Quem o afirma é Margarida Neto, presidente da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP), cujo Encontro Nacional, realizado a 30 de Novembro último, escolheu como tema “De Hipócrates ao ChatGPT – O que muda e o que perdura”. Em entrevista ao VER, a responsável da AMPC responde a esta questão afirmando que “mudam pequenas coisas, mas mantém-se o essencial”
POR HELENA OLIVEIRA

O avanço da Inteligência Artificial (IA) na medicina tem revolucionado o diagnóstico, o tratamento e a gestão de doenças, trazendo promessas de maior precisão e eficiência. Desde algoritmos que identificam padrões em exames de imagem até sistemas que personalizam tratamentos baseados no perfil genético do paciente, a IA apresenta oportunidades únicas para melhorar a prática médica. No entanto, estes avanços tecnológicos também suscitam questionamentos éticos, sobretudo para médicos que fundamentam sua prática profissional em princípios cristãos e na ética católica.

Para os médicos católicos, a utilização da IA na medicina exige uma reflexão profunda sobre os valores que orientam o cuidado com a vida humana. Como garantir que a dignidade do paciente seja preservada diante de decisões automatizadas? Até que ponto é ético confiar diagnósticos e intervenções terapêuticas a máquinas?

Estas e outras questões estiveram presentes no Encontro Nacional da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP), que teve lugar a 30 de Novembro último e sob o mote: “De Hipócrates ao ChatGPT – O que muda e o que perdura”, numa tentativa de explorar como os profissionais de saúde de fé católica podem integrar as inovações da IA na sua prática clínica sem comprometer os valores fundamentais da ética cristã, promovendo o bem-estar do paciente e respeitando a sacralidade da vida.

Em entrevista, a presidente da AMCP, Margarida Neto, partilhou a sua visão sobre alguns destes temas, não deixando, contudo, de sublinhar que  “as tecnologias devem funcionar como uma ferramenta, um complemento e nunca como uma substituição dos médicos humanos”.

Quais os motivos que levaram a Associação Portuguesa de Médicos Católicos a escolher a relação entre a medicina e a inteligência artificial para o seu Encontro Nacional?

Trata-se de um tema da actualidade, que desafia a medicina e coloca novas questões aos médicos, ao seu dia a dia e, em particular aos estudantes e jovens médicos, os quais virão a lidar mais de perto com os progressos da IA nos cuidados de saúde, bem como com os vários dilemas éticos que as novas tecnologias integram numa área tão importante e delicada como é a da medicina.

De uma forma muito geral, como responderia à pergunta que serviu de mote para o vosso Encontro: “De Hipócrates ao ChatGPT: o que muda e o que perdura?”

Há 2.500 anos, Hipócrates deixou-nos um conjunto de referenciais que enquadram a medicina e o comportamento do médico.  É um quadro de valores que constitui património da humanidade.  O Juramento de Hipócrates foi-se modificando e a Assembleia Médica Mundial foi introduzindo modificações e actualizações, ao longo dos tempos.

No que respeita ao que muda e ao que perdura, mudam pequenas coisas, mantém-se o essencial. As alterações tecnológicas agora oferecidas à medicina devem continuar a ser enquadradas de acordo com os valores de Hipócrates. Valorizamos muito a cerimónia do Juramento de Hipócrates que os estudantes de medicina, no final dos seus estudos, fazem anualmente. É um momento de grande solenidade e compromisso que perdura e nos enche de esperança.

Enquanto médica e católica, qual é o seu ponto de vista sobre a utilização da IA na prática médica?

A IA não substitui a Inteligência Humana. Não devemos “perder-nos” numa tecnologia que ainda está no seu início, mesmo que já tenhamos a noção de que vai revolucionar a nossa vida. Sem medo, mas com atenção e reflexão. As tecnologias devem funcionar como uma ferramenta, um complemento e nunca como uma substituição dos médicos humanos. Como noutras alturas em que as sociedades deram saltos tecnológicos, devemos reflectir sobre as vantagens, sem esquecer os dilemas que já existem e que, com os avanços tecnológicos céleres, continuarão a surgir.

Como descreveria a relação entre a medicina e a inteligência artificial (IA) na actualidade?

A IA será uma ferramenta, sobretudo em algumas especialidades. Aumenta a eficácia e a rapidez do diagnóstico, amplia saberes e possibilidades. Haverá especialidades médicas, como a radiologia, que terão de se adaptar mais. No limite não podemos esquecer que deverá ser sempre o médico a decidir.

Quais são as principais preocupações éticas que surgem com a aplicação da IA na medicina?

Serão sempre as questões do consentimento informado, da decisão clínica, da autonomia do doente, do segredo médico e dos processos clínicos da relação médico/ doente.

Como garantir que as decisões feitas por sistemas de IA estejam alinhadas com a dignidade humana e o respeito à vida?

Trata-se de uma pergunta muito importante. Essa questão coloca-se desde sempre à medicina, com ou sem IA. No Juramento de Hipócrates há um compromisso de respeito para com a vida humana, desde a concepção até à morte natural. Esse compromisso tem de perdurar. Mais uma vez, é ao médico que compete decidir, não ao sistema de IA que estiver a ser utilizado.

Em situações críticas, como o uso de IA para diagnósticos ou tomada de decisões em tratamentos, quem deve ter a palavra final — a máquina ou o ser humano?

A palavra final resulta do diálogo do médico com o seu doente, ponderados todos os factores conhecidos e nos quais a IA pode ser relevante como ajuda à decisão. Mas a construção da tomada de decisão resulta do respeito pela autonomia do doente e da obrigação de o informar e esclarecer. Mais uma vez, a máquina deve ser instrumental.

Em que áreas da medicina acredita que a IA poderá trazer os maiores benefícios?

Como já referido anteriormente, já sabemos que as áreas da medicina da imagem são aquelas que, para já, utilizarão mais a IA, com grande benefício para a medicina e para o doente.

Quais são os riscos potenciais do uso de IA na medicina, especialmente em termos de privacidade e segurança de dados dos pacientes?

Temos consciência que existem vários riscos, mas também sabemos que há muitas pessoas atentas. A privacidade e a segurança dos dados são pilares da medicina.

Como evitar que o uso da IA crie uma dependência tecnológica que possa enfraquecer o julgamento clínico dos médicos?

Tendo bem claro o que é mais importante. A medicina usa a tecnologia, mas é muito mais do que isso. Acima de tudo, a relação médico/doente, a capacidade de comunicar. Está estudada a importância do impacto da relação de confiança entre o médico e o seu paciente, na adesão ao tratamento e na sua eficácia.

Acredita que os médicos precisam de ter uma formação específica para trabalhar com a IA?

Sim, sem dúvida.

Como pode a Igreja Católica contribuir para a formação ética e profissional dos médicos num cenário cada vez mais tecnológico?

Na Associação dos Médicos Católicos Portugueses temos essa preocupação. Daí termos organizado este encontro e estarmos disponíveis para o continuar, noutros moldes, noutros fóruns, também com outros profissionais católicos. A comunicação com o doente, a promoção da dignidade humana, a empatia e a compaixão, a espiritualidade e a oração, as razões de esperança, a fé, têm de estar sempre presentes na vida de um médico católico. Com naturalidade e testemunho.  Os documentos da Igreja, os desafios permanentes do Papa Francisco ajudam-nos a viver a nossa vida como médicos católicos. Temos a referência maior – O Cristo Médico. É esse o sentido e o compromisso.

Editora Executiva

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