Daqui a centenas de anos os arqueólogos que estudarem os começos do século XXI tirarão as teimas nas suas publicações. Há felizmente a famosa «peer review» e estas fotografias são demasiado belas para se deixarem contaminar com as tecnologias do porvir. Importa mesmo muito esta redundância física que Libório Manuel Silva consagra nos livros
POR PEDRO COTRIM
Tem esta paisagem vinte mil anos. Ou vinte mil vezes mais, que a Europa nasceu com a Pangeia, «toda a Gaia». Lembramo-nos da deusa grega na semana em que morre James Lovelock, ideólogo de uma teoria abstrusa e baptizada precisamente como Hipótese de Gaia. Num Verão em que temos grelhado com regularidade, vale a pena ler o que este cientista da Terra nos lega, mas sempre com as reservas do pensamento que já ganhámos no século XXI.
A fotografia mostra-nos o Douro a encharcar-se de Côa, absorvendo-o e absolvendo-o do resto do percurso até ao Porto. Perto daqui temos as célebres figuras que não sabiam e não sabem nadar; merecem esta transição de tempo verbal porque as queremos eternas. Merecem também o carinho que devemos aos nossos antepassados.
As cotas dos rios serão praticamente iguais há vinte mil anos, uma vez que a ciência actual permite esta conclusão e que será sempre muito bela. Uma ave que contemplasse esta zona deste ponto enquanto os nossos avós aproveitaram aquele vale resguardado terá visto montes e águas semelhantes. Há obviamente paisagem urbana e o museu que parece um verbo ou uma raia a nadar para nascente. A cidade Vila Nova de Foz Côa, ali no canto superior esquerdo, junta mais elemento humano a esta panorâmica. Não há aqui qualquer confusão e faz tudo parte da maravilhosa cronologia das coisas.
Não adianta acrescentar palavras à fotografia, que faz parte do acervo de Libório Manuel Silva. O autor já nos habituou a um riquíssimo trabalho de recolha que será uma bitola para muitos anos; o seu olho já captou paisagens, fachadas e detalhes que nos foi trazendo através das suas lentes e das suas obras. Temos agora este Douro – Maravilhas do Património, uma obra em que viajamos, com esta grafia de luz, pelo imenso património em que temos a sorte de viver.
Daqui a centenas de anos os arqueólogos que estudarem os começos do século XXI tirarão as teimas nas suas publicações. Há felizmente a famosa «peer review» e estas fotografias são demasiado belas para se deixarem contaminar com as tecnologias do porvir. Importa mesmo muito esta redundância física que Libório Manuel Silva consagra nos livros.
Este livro garante então a viagem que passamos a meter dentro dos nossos desejos. Dos trezentos e poucos concelhos do país, vinte e quatro bordejam o Douro. Um décimo, quase, bebe desta artéria fundamental na península. Chamar-lhe artéria nem sequer será justo, pois que este rio, com os tributários que tanto nos trazem, é mais o coração do norte de Portugal do que outra coisa qualquer. Há Porto, há Gaia, há Armamar, Lamego e Mesão Frio. E os outros todos que estão neste livro e à beira Douro.
Ouçamos este coração e reparemos nesta culminância que o autor nos traz. Prefacia a obra José Rentes de Carvalho, nascido e criado no Douro e de seguida transportado para perto do delta do Reno. Muito nos diz nas memórias que preludiam a atmosfera perfeita para o livro.
«Teremos sempre o Douro». Apropriemo-nos de uma memória da Sétima Arte, resguardemo-nos com Torga e Agustina (leia-se a primeira página de Fanny Owen) e juntemos-lhes Libório Manuel Silva e José Rentes de Carvalho. Está aqui uma obra preciosa como Casablanca, pois The fundamental things apply/as time goes by.
E porque também é fundamental, fechamos o artigo com nova fotografia do autor. É do Douro Internacional e mostra-nos o efeito «água mole em pedra dura». O ditado era certamente conhecido no Paleolítico.
Editor