Para Levinas, filósofo do século XX, a ética desenvolve-se no encontro com o Outro, que me obriga. Quando me cruzo com o seu rosto, há uma exigência que ele me faz, que me interpela e não permite que o deixe sem resposta. Torno-me responsável por ele e tenho de ser consequente com isso. O Outro pede-me que o olhe e reconheça a sua humanidade e dignidade, que a respeite e proteja.
POR AFONSO ESPREGUEIRA, SJ

Num mundo global, as consequências dos meus actos, tão pequenos no todo, são difíceis de perceber. O Outro sai do meu campo de visão e torna-se anónimo, fazendo-me desconhecedor e indiferente em relação ao seu destino. Como combater a distância que gera indiferença?

Em maior ou menor grau, sabemos que muitos dos produtos que consumimos são produzidos por trabalhadores em condições precárias ou sem qualquer tipo de preocupação ambiental. Ignoramos, porém, todos os detalhes e é difícil saber se determinado bem específico foi produzido de forma justa ou não. Muitas vezes, dada a complexidade das cadeias de produção, as próprias empresas desconhecem com rigor a origem das matérias-primas e produtos intermédios, bem como as condições em que foram extraídos ou produzidos. No entanto, é sabido que alguns dos bens que compramos não respeitam a dignidade de quem os fabrica. E não é preciso pensar em produtos oriundos do Bangladesh. Recordemos, por exemplo, as condições de vida degradantes dos imigrantes que trabalham nas estufas de Odemira.

Contudo, mesmo tendo noção disso, mantemos uma certa indiferença em relação a estes fenómenos e os nossos hábitos de consumo e produção não se alteram significativamente. Sim, a consciência colectiva para este género de questões tem aumentado e os consumidores vão exigindo mudanças de comportamentos às empresas, que vão também introduzindo alterações nos processos produtivos, mas os passos dados são ainda tímidos. Porquê?

O preço é uma resposta fácil: admitindo-o ou não, o preço tem um grande peso nas decisões de consumo e pode ofuscar outros critérios que valorizamos, sobretudo se a diferença de preço é significativa, entre um “bem justo” e outro que não considera devidamente os aspectos sociais e ambientais. O mesmo se diga das decisões das empresas, pressionadas por apresentar resultados positivos em cada trimestre. O critério puramente financeiro continua a ser muito relevante e é difícil contorná-lo.

Mas, além deste, podemos apontar outro factor mais subtil, embora também crucial, que é próprio das sociedades tecnológicas e se relaciona com a distância e falta de conhecimento aludidas acima: a invisibilidade do Outro, que faz desvanecer a minha percepção de responsabilidade.

Para Levinas, filósofo do século XX, a ética desenvolve-se no encontro com o Outro, que me obriga. Quando me cruzo com o seu rosto, há uma exigência que ele me faz, que me interpela e não permite que o deixe sem resposta. Torno-me responsável por ele e tenho de ser consequente com isso. O Outro pede-me que o olhe e reconheça a sua humanidade e dignidade, que a respeite e proteja.

Na esteira de Levinas, Bauman, sociólogo do século passado, defende que a moralidade obedece à lei da perspectiva óptica: quando o Outro está perto, o seu rosto é concreto e a minha responsabilidade é grande, mas esta vai diminuindo à medida que aumenta a distância entre nós, até que o seu rosto e a minha responsabilidade por ele se perdem de vista. A distância, contrária à proximidade, erode a moralidade. Como diz a sabedoria popular, «o que os olhos não vêem, o coração não sente».

Numa sociedade pré-industrial, conheço as pessoas com quem estabeleço relações económicas e, porque têm um rosto, sinto-me responsável por elas. O padeiro é vizinho e as vidas cruzam-se para além da troca comercial. O seu bem-estar é uma preocupação e responsabilidade minhas e, assim, não seria capaz de contribuir para a sua desumanização.

Pelo contrário, hoje, é possível comprar quase tudo na internet, vindo de qualquer lugar e posto na caixa de correio, sem que o consumidor veja uma única pessoa. Tudo isto requer uma complexa rede de intermediários, na qual cada um tem apenas um pequeno papel, relativamente insignificante no todo. Desta forma, torna-se difícil de medir as consequências dos actos de cada pessoa envolvida no processo, pelo que não se geram conflitos morais e sentimentos de responsabilidade e culpabilidade.

A distância é própria da sociedade contemporânea, industrial e tecnológica. A divisão do trabalho, a crescente especialização e o progresso técnico permitem, cada vez mais, que as acções sejam feitas à distância. O Outro torna-se invisível. Como posso sentir-me responsável por alguém que nunca vi e cujas condições laborais conheço apenas difusamente? Abre-se caminho à globalização da indiferença e acabo por me tornar cúmplice de situações de injustiça.

Assim, não é apenas o preço que nos faz tomar decisões económicas que violentam a dignidade de outras pessoas ou ameaçam o ambiente. A distância que turva o rosto do Outro e erode a moralidade joga também um papel relevante. Aliás, diante do Outro por quem sou responsável, talvez o preço baixo não seja o critério mais decisivo, se tal implicar o seu sofrimento. Podemos mesmo afirmar que é a distância que permite decisões centradas apenas no preço, ao retirar o Outro do nosso campo de visão, diminuindo assim o nosso sentido de responsabilidade e culpabilidade.

Com isto, não pretendo advogar um regresso a um pretenso passado idílico que não existiu, mas antes suscitar uma questão: nas sociedades contemporâneas marcadas pela distância nos actos económicos (e não só), como podemos promover a responsabilidade ou resgatar a proximidade que alimenta a moralidade?

Jesuíta desde 2017, tem formação em Economia, Estudos de Desenvolvimento e Filosofia. Actualmente vive em Santo Tirso e trabalha no Colégio das Caldinhas.