A enorme controvérsia que está a abalar a London School of Economics e que já deu origem à demissão do seu director, Sir Howard Davies, tem sido analisada a partir de dois extremos: um enorme escândalo porque não se aceita dinheiro “manchado de sangue” ou uma mera caça às bruxas pois venha uma universidade de prestígio atirar a primeira pedra por não ter recebido financiamento de fontes duvidosas
Não fosse a Líbia arrastada pelas revoltas estudantis que forçaram a queda de regimes ditatoriais na Tunísia e no Egipto e uma das mais prestigiadas escolas de economia do mundo não estaria agora nas notícias. A enorme controvérsia que está a abalar a London School of Economics (LSE) e que já deu origem à demissão do seu director, Sir Howard Davies, tem sido analisada a partir de dois extremos: um enorme escândalo porque não se aceita dinheiro “manchado de sangue” ou uma mera caça às bruxas pois venha uma universidade de prestígio atirar a primeira pedra por não ter recebido financiamento de fontes duvidosas. Embrulhados na polémica estão alguns membros do governo britânico; um antigo director da LSE que é, por acaso, considerado como um dos maiores sociólogos do século XX, de seu nome Anthony Giddens; a tese de doutoramento do filho de Khadafi escrutinada devido a suspeitas de plágio (doutoramentos e plágios parecem estar na ordem do mês, depois do escândalo do ministro de Merkel que se demitiu por causa da mesma prevaricação) e avisos de um reputado e já falecido membro da LSE que, em 2009, enviou um memorando à própria escola evocando vários motivos pelos quais se manifestava contra os financiamentos propostos pela suposta ONG de Khadafi. Estes são apenas alguns dos contornos de uma história que só viu a luz do dia porque Khadafi não cede ao poder e porque o seu filho, Saif al-Islams, cuja tese de doutoramento tinha como tema “O papel da sociedade civil na democratização das instituições globais da governação: do ‘soft power’ ao processo da decisão colectiva” o secunda na sua decisão e parece ter esquecido as duras críticas que outrora teceu ao funcionamento dos governos não democráticos. Podem os interesses económicos, de alguma forma, estar acima da integridade académica? Porque o assunto está relacionado com questões directamente ligadas à ética e à transparência, o VER resume, neste artigo, as intricadas relações que estão subjacentes a este(s) episódio(s). O sociólogo, o coronel, o filho deste e os donativos às universidades Bem, na verdade, até os melhores se enganam, apesar de coleccionarem títulos honoríficos, obras mundialmente aclamadas e de serem professores prestigiados em escolas como Cambridge ou a London School of Economics (onde foi director entre 1997 e 2003). Mas Anthony Giddens, apesar de se ter encontrado com Khadafi e de ter elogiado o famoso “Green Book”, escrito pelo coronel deve, neste preciso momento, estar a morder a língua por ter acreditado que “a teoria económica defendida por Khadafi reside no conceito de que todos devem colher os mesmos frutos do seu trabalho” ou que o seu impulso reformista era “autêntico e com um enorme poder motivador subjacente”. Enquanto considerado como um dos mais brilhantes sociólogos da actualidade, Giddens deveria ter feito melhor o seu trabalho de casa. Não é preciso ser muito literato para digitar o endereço electrónico da Freedom House, por exemplo, a reconhecida ONG norte-americana que há mais de 70 anos promove os direitos humanos e a democracia, para se inteirar de alguns factos sobre a Líbia: em termos de ranking, a pátria de Khadafi está catalogada como a “menos livre” na categoria que avalia as liberdades civis e os direitos humanos e, oficialmente, conta com uma taxa de 21% de desemprego. Mas até os grandes cérebros se enganam… apesar de, numa coisa, Giddens parecer ter razão: num comentário intitulado “My chat with the colonel”, em Março de 2007, escrevia: “o que acontecer ali [na Líbia] terá um impacto certo no norte de África e em todo o Médio Oriente”. E não só, com as repercussões que a sua “luta contra mais uma tentativa de colonialismo da Líbia”, como afirmou ontem o próprio coronel, está a ter já não só na Europa, como em todo o mundo. Mas mudemos agora de cérebro e de personagem e atentemos no filho de Muammar Khadafi, Saif, que foi aceite como doutorando na LSE, com o objectivo de estudar o papel da sociedade civil na democratização das instituições globais. Na altura, já Saif era o presidente da Fundação Khadafi para a Caridade e o Desenvolvimento. Na verdade, na altura não existiam motivos alguns para o filho de Khadafi não ser aceite como estudante numa das mais prestigiadas escolas económicas do mundo. É facto conhecido que o jovem Saif se mostrava aparentemente interessado em criar um futuro mais liberal para o seu país e que condenava, de acordo com uma reportagem transmitida pela BBC, os governos não democráticos, apelidando-os de “autoritários, abusivos e não representativos”. E talvez se não fosse o próprio a aparecer recentemente na televisão líbia a jurar “lutar pela Líbia até à última bala”, não existiria matéria sobre a qual se escrever. A verdade é que, apesar de a LSE ter sido alertada que poderiam existir partes plagiadas na sua tese de doutoramento, esta não encontrou, na altura, motivos para suspeições e recebeu, porque as universidades também estão em crise, com agrado, um donativo no valor de 2,4 milhões de dólares, da dita Fundação, logo após a conclusão da tese de doutoramento do filho de Khadafi. Este dinheiro serviria para financiar o departamento de estudos sobre o Norte de África, da LSE, e também para financiar bolsas de estudos para estudantes líbios. Até aqui, nada de muito novo. São inúmeras as universidades que recebem fundos, principalmente por parte de realezas sauditas, para financiar centros de estudos ou pesquisas. De acordo com o jornal London Evening Standard, “nos últimos 15 anos, oito instituições académicas britânicas de prestígio, incluindo Oxford, Cambridge e a UCL já receberam milhões de várias fontes do Golfo, sendo que a China já desembolsou meio milhão de libras para ajudar a financiar Institutos ‘Confúcios’ em 10 universidades britânicas”. Este procedimento é igualmente comum, por exemplo, nos Estados Unidos. Só como exemplo, a Universidade do Missouri ganhou uma cadeira nova em Economia, financiada pelo ex-patrão da Enron, Ken Lay, antes obviamente de este vir a ser acusado e preso por um dos maiores escândalos empresariais de sempre. E, sem ninguém a desejar leccionar a dita cadeira, corre há muito uma anedota nos corredores da universidade: “esta não é como a cadeira do Osama bin Laden”. Como é do conhecimento público, a família de Bin Laden doou somas substanciais, ao longo da década de 90, tanto à universidade de Harvard como à de Tuffs. E assim se mancha (ou não) um dos pré-requisitos para qualquer processo académico: a transparência. Os avisos não escutados de Fred Halliday No memorando, intitulado “LSE and the Qaddafi Foundation: A Dissenting Note”, Halliday começa por expressar as inúmeras ocasiões em que, por escrito e verbalmente, conversou com colegas acerca das sérias reservas que tinha relativamente ao rumo que as negociações com a Líbia estavam a tomar, apesar de sublinhar que estava a favor das tentativas por parte do governo britânico e de várias empresas para desenvolver ligações com a Líbia. Mas foi quando teve conhecimento de que o Concelho da LSE tinha aprovado um financiamento no valor, de 1,5 milhões de libras, proveniente da Fundação Khadafi, que Hallyday resolveu colocar por escrito as suas preocupações. E é interessante avaliar a forma como desconstrói o “cenário”da Fundação, aqui referida como QF: “Enquanto, formalmente, a QF não faz parte do Estado líbio, e esteja registada na Suíça como uma organização sem fins lucrativos, isto é, em todos os sentidos, uma ficção legal. As verbas injectadas na QF são provenientes de empresas estrangeiras que querem fazer negócios, ou seja, que recebem contratos, para trabalhos na Líbia, nomeadamente por parte das indústrias do petróleo e do gás. Estas verbas são, na verdade, uma forma de adiantamento, ou uma tributação, paga ao Estado líbio, em antecipação à promessa dos contratos”, escreve. E acrescenta: “os fundos da QF são, assim e para todos os efeitos, parte do orçamento de Estado da Líbia. E o estatuto de ‘ONG’ e o seu reconhecimento por parte de instituições como as Nações Unidas significa, em termos reais, absolutamente nada”. Halliday refere-se ainda ao facto de o presidente da QF, e o seu director efectivo, ser o próprio filho do governante [da Líbia]. Halliday faz ainda um conjunto de análises no que respeita à informalidade do regime, não deixando de dar como exemplo relatórios de organizações como a Amnistia Internacional e a Human Rights Watch no sentido de, apesar de alguns dos seus piores excessos terem, na altura, cessado, a Líbia não ter feito progressos significativos na protecção dos direitos dos seus cidadãos, dos trabalhadores migrantes e refugiados, permanecendo um país liderado por “uma elite opaca, errática e corrupta”. O director finaliza o seu documento afirmando que a questão mais importante reside no risco reputacional da LSE e pede ao Concelho que reavalie a sua decisão. Como é agora do conhecimento público, a London School of Economics não deu ouvidos aos avisos de Halliday e prosseguiu com os acordos com a Fundação Khadafi. E, para além da demissão de Sir Howard Davies, antigo governador do Banco de Inglaterra e que esteve à frente dos destinos da LSE nos últimos oito anos, tendo sido também conselheiro do fundo soberano líbio, a escola está agora a investigar todos os relacionamentos que tem mantido com a Líbia, tendo já declarado publicamente que iria rever as suas políticas de donativos e estabelecer regras mais rígidas no futuro. Servirá esta história como exemplo para as demais instituições que, cada vez mais afectadas pela crise financeira, baixam a sua fasquia ética no que respeita a receber donativos de fontes externas? Na verdade e segundo reza a História, é muito provável que o assunto venha a ser esquecido e que o “business as usual” se mantenha.
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Editora Executiva