A questão da verdade é muito importante, é transversal a todas as empresas, pode ter um impacto forte no seu desempenho e na sua reputação e merece uma reflexão departamento por departamento, nível hierárquico por nível hierárquico, área por área. Foi por isso o tema escolhido para debate no último Fórum de Ética da Católica Porto Business School
POR HELENA GONÇALVES e ANA ROQUE
Em qualquer área de uma empresa é possível encontrar uma história em que a verdade ou a falta de verdade teve fortes impactos seja em termos de resultados, seja em termos de tempo.
Imaginemos o impacto da falta de verdade num departamento de auditoria interna, a perceção de que as pessoas omitem (faltam à verdade por não a dizer) ou mentem (faltam à verdade dizendo algo diferente da verdade). Imaginemos um auditor que olhando para toda a informação recolhida percebe que falta uma peça no puzzle, algo que não encaixa. Sabe que há uma falha, mas não pode reportar, não pode afirmar onde houve o erro, nem o que o provocou porque faltam provas. Só lhe resta eventualmente fazer uma denúncia sobre o que suspeita e aí, sob pressão, aparece a peça perdida. Entre todos estes passos podem ter-se perdido meses de trabalho e pode ter continuado um processo capaz de causar danos à organização.
Imaginemos agora um departamento de recursos humanos, uma diretora que se vai reformar e o seu braço direito a quem tinha sido transmitida a ideia de que poderia ficar com esse lugar de diretor. Entretanto a administração decide que afinal o que se pretende é que entre para a direção alguém externo, mas que também se quer manter na empresa, pelo seu conhecimento, a pessoa que pensava que ia ficar com o cargo. Talvez isso fosse possível, com frontalidade, respeito e coragem no momento certo, mas o silencio prolongado sem desmentir uma expectativa é praticamente uma mentira, é uma omissão que abre as portas para a revolta e para a amargura.
Estes dois casos da auditoria e dos recursos humanos, embora igualmente graves, podem estar ligados a mecanismos distintos. No primeiro caso quem omite tem quase de certeza noção de que está a agir mal, mas por alguma razão não se sente capaz de dizer a verdade. Pode ser por falta de coragem, pode ser por que a organização tenha um clima que faça com que seja precisa muita coragem para assumir um erro.
No segundo caso quem omite, quem não comunica, pode estar a tentar fazer bem, somos educados na valorização das mentiras piedosas, na mentira social, educamos os nossos filhos para isso, seria difícil vivermos sem essas mentiras e, de repente, face a uma verdade que sabemos que vai fazer o outro sofrer, retraímo-nos.
A questão da verdade é muito importante, é transversal a todas as empresas, pode ter um impacto forte no seu desempenho e na sua reputação e merece uma reflexão departamento por departamento, nível hierárquico por nível hierárquico, área por área. Foi por isso o tema escolhido para debate no último Fórum de Ética da Católica Porto Business School.
A verdade (em qualquer nível hierárquico, desde o board até ao simples estagiário de uma equipa) pode refletir-se na capacidade de expressar ideias em desacordo com elementos dominantes, de dizer com frontalidade verdades difíceis, de assumir erros, de falar do que se sente.
Nas diferentes áreas da empresa para além da auditoria e dos recursos humanos, a verdade também se faz sentir; podemos refletir sobre a transparência na informação para os acionistas, sobre a publicidade enganosa nas vendas, sobre os reais compromissos com os fornecedores, sobre a transparência e os seus limites na comunicação interna e externa, sobre o risco e a capacidade de falar do erro proactivamente, sobre a verdade da marca no marketing…
É uma questão difícil até porque há muitas justificações possíveis para não dizer a verdade, para ser desonesto e de alguma forma faz parte até da visão tradicional dos negócios, a ideia de que é necessária alguma falta de verdade – “o segredo é a alma do negócio”.
Num artigo da Harvard Business Review de 1968 comparava-se a ética de um gestor à de ética de alguém que joga póquer: “O jogo exige desconfiança no outro. Ignora a reivindicação de amizade. São vitais no póquer o engano astuto, ocultando a força e as intenções de alguém, e não a gentileza e a franqueza. Ninguém pensa mal do póquer por causa disso. E ninguém deve pensar pior do jogo dos negócios porque os seus padrões de certo e errado diferem das tradições de moralidade prevalecentes na nossa sociedade.” Tínhamos então a falta de verdade como um pressuposto do mundo empresarial… mesmo atualmente no Código das Sociedades Comerciais a palavra verdade ou transparência não surge nos atributos de um gestor diligente. Diligência é ser “um gestor criterioso e ordenado”.
Aliás, poderíamos mesmo perguntar: É importante para um gestor saber mentir? Onde é aceitável mentir? Que verdade é fundamental assumir? São perguntas para as quais vale a pena procurar resposta dentro de cada organização.
É uma questão complexa, a verdade está muito ligada a coragem, ter a coragem de dizer, ter a coragem de assumir, por exemplo, que as coisas não correram bem, ou não correram tão bem como se esperava. Implica muitas vezes uma exposição para a qual os gestores não estão preparados e talvez por isso, apesar de reconhecidamente ser um princípio a prosseguir, não é dos mais frequentemente assumidos pelas organizações.
Como formular uma verdade que possa ser assumida? A Bloomreach, uma das empresas que assume a verdade como valor define-a assim: “Acreditamos na verdade – sempre. Não tomaremos decisões emocionalmente. Tomá-las-emos com base em dados. Valorizamos as opiniões, mas realmente valorizamos os fatos. Queremos ouvir todas as notícias – boas E más. Se estivermos bem, celebraremos a verdade. Se não estivermos, a verdade melhorar-nos-á. Não há nada de errado com um pouco de Kool-Aid, mas não vamos confundir com a verdade. Compartilharemos de forma transparente o desempenho da empresa. Seremos honestos sobre a forma como conduzimos os negócios, e na forma como tratamos nossos colegas de trabalho, clientes e investidores”[em tradução livre].
É apenas um exemplo, mas é muito importante que uma empresa, com base numa definição de valores ou não, seja capaz de transmitir de forma muito clara em que aspetos a mentira é inaceitável. Esta clarificação é muito relevante porque, na prática há muitas racionalizações que nos ajudam a mentir e a manter a convicção de que somos pessoas honestas, nas empresas e na nossa vida extra trabalho. Exemplos disso são: normas sociais de que já falámos; conseguir um bom negócio para a empresa; todos fazem o mesmo; não estou a prejudicar ninguém; estou a ajudar alguém.
Todos mentimos, mas potencialmente temos margens de tolerância diferentes para as nossas desonestidades em função até do nosso contexto e em função dos contextos das organizações em que trabalhamos – por contexto, queremos dizer, neste caso, o clima ético, o que na organização ou no meio em que vivemos é visto como aceitável ou não.
A essa margem de tolerância chama-se, em ética, o fudge factor. Originalmente a expressão é aplicada aos cálculos matemáticos e designa “um fator de correção, uma quantidade ou elemento ad hoc introduzido num cálculo, fórmula ou modelo a fim de torná-lo adequado às observações ou expectativas”, mas Dan Ariely (professor de psicologia e economia comportamental) , adaptou-a à ética e designa por fudge factor a margem moral ou margem de indulgência que nos permite ter comportamentos desonestos e continuar a considerar-nos pessoas honestas.
O conceito está fundado num racional que suaviza e enquadra as nossas ações de um modo benevolente. Se uma mentira estiver dentro do nosso fudge factor, nós estamos em paz com ela e nenhum detetor de mentiras a detetará. Os detetores de mentiras, de acordo com experiências realizadas por este autor, só detetam mentiras em relação às quais não estamos em paz.
Exemplos de mentiras que poderão eventualmente na nossa sociedade estar dentro do fudge factor poderão ser, quando no preenchimento do seguro de saúde dizer que se fuma menos do que a realidade, arredondar a velocidade a que se vai na estrada ou declarar um valor inferior na venda de uma casa para pagar menos impostos. Podemos dizer que estas mentiras podem estar dentro do nosso fudge factor, porque mentimos e continuamos a achar que somos pessoas honesta.
O fudge factor diz muito sobre a cultura onde estamos inseridos, o meio onde crescemos e a pessoa que somos e não se trata necessariamente de mais ou menos, trata-se de diferente, na generalidade dos casos. Se nos fosse possível estudar em profundidade o fudge factor de uma pessoa seria possível dizer muito sobre ela, sobre o meio a que pertence, sobre o tipo de organização em que trabalha. Quase poderíamos afirmar, diz-me qual é o teu fudge factor dir-te-ei quem és.
Todas as “desculpas”, as justificações para mentir que elencámos há pouco fazem parte do nosso fudge factor e perceber qual é o seu fudge factor é uma reflexão importante a ter em qualquer organização, faz parte do conhecimento do seu contexto e é algo fundamental para a gestão do desempenho ético. Tal como afirma Dan Ariely uma das formas mais eficazes de diminuir o risco de más práticas éticas nas organizações é diminuir o fudge factor.
Helena Gonçalves e Ana Roque, coordenadoras do Fórum de Ética da Católica Porto Business School