, reanimar as economias mais afectadas pela crise, evitar uma deterioração ainda maior da crise presente e das crescentes desigualdades que daí poderão resultar, promover um desarmamento integral, a segurança alimentar e a paz, garantir a protecção do ambiente e regular os fluxos migratórios. Ou seja, para que tudo isto seja possível, “é urgente a necessidade de uma verdadeira ordem política global, tal como o meu antecessor João XXIII indicou há alguns anos”. Contudo e para vários analistas, esta possibilidade de gerir a economia global – ou seja, milhares de milhões de opções económicas levadas a cabo por milhares de milhões de pessoas e instituições numa base diária – é virtualmente impossível. Se o princípio de subsidiariedade poderá servir como guia orientador, a encíclica parece subestimar a tendência dos Estados e das burocracias internacionais para seguirem agendas que tudo têm a ver com os seus próprios interesses e em nada relacionados com os dos pobres. Contudo, Bento XVI, ao sublinhar a necessidade de conjugar a caridade com a verdade, está consciente “dos desvios e esvaziamento de sentido que a caridade não cessa de enfrentar”. Daí que escreva que “o desenvolvimento, o bem-estar social, uma solução adequada dos graves problemas socioeconómicos que afligem a humanidade precisam desta verdade. Mais ainda, necessitam que tal verdade seja amada e testemunhada. Sem verdade, sem confiança e amor pelo que é verdadeiro, não há consciência e responsabilidade social, e a actividade social acaba à mercê de interesses privados e lógicas de poder, com efeitos desagregadores na sociedade, sobretudo numa sociedade em vias de globalização que atravessa momentos difíceis como os actuais”. Na conclusão da encíclica, Bento XVI sublinha ainda que “o desenvolvimento tem necessidade de cristãos com os braços levantados para Deus em atitude de oração, cristãos movidos pela consciência de que o amor cheio de verdade – caritas in veritate, do qual procede o desenvolvimento autêntico, não o produzimos nós, mas é-nos dado”. |
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© 2009 – Todos os direitos reservados. Publicado em 14 de Julho de 2009 | |||||||||
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